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terça-feira, 10 de novembro de 2020

Precisa-se de quem saiba falar de covid-19. Entrada imediata

Posted: 09 Nov 2020 03:55 AM PST

«O Governo português preparou bem o país para a segunda vaga da covid-19? Não, falhou em vários pontos fundamentais, convergem vários especialistas com os quais o PÚBLICO falou. Uma das falhas foi a comunicação com os cidadãos, essencial para mudar comportamentos que barrem o caminho a infecções, como o uso da máscara. Quanto à conferência de imprensa tri-semanal (começou por ser diária) da Direcção-Geral da Saúde e membros do Governo (primeiro lado a lado, agora já separados), acabe-se com ela.

“A meu ver, só se alterarmos o comportamento das pessoas é que conseguiremos evitar um novo confinamento. Temos de voltar a conseguir dialogar com as pessoas, a consciencializá-las. Não é responsabilizá-las, é consciencializá-las”, frisa Tiago Correia, professor associado de Saúde Internacional e investigador sénior no Global Health and Tropical Medicine, unidades do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa.

E isso não acontecerá mantendo os protagonistas que os portugueses se habituaram a ver na televisão a debitar números da pandemia – a directora-geral de saúde, Graça Freiras, a ministra da Saúde, Marta Temido, ou os secretários de Estado da Saúde. “A directora da DGS ficou associada à política e, como perita, perdeu a confiança dos cidadãos, por ter ficado associada aos políticos, nos quais os cidadãos e cidadãs não confiam”, diz por sua vez José Manuel Mendes, coordenador do Observatório do Risco - OSIRIS, com sede no Centro de Estudos Sociais, na Universidade de Coimbra.

“Esta ainda é uma hipótese, tenho de a testar, temos de fazer inquéritos”, admite Mendes. Mas o que tem visto, sublinha o sociólogo, “não é comunicação de risco, é basicamente transmissão de informação para a comunicação social, e controlo da narrativa”. Por isso não tem dúvida: “Aquelas conferências não são comunicação de risco, deixaram de o ser há muito tempo e deviam acabar, são uma legitimação da narrativa política...”

O pneumologista Jaime Pina viu inúmeros sinais de uma comunicação disfuncional. “A estratégia comunicacional esteve muito mal, muito baseada nos números. Aqueles briefings da DGS que já ninguém vê. Não podemos esquecer que mais de dois milhões portugueses têm mais de 65 anos. Não podemos esquecer que as organizações internacionais dizem que Portugal é dos países com maior iliteracia em saúde. Nós somos dos países da União Europeia com menor acesso aos media”, sublinha.

“Fez-se uma comunicação baseada em números para quê? Para chegar aos órgãos de comunicação social. Ora isto não chegou a ninguém e por isso é que há uma população que na sua maioria não tem mensagens interiorizadas”, completa Jaime Pina, membro da direcção da Fundação do Pulmão.

Os cidadãos estão cansados daqueles rostos, já não acreditam naquelas imagens, naquelas vozes, naquele discurso, frisa Tiago Correia. “Não é um julgamento sobre a sua competência, é uma constatação.” É que sem haver medicamentos, ou vacinas, interroga Jaime, Pina, o que resta? “As velhas medidas de combate às infecções, que são eficazes. Não é por acaso que a China não tem casos. Não sendo uma democracia, com tudo o que de mal que isso acarreta, não esteve oito meses à espera de tornar a máscara obrigatória”, como nós.

Mas, para que a comunicação de risco seja eficaz, é preciso segmentar os públicos-alvo e encontrar interlocutores capazes de fazer chegar as mensagens a esse público. “Vozes que criem menos ruído, que cheguem mesmo às pessoas, porque claramente com estes as pessoas já desligaram”, frisa Tiago Correia.

