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quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Fantasmas de um Natal passado

Posted: 17 Nov 2020 03:36 AM PST

«"Mais do que nunca, as novas políticas devem atuar na margem". Esta foi a frase escolhida por Mário Centeno, durante a 10.ª conferência do Banco de Portugal, para defender a limitação dos apoios do Estado à economia, em volume e duração.

O governador admite que a crise terá efeitos estruturais mas recusa qualquer alteração de fundo nos apoios sociais ou um apoio "massivo" à economia. Preocupa-o que o investimento público vá além dos projetos já em curso e que sejam criadas "barreiras à mobilidade do trabalho", ou seja, medidas legais que visem travar os despedimentos.

Com palavras diferentes e de forma mitigada, o argumento de Mário Centeno tem a mesmíssima matriz ideológica que, no passado, sustentou as políticas de austeridade e as "reformas estruturais" que castigaram o país.

Porém, sem medidas orçamentais e legais para manter empregos e penalizar os despedimentos (como o aumento do valor das indemnizações aos trabalhadores despedidos), o resultado será o aumento brutal do desemprego, muito dele de caráter estrutural. Após a pandemia, este desemprego não será absorvido pelos setores que Centeno designa como "mais dinâmicos". Sobretudo, isso não acontecerá sem um investimento público forte e dirigido, combinado com um apoio massivo que sustente rendimentos, pois é da procura interna que depende boa parte das empresas. E, mesmo com a adoção dessas políticas (coisa que o Governo resiste a fazer), o desemprego aumentará. Sem novas regras para os apoios existentes e a criação de outros, este novo desemprego só pode transformar-se em desigualdade e pobreza, agravadas e estruturais.

Mário Centeno conforma-se com o pior cenário. E tudo em nome de uma preocupação - o aumento da dívida pública. Ora, a realidade já provou que a dívida é caprichosa e ingrata, que se alimenta do desemprego e da recessão. Políticas débeis, como aquelas sugeridas por Centeno, não conseguirão evitar essa deriva.

Mais eficaz seria, como referia o presidente do Parlamento Europeu, cancelar a dívida gerada no combate à covid. Fazê-lo é apenas uma decisão política. Mas o que pode esperar-se, quando vemos os partidos socialistas europeus a defenderem condicionalidades para o acesso aos fundos de recuperação, chegando a admitir sanções por incumprimento das orientações da Comissão?

Com a crise regressa, pelas mãos do costume, o discurso das inevitabilidades. Em 2012, os decisores europeus escolheram impor um plano de reengenharia social e económica baseado no empobrecimento da população trabalhadora. Impõe-se um corte definitivo com as ideias que geraram aquelas políticas erradas. E engana-se quem achar que a experiência do passado faz desta uma batalha ganha. Ela está só a começar.»

Mariana Mortágua

O que o “Gambito da Rainha” nos ensina sobre a vida (e a política)

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 17/11/2020)

Para bastante gente, “O Gambito da Rainha” tem sido uma acolhedora companhia no semi-confinamento em que vivemos. A série tem tido sucesso, seja porque junta uma personagem fascinante, mesmo que puramente ficcional, Elizabeth Harmon, a algum romance, pouco, ao retrato sofrido das esquinas da vida, ou ainda a uma pitada de Guerra Fria em tom de época, seja, e sobretudo, porque se constrói sobre um mistério. Esse mistério é o xadrez, dois exércitos de oito peões e oito aristocratas frente a frente num pequeno tabuleiro.

Representando uma batalha, o jogo de xadrez foi-se transformando numa lenda, entendido como a encarnação do artifício estratégico, da inteligência da antecipação e da vontade de vencer. Outros jogos de outras latitudes cumprem essa função, mesmo que de forma distinta, valorizando mais a posição do que o movimento (o go chinês, por exemplo). No entanto, o xadrez cria uma representação de poderes diferenciados (o bispo, a torre, o cavalo, o rei e a rainha, ou os peões, que eram tão importantes para Beth Harmon), que gera assim uma tal complexidade de movimentos e estratégias que o torna sempre surpreendente. É dessa complexidade que lhe quero falar, porque ela nos pode ensinar alguma coisa.