“Vão buscar os youtubbers e os influencers, se for preciso, e os artistas, as pessoas que têm capacidade de passar as mensagens necessárias para os jovens”, sugere José Manuel Mendes. “Quem tem mais seguidores no TikTok?”

É preciso confiança

Isto não quer dizer, no entanto, que devamos continuar a ter um espaço público povoado por tantas cabeças falantes que às tantas é impossível saber quem são, ou quem está correcto – na verdade, isso é o que está a acontecer, diz José Manuel Mendes: “O campo está muito cacofónico, há muitas vozes a falar, o representante dos Médicos de Saúde Pública, a Ordem dos Enfermeiros, a Ordem dos Médicos, e as conferências diárias”, enumera. Isto para não falar nos comentadores políticos puros e duros, como Paulo Portas ou Marques Mendes, cujas aparições nos media “podem parecer informativas mas não são”, frisa o especialista em avaliação de risco.

“Em Portugal, as instituições em que as pessoas tinham mais confiança eram os bombeiros e o INEM, e depois os peritos, os cientistas, os professores. A comunicação de risco no caso da covid-19 baseou-se no modelo convencional antigo, aquilo a que se chamava a compreensão pública da ciência, ou seja, parte-se do princípio que o cidadão é ignorante, e que temos de lhe dar os dados para compreenderem o que são os factos. Mas as pessoas são co-produtoras, vão analisar e avaliar, desde logo, a legitimidade de quem está a comunicar. E só se coopera se houver confiança”, explica José Manuel Mendes.

Um exemplo? “As pessoas têm de ter confiança nas instituições para ter a Stay-Away Covid no telemóvel, e não a estão a usar porque não confiam na forma como foi instituída e não querem o estigma de estar inseridos numa base de dados de pessoas que tiveram a doença”, afirma o sociólogo.

“A nossa falta de preparação teve muito a ver com a falta de capacidade para fazer rastreios e a má comunicação. As pessoas só ouviram que morreram não sei quantas pessoas, e mais não sei quantas estavam internadas, e quando muito a informação vinha dividida por cinco regiões. Ora isso não é nada para as pessoas, é completamente abstracto”, afirma o investigador.

“A etapa de reforço do sistema nacional de saúde foi muito bem tratada”, assevera o pneumologista Jaime Pina. “Mas a estratégia comunicacional com a população falhou e essa é que permitiria efectivamente diminuir o número de casos. Não transmitiu às pessoas as regras que deviam ter interiorizado, e fez com que existissem mais casos na segunda onda de infecções pelo novo coronavírus, que teria sempre que existir. Houve na Gripe Asiática, na Gripe de Hong Kong, há sempre duas ondas, é uma regra…”

Perceber a nossa bolha

Mas o pior, constata Tiago Correia, é que tudo isto pode não chegar para evitar um novo confinamento. “Lamentavelmente acho que não. Em virtude de haver um descontrolo nas cadeias de transmissão, uma falta de capacidade de voltarmos a rastrear todos os casos.”

É aqui que entra a urgência de melhorar a comunicação, para mudar rapidamente a forma como agimos. “Só os nossos comportamentos é que nos podem salvar neste momento. É crítico que no próximo mês, até voltarmos a reduzir o número de casos, e voltarmos a ter capacidade de rastreio, as pessoas interiorizem a ideia da bolha: apelar às pessoas que restrinjam ao mínimo o número de pessoas com quem têm contactos de risco.”

Esse mínimo é o seu agregado familiar, os seus filhos, os seus pais. E como perceber quem está fora da sua bolha e pode ser um contacto de risco? “Um exercício engraçado é pedir às pessoas que escrevam num papel o número de pessoas com quem está, sem máscara, em sua casa. E verá que um amigo foi lá jantar, um amigo do filho, um avô que já não via há muito tempo, etc, etc. Quando começam a escrever num papel vêem que tem muitos contactos que não podem ter, infelizmente…”

Mas a falta de clareza na comunicação e nos objectivos pretendidos persiste, nota José Manuel Mendes. “Agora estamos em estado de emergência, para salvarmos o Natal. Mas eu gostava de saber, o que é se pretende salvar no Natal - as dinâmicas familiares, ou a dinâmica comercial? A mensagem nunca foi clara, sobre o que pretendemos e como podemos chegar lá.”»

Clara Barata

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

EUA – Eleições presidenciais – o princípio do fim de Trump

por estatuadesal

(Carlos Esperança, 07/11/2020)

É preciso cinismo e hipocrisia para mostrar indiferença face os resultados eleitorais dos EUA e inconsciência para ser indiferente perante o derrotado da eleição mais importante para o Mundo.

A eleição presidencial americana tem uma relevância ímpar, não apenas por se tratar do país mais poderoso, talvez no seu estertor, o que não augura melhor sorte, porque o PR é simultaneamente chefe de Estado, do Governo, das Forças Armadas e proponente dos juízes vitalícios, sem limite de idade, para vagas do Supremo Tribunal.

Não há paralelo, em democracia, de tamanha concentração de poderes, com a relevância de se tratar da mais poderosa potência militar, económica e financeira do Planeta.

Acabada de ser anunciada a vitória de Joe Biden na Pensilvânia, garantindo a derrota de Trump, não é motivo de regozijo. É verdade que o País votou contra Trump, não é certo que tenha votado a favor de Biden.

A democracia americana sai desprestigiada destas eleições, com um sistema anacrónico de contagem de votos, a possibilidade de conflitualidade judicial num sistema que devia ser transparente e a litigância de má fé de Trump a poder transformar ainda uma derrota numa guerra que foi evitada pela sensatez dos concorrentes de eleições anteriores.

Biden terá a vida difícil, com a crispação do eleitorado, a preponderância do Senado, de maioria Republicana, e a hostilidade do Supremo Tribunal onde a última juíza, nomeada e empossada em campanha eleitoral, num ato prepotente sem precedentes, é a metáfora da insanidade num órgão cuja independência é fictícia.

O facto de Trump, delinquente fiscal, mitómano, xenófobo e imprevisível, com traços narcisistas e de um exibicionismo atroz, se ter aproximado de ser reeleito deixa o maior incómodo no mundo, perplexo sobre o povo que elegeu tal PR e quase o reelegeu.

É sintomático que os média anunciem a evolução da contagem dos votos como um jogo em que o candidato X está a conseguir inverter a vantagem, como se dependesse dele e não dos votos expressos. Até neste pormenor de linguagem paira a desconfiança.

Como nota positiva destas lamentáveis eleições em que um louco esteve, ou está, sabe-se lá, em vias de ser reconduzido, fica como nota positiva da democracia a liberdade de imprensa, com três cadeias de TV a suspenderem, em direto, o PR com um argumento poderoso, ele estava a mentir.

Há ainda uma outra nota positiva a referir. A derrota de Trump, seja qual for a evolução dos acontecimentos até à tomada de posse do novo PR, é um contratempo contra a feroz arrogância dos populistas de todo o mundo, que viam no desmiolado PR americano a sua referência e fonte de inspiração.

O futebol e a pandemia

por estatuadesal

(José Gameiro, in Expresso, 07/11/2020)