Entre os economistas, o xadrez tem uma história. Foi a imagem usada por Herbert Simon, Prémio Nobel em 1978, para explicar a alguns colegas porque é que a sua fábula dos mercados perfeitos e da racionalidade maximizadora estava errada. Imaginem um jogo de xadrez, que é um tabuleiro fechado e com poucas peças, sugeriu ele. O número de jogadas possíveis é tão elevado que nenhum jogador as pode adivinhar a todas e, portanto, nunca pode ter a certeza de que a sua jogada é a melhor. Mesmo nestas 64 casas, em que não entra mais ninguém e as regras nunca mudam, não há informação completa e a trajetória ótima é incalculável. Como é que me podem então dizer, perguntou Simon, que um mercado com milhões de empresas e de pessoas vai gerar um caminho ótimo que contentará toda a gente, ou que agentes omniscientes vão saber qual é essa solução?

Simon tinha razão. Antes dele, já um matemático brilhante, Claude Shannon, tinha divulgado em 1950 o seu cálculo de quantas jogadas são possíveis num jogo de xadrez. Queria programar um computador teórico, quando as máquinas ainda mal começavam a ser inventadas, e publicou a sua conclusão numa revista de filosofia. Admitindo quarenta movimentos de cada parte (Hamon venceu várias partidas com trinta, mas seria genial) e trinta possibilidades em média para cada movimento, o número de jogadas possíveis seria de 10120 (outros fizeram cálculos superiores). Em comparação, o número de átomos do universo será de cerca de 1080 e o número de segundos desde o Big Bank, ou desde a formação do universo, de cerca de 4,4*1017, ou 13,7 mil milhões de anos. Há muito mais jogadas possíveis num jogo de xadrez do que segundos na história do universo ou do que todos os seus átomos. Ninguém pode conhecer ou antecipar todas.

Nem por isso os grandes jogadores de xadrez não deixam de prever várias das alternativas de que dispõem ou que os seus adversários terão para lhes responder, mesmo que não as possam conhecer a todas. Se viu a série, lembrar-se-á de que esse era a força de Beth Hamon, ela imaginava, simulava e comparava um grande número de soluções possíveis. Portanto, o facto de o jogo ser imprevisível na sua totalidade não impede que se tomem decisões bem fundamentadas e que podem levar à vitória. Se a metáfora deste jogo serve para a vida, que é ainda muito mais complexa – em que entram novas peças e jogadores, as regras são alteradas e a história muda –, então indica que se podem fazer escolhas, pelo menos sobre os riscos do futuro que vamos reconhecendo. E é aqui que entra, entre muitas outras questões da dia a dia, a política.

Ora, ao contrário da pretensão daqueles economistas que, para defenderem o liberalismo radical, inventaram a ficção de um agente económico que sabe tudo sobre o presente e o destino do universo, na política tende a predominar quem só se preocupa com a jogada imediata. O tempo parece mesmo ser dos jogadores tonitruantes. Num mundo de hiper-comunicação e num contexto em que a direita explora as técnicas do trumpismo, ou seja, o ressentimento como combustível político, parece só contar a próxima jogada: o máximo de barulho, o máximo de ódio, o máximo de atenção. O problema é que existe sempre um amanhã. A estratégia trumpista resulta enquanto estivermos presos a sucessivos hojes, enquanto o medo se instalar no imediato, enquanto se olhar para o lado e não para a frente. Mas o facto é que esta estratégia tão bem sucedida levou à derrota de Trump, mesmo quando tinha o aparelho institucional mais poderoso do mundo ao seu dispor.

Não vale a pena a ilusão de que este processo só ocorre na direita. Ele contamina quase toda a política: a busca do efeito do anúncio pelos governos é mais cuidada do que a concretização de promessas. Governos que apresentam planos de apoio aos trabalhadores em lay-off, aos da cultura, aos dos restaurantes, aos informais, e que depois a poucos chegam, não é só o caso deste cantinho à beira-mar plantado. A corrida à televisão para apresentar programas, anúncios, linhas de financiamento, tornou-se uma segunda pele da política. E depois descobre-se que casas de Pedrógão não foram reconstruídas, que nenhum trabalhador informal recebeu em novembro, que houve linhas de crédito que não foram regulamentadas, que o investimento ficou por metade, que os prazos passaram.

Na resposta à pandemia é onde esse mecanismo de ilusão se torna mais ameaçador, estamos a assistir à rápida e autorizada decadência do serviço nacional de saúde. Então, entre o caso dos xadrezistas que ganham por calcular longos caminhos, e é a qualidade do jogo, e o dos governantes que procuram apoio imediato e ignoram o dia seguinte, e parece ser a circunstância da política, não haverá, apesar de tudo, a possibilidade do bom senso, pelo menos na saúde? Talvez disso dependa o futuro imediato de Portugal. Aprovar as condições para um SNS com capacidade suficiente significa fazer com que, neste caso, a democracia vença a desigualdade. Por isso, como podemos escolher, mesmo com a incerteza sobre o que vem pela frente, devemos fazê-lo.

Este catastrófico fim de 2020 e o ano de 2021 são o tempo em que ou remendaremos, para continuar a penar o atraso, ou reconstruímos esse serviço de proteção social. Pela minha parte, vou medir as respostas dos políticos, como agora se diz, pelo que fizerem para garantir a proteção da saúde da nossa gente. O Gambito da Rainha é o nome de uma abertura da partida. Uma boa ideia. Mas, para Portugal, talvez o mais importante seja o que os jogadores não podem e nós temos que fazer: alterar a regra do jogo.

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Ventura já deu a Rio a “moderação”. É ver o que se segue

Posted: 16 Nov 2020 03:43 AM PST

«As eleições dos Açores provocaram uma mudança no sistema político impossível de imaginar há algum tempo. A ideia de que os partidos da direita estavam prontíssimos para se aliar à extrema-direita já tinha sugerido por Rui Rio quando afirmou na entrevista à RTP que tudo podia acontecer “se o Chega se moderar”. A minimal polémica que estas palavras suscitaram dava a entender que o PSD estava pronto para a associação. Já está: em domingo de recolher obrigatório o deputado André Ventura dá uma entrevista à Lusa em que oferece aquilo que Rui Rio tinha pedido: a sua “moderação”. Não é preciso mais nada para que uma coligação pré-eleitoral venha a ser possível. Ou um lugar de relevo num futuro governo. A avaliar pelo entusiasmo que vai na direita por finalmente agora começar a ver a possibilidade de chegar ao poder, tudo parece possível para o partido Chega.

É verdade que nem toda a direita está de acordo com esta mudança estrutural que teve como corolário épico a negociação para o governo PSD nos Açores. Neste jornal, Pacheco Pereira e Francisco Mendes da Silva já escreveram sobre o fenómeno. Na edição desta segunda-feira, Jorge Moreira da Silva, claramente atónito, pede um congresso para definir política de alianças. Infelizmente, desconfio de que estas são posições minoritárias. A direita já incluiu o Chega nas suas contas e caminha alegremente para a bancarrota política.

Então qual é a “moderação” que Ventura ofereceu a Rui Rio? Demarcou-se de Salazar e manifestou-se contra a penalização do aborto. Quanto ao casamento gay, apesar de o partido ser contra, ele defende o princípio legal e também não defende o princípio legal. Ou, para o citar ipsis verbis, desmentindo a entrevista da Lusa em que quase se declara a favor do casamento gay: “Fake news. Em momento algum disse ser a favor do casamento homossexual. Falei de direitos que as pessoas homossexuais não podem deixar de ter”. O que o líder do Chega disse na entrevista é o seguinte: “A minha posição pessoal é a de que um casal de homens ou de mulheres não deve ter menos direitos do ponto de vista da sua presença na sociedade do que um casal homem-mulher”. Estava feita a declaração para efeitos de moderação e, depois, segue-se o desmentido para satisfazer o partido. Este é o procedimento, mas é muito possível que seja o suficiente para Rio ficar satisfeito.»

Ana Sá Lopes

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

No desespero, não estamos todos no mesmo barco

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 16/11/2020)

Daniel Oliveira

Independentemente dos abusos a que assistimos nas manifestações de empresários e trabalhadores da restauração, não nos devemos desviar do essencial. E o essencial não são os oportunistas que organizaram a descida da Avenida da Liberdade e se colaram àquelas pessoas no Rossio, liderados por um menino de gestão que tem um primo que tem um hotel, que por acaso é do Chega e que “sozinho” organizou uma manifestação “apartidária”. Esses são os abutres do costume.

O fundamental também não são algumas das exigências que podemos considerar excessivas, entre as quais está seguramente a ideia de que o Estado deve qualquer apoio a empresas que não pagaram os impostos que deviam - como se a solidariedade só tivesse um sentido. O importante também não é os protagonistas que mais aparecem, cuja situação será das que menos me preocupa. O fundamental é que há um sector (não é o único) que está a desabar e que isso terá repercussões devastadoras na economia e no emprego.

Não estou seguro de que o "meio confinamento" de fim de semana seja uma medida sensata. Já o disse: a ausência de números fiáveis, resultado da saúde pública ter sido sempre o parente pobre de um sistema hospitalocêntrico, torna arriscado este tipo de escolhas. E é considerável a probabilidade de o mal causado ser maior do que se pretende prevenir, por não sabermos ao certo que parte dos famosos 67% resultam de contactos familiares fora do agregado familiar.