Nunca me interessei muito pelo futebol. Claro que gosto de ver um bom jogo, ainda que tenha dificuldade em estar atento os 90 minutos. Não percebo nada de táticas, não sei o nome da maior parte dos jogadores, equipas com camisolas que não conheço, demoro algum tempo a perceber de que lado está cada uma. Nada me move contra o gostar. Tenho muitos amigos que sabem tudo. As jogadas do seu clube que aconteceram há 30 anos, os nomes e a história de cada jogador, o esquema de jogo utilizado por cada treinador. Reconheço a emoção de ir a um estádio ver um bom jogo, mas a última vez que fui talvez tenha sido há 20 anos, o Portugal-Azerbaijão, com os meus filhos. Apesar das diferenças clubísticas e das enormes discussões sobre cada jogada, o futebol une as pessoas como nenhuma outra atividade o faz. A complacência perante os negócios do futebol e os valores pagos aos bons jogadores contrasta, de uma forma chocante, com a intolerância perante qualquer ideia de aumentar o vencimento dos agentes políticos, tidos como aldrabões e corruptos... Diga-se em abono da verdade que muito poucos têm a coragem de discutir isto, com receio de perderem votos. Com a pandemia fomos invadidos pelo medo. Meses de abertura dos jornais televisivos com o número de mortos diários e acumulados. Entre o dever de informar e a procura de grandes audiências, a margem nem sempre foi clara. Estávamos todos à espera, diariamente, do boletim da DGS e rapidamente ficámos epidemiologistas... Ouvimos opiniões que tinham a coragem de dizer que a incerteza era muita grande, mas também assistimos a grandes presunções de conhecimento e muitos disparates. Ainda hoje estamos longe de saber como isto vai acabar, mas as profecias continuam. As vozes discordantes com as análises feitas e as medidas tomadas ouviram-se pouco ou foram caladas, numa falsa unanimidade, inimiga do direito ao contraditório. O medo, por nós ou pelos que nos são próximos, permitiu que fossem tomadas decisões coercivas, juridicamente discutíveis, a que alguém até chamou uma “trapalhada”. Mas tudo continuou.

Nos primeiros meses, a luta política ficou como que adormecida. Não seria muito popular pôr em causa a organização da resposta do SNS à pandemia. Com o evoluir e o recente aumento de casos, a saúde tornou-se um terreno privilegiado de disputa. Com muita demagogia e não poucas mentiras, os ataques foram subindo de tom, esquecendo que toda a Europa está na mesma situação, apesar das diferentes soluções adotadas.

A comunicação sobre a pandemia foi frequentemente amadora, com mensagens contraditórias, algumas a roçar a subalternização da inteligência dos portugueses. Foi fácil perceber, várias vezes, as diferenças de opinião entre quem quer decidir com base no conhecimento existente e quem pensa na vox populi. Passámos do espetáculo epidemiológico ao circo dos interesses. O SNS passou de herói e garantia da segurança dos portugueses a alvo de ataques de pessoas e entidades, motivadas por interesses económicos ou ideológicos. Estamos cansados disto? Eu estou e vejo à minha volta sentimentos de exaustão, agravados por disputas cada vez mais incompreensíveis pelo comum dos mortais... Descobri, por influência de amigos, o prazer de ver não só jogos mas sobretudo programas de debate futebolístico. Na minha, ainda pouca, literacia sobre o tema, começo a emitir opiniões e a contrariar adeptos de muitos anos. Os comentadores televisivos, felizmente os piores migraram para a política, parecem-me pessoas sérias, sabedoras, nada facciosas, intelectualmente honestos e, ao contrário de alguns da pandemia, não fazem prognósticos antes do fim do jogo. Ouvi-los relaxa-me, põe-me bem-disposto, pronto a mais uns meses de sofá.

Desculpem terminar com um conselho: se estiverem fartos de ouvir falar do vírus, não percam uma conferência de imprensa do Jorge Jesus. Garanto-vos que é muito melhor do que falar com um psiquiatra ou um psicólogo.

sábado, 7 de novembro de 2020

As eleições numa democracia doente

Posted: 05 Nov 2020 06:48 AM PST

«A democracia na América está doente e, sabia-se, o remédio convencional das eleições jamais seria suficiente para a recuperar. Num corpo político e social com fracturas intransponíveis, sem espaço de diálogo e de compromisso, a braços com uma crise crescente de confiança nas instituições, com uma parte da população fixada na ideia de que a democracia é apenas um artifício dos políticos para lhe roubar o direito à cidade, é difícil afirmar valores morais, princípios republicanos, ideias de soberania ou de legitimidade baseadas na vontade popular.

A América elegeu Donald Trump com a sensação difusa de que a democracia liberal se tornara uma farsa e voltou a entregar-lhe mais de 67 milhões de votos por acreditar que essa farsa continua. Uma vitória de Joe Biden permite acreditar numa convalescença longa e penosa; a reeleição de Trump confirmará talvez a sua agonia.

Se os americanos elegeram em 2016 um fanfarrão demagogo e impreparado, era possível suspeitar que o fizeram por desconforto, por raiva ou, simplesmente, por protesto contra a sua adversária. Mas se tantos americanos insistiram em Trump em 2020, depois de anos de erros, de mentiras, de logros, de falsas promessas, de perturbações e ameaças, de cumplicidade com a guerra racial ou cultural, de falta de transparência em questões cruciais como os impostos, é porque a democracia se tornou uma moeda de escasso valor facial.

Não é a velha clivagem saudável entre esquerda e direita, entre progressismo e conservadorismo que está em causa: é a oposição entre a decência e a falta de escrúpulo. Se a democracia hesita nesta escolha, é porque se tornou uma banal formalidade.

A responsabilidade do problema não é, como tantos dizem, da imprensa liberal, que fez o seu dever de expor mentiras, o nepotismo ou a crendice no combate à pandemia. Nem das divergências de um país de extremos, apesar das feridas abertas do racismo.

Na procura de uma resposta para a doença da democracia, o efeito Trump pode então ter uma utilidade – a de demonstrar que não há democracia na desigualdade extrema. Quando as classes trabalhadoras dos subúrbios empobrecem, quando 1% dos americanos controla 40% da riqueza nacional, a tolerância acaba, a revolta cresce e a democracia degrada-se.

É neste pântano social e político que nascem fenómenos como o de Trump. Ele, está provado, não tem soluções para o problema (até o agrava via política fiscal). Mas, ao continuar a ser capaz de captar a indignação e o descontentamento, prova que as democracias adoecem quando deixam de se preocupar com as pessoas. Mesmo que perca, a força de Trump está aí como um aviso. Deixou de ser possível vê-lo como um acidente.»

Manuel Carvalho

Os despojos da noite americana

por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 07/11/2020)

Cartoon de António in Expresso, 07/11/2020

1 Mais de três dias para contar os votos e saber quem ganhou uma eleição é próprio de democracias principiantes de África ou da América do Sul, não do país mais desenvolvido do mundo. Que houvesse 160 milhões de votos para contar e muitos deles enviados pelo correio não é desculpa nem justifica que dois estados cujos votos poderiam ter indicado o vencedor 24 horas após o fecho das urnas — Arizona e Nevada — tenham ficado mais de 36 horas depois sem acrescentar nada à contagem em que já iam então, de 86% e 96%. No país da sofisticação tecnológica e científica, ficar a assistir durante três penosos dias ao espectáculo de um processo de contagem pré-histórica de votos, enquanto o candidato que se antevê derrotado clama vitória com 20% dos votos contados e bombardeia os tribunais com pedidos para parar a contagem onde está à frente e prosseguir onde está atrás, é simplesmente degradante. Mas, às 2 da manhã de sexta-feira, assumo que, embora não oficialmente ainda, Joe Biden ganhou a eleição e em termos que obrigarão algumas raras cabeças ainda sensatas do Partido Republicano a explicar a Donald Trump que chegou o momento de declarar “game over”.

2 Que todo o sistema de colégio eleitoral por estados é profundamente estúpido, consentindo regras diferentes de votação e de contagem de votos, já se sabia, assim como se sabia que a justificação de servir para combater o centralismo de Washington contra o poder dos Estados serve apenas para favorecer os republicanos contra os democratas e para poder desvirtuar a vontade popular maioritária expressa nas urnas. Em 2016, Hillary Clinton tinha perdido para Trump apesar de ter obtido mais 3 milhões de votos; agora, Biden ganhou dificilmente no colégio eleitoral, apesar de ter aumentado essa diferença para mais de 4 milhões.