Esta pandemia é, para quem queira mais do que procurar um culpado, uma boa lição de política. O hábito de resumir tudo a “vontade política” esbarra com aquilo que a política realmente faz: escolhas que têm quase sempre consequências negativas. A infantilização da nossa comunidade, viciada na “denúncia” e com pouco hábito de reflexão coletiva, imagina que basta a ação de políticos honestos e informados para que tudo corra pelo melhor. Isso não existe. Neste caso, a escolha é entre deixar os cuidados intensivos chegar ainda mais depressa ao seu limite ou destruir a economia. É algures entre as duas coisas que estará a escolha menos errada. Quanto pior for a informação com que os decisores trabalham maior a probabilidade de erro. Coisa que o político que “não gosta de gabinetes” mas de “obra feita” nunca percebeu. Nem os eleitores que o apreciam.

Vivemos, na primeira vaga, num quase consenso. A crise começou logo a sentir-se em vários sectores, mas havia a convicção generalizada de que isto ia passar mais ou menos depressa. Agora, quando começa a ficar claro que a pandemia não acabará a tempo de salvar os que vivem as situações mais dramáticas, as posições deixaram de depender de divergências de opinião, mesmo que influenciadas pelo contexto de quem as tem. Passaram a ser uma luta pela sobrevivência. É difícil pedir a quem perde o emprego ou tudo o que tinha que ignore o seu drama pessoal em nome de um bem comum, que é sempre mais abstrato e, neste caso, com uma enorme margem de dúvida. Não é egoísmo, é desespero. E num país pobre, vai ser ainda mais difícil responder a este desespero.

Na primeira vaga, parecia que estávamos todos no mesmo barco. Com a pandemia e a crise, o barco está a afundar-se, aqui e em quase todo o lado. E fica cada um no seu bote, dependente das suas circunstâncias. É o preço que pagamos por sermos um dos países mais desiguais da Europa e um Estado Social demasiado curto, ao contrário do que nos vendem há anos.

Não tenho como dizer a quem vive uma tragédia pessoal que se esqueça de si e dos seus e pense primeiro nos outros. Essas pessoas têm direito a estarem cansadas. Porque o seu cansaço resulta de um caminho para o abismo sem fim à vista.

À crise económica sucede uma crise social. E a elas sucederá uma crise política, que serão os mais irresponsáveis a aproveitarem primeiro. Por isso, é fundamental que não se instale um ambiente de censura social à crítica, que apenas favorecerá quem não olha a meios para ter ganhos políticos. Com sentido de responsabilidade e não promovendo uma desobediência que num momento como estes se paga com vidas e apenas daria argumentos para limitar liberdades, não se pode entregar a divergência aos “aldrabões pela verdade”. Os que realmente querem ajudar com a sua crítica não seguem o caminho fácil de negar a origem do problema. Já os negacionistas organizados apenas querem lucrar com a tragédia sem ter de discutir as soluções.

É difícil, em momentos como estes, ouvir a razão. Mas os que vivem as situações mais dramáticas não se devem entregar nos braços de quem usa a sua tragédia para instalar um caos que tornará tudo ainda mais demorado e penoso. Os restantes, sobretudo os que com toda a fadiga não vivem dramas destas dimensões, que baixem o dedo acusador. O desespero não desculpa tudo, mas exige a nossa capacidade de ouvir quem grita.

15.11.1969 - Washington: «Give Peace a Chance»

Posted: 15 Nov 2020 03:42 AM PST

Há 51 anos, nuns EUA hoje irreconhecíveis, teve lugar «Moratorium March on Washington», considerado o maior protesto anti-guerra da história dos Estados Unidos, contra o conflito que então tinha lugar no Vietname: uma manifestação quase totalmente pacífica de meio milhão de pessoas, que se integrou num vasto movimento que percorreu a América, de S. Francisco a Boston, e não só. Apesar disso e como é sabido, a guerra em questão iria durar ainda quase seis anos, até 30 de Abril de 1975.

No protesto de Washington participaram políticos como Eugene McCarthy, George McGovern e Charles Goodell e cantores como Peter, Paul and Mary, Arlo Guthrie, John Denver e Pete Seeger que interpretou a celebérrimo canção «Give Peace a Chance» (lançada por John Lennon na Primavera desse ano), juntamente com os outros cantores e com a multidão que a terá repetido durante dez minutos.