3 Um dos grandes factos políticos destas eleições foram os 4 milhões de votos a mais que Trump recebeu em relação a 2016, fazendo dele o segundo candidato mais votado de sempre, a seguir ao próprio Biden. Grande espanto de muitos com este resultado e imensas teorias a tentar explicar o que não entendem: como é que um tipo tão ignorante, tão boçal, tão impreparado, tão incapaz, tão irresponsável, tão desavergonhado ao ponto de não pagar impostos, de usar o avião presidencial e a Casa Branca para fazer campanha, que não hesitou em lançar mão de todos os truques baixos para se manter no poder (e o mais que vamos ver), consegue, não apenas manter toda a sua base de apoio, com excepção de uma franja significativa de mulheres (honra e gratidão lhes seja concedida!), e ainda acrescentar a sua legião de devotos? Pois, a resposta é simples: por mais sinistro que seja, Trump é igual a metade dos americanos. Estranho não é que ele tenha sido eleito em 2016, estranho é que Obama tenha sido eleito em 2008 e reeleito em 2012.

<span class="creditofoto">ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO</span>ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

4 Por um misto de sorte e oportunidade, tive um baptismo americano determinante para conhecer esse imenso país. Muito jovem jornalista, ao serviço de um jornal já desaparecido, ganhei uma bolsa de uma Fundação americana que me permitiu visitar pela primeira vez os Estados Unidos. Foi tudo descoberta em estado puro, a começar logo pelo primeiro dia, passado em Nova Iorque, quando, estando a jantar em Times Square, assisti a um tiroteio na rua entre a polícia e uns assaltantes de um café, acabando estendido no chão do restaurante e lá retido durante uma hora. Do deslumbramento de Nova Iorque voei para o encantamento de San Diego, na Califórnia, e aproveitei os dias aí passados para atravessar “a fronteira mais cruzada do mundo”, para o México — onde hoje Donald Trump ergueu um muro. E aí, puseram à minha disposição um carro e uma roulotte com capacidade para quatro pessoas, mas onde, sozinho, atravessei os Estados Unidos, de San Diego a Nova Iorque, do Pacífico ao Atlântico, milhares de quilómetros, durante um mês inteiro. New México, Arizona, Texas, Oklahoma, Arkansas, Missouri, Mississípi, Kansas, Tennessee, Arkansas, Virgínia: o cowboy country, o bastião conservador e republicano dos Estados Unidos. Impressionou-me a sensação de imensidão e de incrível liberdade de que gozei nesse mês, a inacreditável mobilidade de uma população que encontrava nos cafés das zonas de serviço das auto-estradas ou à boleia, deslocando-se muitas vezes sem saberem ao certo para onde, apenas porque o país era imenso e havia, seguramente, uma oportunidade de trabalho e de vida algures. E impressionou-me o patrio­tismo exacerbado, doentio mesmo — no culto asfixiante à bandeira, por exemplo. Eu sei que esse patriotismo inquestionável, a par da invocação de Deus a torto e a direito, permitiram aos Estados Unidos convocar os seus cidadãos e vê-los responder à chamada em momentos decisivos da sua história. O problema é que ali, nessa América tão bem retratada por cineastas como Michael Cimino ou Clint Eastwood, o patriotismo tem, como contrapeso, uma ignorância arrogante e larvar, um profundo desprezo e desconhecimento dos outros e um absoluto convencimento de que tudo o que é americano é melhor, é indiscutível e insubstituível. O pequeno mundo intelectual e cultural desses americanos é tudo o que lhes interessa e quanto lhes basta. E não apenas desconfiam dos outros como os vêem como ameaças ao seu modo de vida e aos seus valores. Que Donald Trump pague ou não pague impostos, que faça com que os Estados Unidos tenham 20% dos mortos de covid no mundo quando apenas têm 4% da população mundial, é-lhes indiferente. O que lhes interessa é que, da cabeça aos pés, Trump é um deles. E melhor ainda se não pensa quase nada e se exprime por roncos no Twitter: mais igual a eles fica.

Esta América não tem nada que ver com a da Costa Leste ou a da Califórnia. É outro mundo, outro país, que só militarmente foi derrotado na Guerra Civil. Olhando para o mapa eleitoral destas eleições, percebo que nada mudou desde que por lá passei. O cowboy country continua no seu mundo à parte. Não desapareceram e não diminuíram. E são muitos.

Essa América de Trump foi agora derrotada nas urnas, mas cresceu em votos, cresceu em militância e destemor e cresceu em falta de pudor. Vão procurar a desforra

5 Essa América foi agora derrotada nas urnas, mas cresceu em votos, cresceu em militância e destemor e cresceu em falta de pudor. No Senado, cuja maioria mantêm, entrou uma adepta confessa do QAnon, devota das teorias da grande conspiração pedófila dos democratas, dos seus ritos satânicos e da mentira mundialmente orquestrada da covid-19.

Em quatro anos, Trump soltou todos os demónios impensáveis que habitavam, escondidos, no mais fundo da mais profunda estupidez dessa gente. Foi por isso que, mais uma vez, as sondagens se enganaram em parte: porque muitos deles têm até vergonha de confessar o que são. Confortados com o controlo do Senado e do Supremo Tribunal, eles vão tornar a vida impossível a Joe Biden.

Vão gritar que a eleição foi roubada, vão fazer de Trump um mártir, evitar que ele seja investigado e acusado por evasão fiscal, por conspirar com Putin, por usar o cargo para traficar influências, por ter perseguido e despedido funcionários que apenas cumpriram o seu dever. Por mais que Biden queira conciliar com eles, eles vão procurar o confronto e a desforra, vão promover os conflitos raciais e a violência nas ruas e vão preparar o regresso de Trump em 2024. Nada os parará, a não ser uma não esperada revolta do Partido Republicano contra o fanatismo ideológico que tomou conta do Partido.

6 Há aqui uma secção de intelectuais a que eu acho muita graça. E acho-lhes muita graça porque passam a vida a citar os livros, os filmes, as séries televisivas, os discos e os artigos de jornais americanos que leem, mas que, quando chega às eleições americanas, declaram, em tom superior, que essa coisa de os nossos media e os nossos colunistas (como eu) se preocuparem tanto com as eleições americanas é uma espécie de saloísmo, pois que isso é assunto da exclusiva competência dos americanos. Só para lembrar, então: estamos a falar do país que detém a maior capacidade militar e nuclear do mundo mas que nos exige 2% do PIB em despesas com a defesa comum na NATO, sem, em contrapartida, garantir as suas próprias obrigações face ao artigo 5º do Tratado; do país que responde por mais de um terço das emissões de CO2 do planeta e que acaba de oficializar a sua saída do Acordo de Paris; do país que amea­ça a UE com uma guerra tarifária se Bruxelas ousar taxar os lucros obtidos na Europa pelas gigantes americanas das telecomunicações; do país que declarou guerra à China (embora, por baixo da mesa, mantenha acordos com ela) e cujo embaixador em Lisboa nos ameaça de tratamento de inimigo se não alinharmos nessa guerra. Tudo isto é fruto da política de Donald Trump nos últimos quatro anos. E querem que tudo isto e a hipótese de mais quatro anos disto nos seja indiferente, enquanto eles lêem as suas revistas americanas de culto e vêem as suas séries preferidas da Netflix, comendo as suas bolachas encomendadas à Macy’s através da Amazon?

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia