Translate

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Oxalá

 


por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 25/12/2020)

1 Tarde e a más horas, nomearam um coordenador de uma task force encarregado de gerir o plano de vacinação nacional contra a covid, Francisco Ramos. Passado mais de um mês, não entendi bem por quem é formada a dita task force, como é que está organizada e coordenada. E também não entendi quais são ao certo os poderes e até as informações ao dispor do coordenador, visto que sobre o plano de vacinação umas vezes o oiço falar a ele, outras à ministra, outras ao primeiro-ministro e outras ainda à agora regressada directora-geral. Esta segunda-feira, foi a vez de ouvirmos o coordenador, numa breve entrevista ao “Público”. Perguntado onde iriam ser administradas as primeiras 7500 doses “simbólicas” de vacinas a profissionais de saúde, já daí a uma semana, respondeu que “a lista ainda não está fechada” (nessa mesma noite a ministra deu a lista). Perguntado a seguir se havia muitos profissionais de saúde que não quereriam vacinar-se, disse que os únicos dados que tinha eram de um hospital que conhecia. Perguntado depois como iriam fazer com o elevado número de pessoas internadas em lares com demência, em termos de consentimento para a vacinação, respondeu textualmente: “Essa é uma questão que ainda terá de ser esclarecida. Acho que devemos solicitar um parecer ao Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida.” E se o parecer não chegar a tempo? Resposta. “Hão-de ser vacinados ou não, mesmo sem parecer. Como é que se fez na gripe?” Enfim e mais importante: confrontado com a afirmação do presidente da Associação de Medicina Geral e Familiar de que não existem só 400 mil pessoas com mais de 50 anos e doenças que os habilitam para a primeira fase de vacinação, mas sim o dobro, respondeu que a DGS está a trabalhar para se fazer uma “caracterização mais fina” (um dos palavrões da moda trazidos pela pandemia). De qualquer maneira, acrescentou o coordenador, “os 400 mil são meramente uma estimativa, não se fez uma identificação prévia”. Meramente uma estimativa: 400 ou 800 mil, meramente um pormenor...

Acrescente-se a estes esclarecedores esclarecimentos de quem já devia saber tudo, que também não se sabe como é que serão contactadas as pessoas sem telemóvel (nas aldeias, segundo o coordenador, será por “recados”), não se sabe como é que os centros de saúde elaborarão o historial clínico do milhão de pessoas que não está lá inscrito ou que não tem médico de família atribuído, para poderem inscrevê-las nas diversas fases de vacinação; que não consta que o pessoal dos centros de saúde esteja a ser treinado para administrar a vacina da Pfizer, cujo manuseamento é diferente de qualquer outra; que nem sequer foi assegurado publicamente, preto no branco, que toda a cadeia de transporte e distribuição (que, por exemplo, a Alemanha ensaia desde Agosto e a Espanha desde Setembro), esteja a postos e pronta a funcionar todos os dias, sem falhas, nem feriados, nem tolerâncias de ponto.

Enfim, juram-nos que está tudo a postos (como estava para a vacina da gripe...), que andrá tutto benne, e o coordenador garante-nos que, se um avião chegar à Portela com vacinas às 11h da manhã, às 15h já estarão a injectá-las. Oxalá desta vez desmintam a nossa fatal tendência para o improviso, para a desorganização e falta de planeamento, para a incompetência e indisciplina. Oxalá não confiem tudo ao nosso tradicional dom para o desenrascanço, para safar à 25ª hora o que não fizemos nas 24 horas anteriores. Oxalá eu esteja mil vezes enganado, quando, a três dias do tiro de partida, pressinto que isto das vacinas tem tudo para correr mal.

<span class="creditofoto">Ilustração Hugo Pinto</span>
ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

2 Formou-se uma comissão, baseada na Faculdade de Ciências, com a missão de tentar descobrir as causas da persistentemente elevada taxa de mortalidade covid entre nós, sem paralelo com os outros indicadores e sem comparação com os outros países — com excepção da Suécia, o país que adoptou como política de combate à pandemia a opção de deixar morrer os velhos. Oxalá, então, descubram que o problema é de ordem científica e não de ordem política.

3 Um dia, quando tudo isto passar — porque há-de passar —, haveremos de ter de contar a indecente história de como as nossas sociedades ricas, cómodas, dotadas de todas as facilidades e confortos, abandonaram os seus velhos para morrerem em lares que se transformaram em pavilhões de morte ou sozinhos em casa, vergados à solidão mais miserável. Teremos de contar como aquela infelicíssima — e quero crer que impensada — declaração de que este era um “vírus bonzinho que só mata velhos” serviu para libertar todos os egoísmos e todas as responsabilidades, desde os mais novos, que se sentiram imunes ao perigo, até a alguns da tão elogiada “linha da frente”, que se sentiram livres e respaldados para decidir, em nome de toda a restante sociedade: em Espanha, o país cujo Governo pior geriu a crise, no auge do aperto, veio de cima uma ordem clara: velhos infectados vindos dos lares, não eram recebidos nos hospitais. Um dia teremos de contar essa triste e feia história. Um dia, quando esta geração, que hoje se sente tão orgulhosamente imune à covid e que continua a enxamear os centros comerciais a comprar as últimas compras de Natal, estiver a reclamar o direito a receber gratuitamente medicamentos que custam milhares de euros para lhes garantir mais um ano de vida.

4 A pandemia tem sido propícia a teorias conspirativas para todos os gostos e nem todas se alimentam da estupidez de rebanho das redes sociais. Algumas são encabeçadas por gente que aproveita o desnorte e a desesperança colectiva para propor supostas explicações e soluções já várias vezes ensaiadas em vão e em diferentes contextos. É o caso da teoria, muito acarinhada por sectores da extrema-esquerda colectivista, de que o perigo da pandemia tem sido exagerado e de que a ordem de batalha, assente na defesa da saúde pública, conduz à ruína da economia e ao consequente agravar das desigualdades sociais. Curiosamente ou não, a extrema-esquerda encontra-se aqui com os argumentos da extrema-direita de Trump e Bolsonaro ou dos negacionistas que proliferam no esgoto das redes. É verdade que a pandemia tem arruinado as economias e que isso agrava, como sempre, as desigualdades sociais. Mas, não falando já do dever elementar dos Estados de defenderem a saúde dos seus cidadãos, a única forma de, a prazo, defender a economia é evitar o caos na saúde pública: uma sociedade doente conduz fatalmente à ruína económica. Por ora e depois, os Estados têm de fazer aquilo que estão a fazer e que irão continuar a fazer: injectar o dinheiro que puderem na economia para salvar famílias, empregos e empresas. Entretanto, o marxismo-leninismo pode esperar.

5 Pinto da Costa anunciou o seu apoio à candidatura de Ana Gomes assim que soube que Ana Gomes declarara o seu apoio à regionalização — sem referendo nem nada, não vá o povo, consultado por capricho democrático, voltar a recusar e humilhar as pretensões dos caciques partidários provinciais e das vestais constitucionalistas. Eis aqui duas razões para eu não votar em Ana Gomes: Pinto da Costa e a regionalização. Ambas trazem assegurada uma mesma certeza: a da ruína certa.

6 Eu sou dos que têm pena de ver a Inglaterra sair da Europa, mesmo não ignorando que, verdadeiramente, ela esteve sempre lá com um pé dentro e outro fora. Mas, simultaneamente, também penso que os cidadãos britânicos saem por razões sem sentido, de puro orgulho e vaidade espúria, numa aliança assente em valores do passado entre o snobismo irritante das classe altas e os leitores do “Sun”. Merkel fez tudo para evitar essa saída e fez tudo para evitar que ela se procedesse desordenada e desagradavelmente, como um divórcio litigioso. Ela travou o instinto de muitos dos 27 de “castigar” a Inglaterra, mostrando a outros, tentados a seguir a mesma via, que não compensa abandonar a UE. Mas é difícil negociar com quem prometeu aos ingleses que sair era facílimo e que, sem as amarras da UE, a Inglaterra iria ser “próspera”, mas que, na hora da verdade, mostrou qual a chave dessa prosperidade: conseguir acesso ao grande mercado europeu como antes, mas sem as regras comuns, como antes. Desgraçadamente para os ingleses, nesta darkest hour, eles não têm à frente dos seus destinos um estadista como Angela Merkel, mas sim um espalha-vento como Boris Johnson. Talvez ainda se consiga um daqueles acordos do último minuto da última hora do último dia. Mas será um acordo colado com cuspe e sujeito a todas as desconfianças e conflitos permanentes no futuro.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

sábado, 12 de dezembro de 2020

Aceita pagar 10 cêntimos ​​​​​​​à viúva de Ihor Homenyuk?

por estatuadesal

(Daniel Deusdado, in Diário de Notícias, 11/12/2020)

Neste momento parece fácil bater em Eduardo Cabrita mas já aqui havia escrito que o ministro da Administração Interna devia ter saído muito antes - aquando do caso do escândalo das golas antifogo, durante o primeiro Governo socialista. Já nessa altura se percebia que não havia um "ethos" no ministério e que faltava noção do que ali passava. Este caso permite compreender, de novo, como foi tão fácil chegar-se à total bandalheira na qual agentes do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) mataram uma pessoa acabada de chegar a Portugal e esconder o caso durante semanas. Um grau de inimputabilidade desta dimensão não sucede de um dia para o outro.

António Costa leva demasiado longe a ideia de que em política tudo se esquece, mas errou tremendamente ao ter insistido, no novo Governo, num companheiro de partido de velha escola - que já se havia mostrado totalmente desadequado para os tempos que vivemos. Não ter agido mais cedo perante um caso desta gravidade é esquecer muito do que fez e disse ao longo da vida.

Não podemos recuperar a vida do ucraniano Ihor. A viúva talvez receba um milhão de euros de indemnização. Dividido o custo por todos, são 10 cêntimos por português para compensar o crime, uma pechincha enquanto tira-nódoas da honra de um país. Mas esta moeda deveria simbolicamente representar a pergunta dos 10 milhões de portugueses: quem são exatamente estes agentes do SEF? Vão continuar a ser servidores do Estado? Como é possível agirem assim em Portugal, século XXI, aeroporto de Lisboa?

Assusta-me que esta gente exista. E que uma organização policial portuguesa chegue a este limite. Se morrem pessoas... bom, qual terá sido o clima de terror físico e psicológico durante meses (anos?) dentro daquelas paredes. Não me reconheço nesse país e nunca me ocorreu, ao passar regularmente por inspetores do SEF nos aeroportos nacionais, ter razões para temer a sua brutalidade.

Que isto demore nove meses a apurar pela Inspeção Geral da Administração do Território é o melhor indicador sobre a total ineficácia e regular abuso do Estado - seja no SEF, sejam em tantos outros organismos públicos que cada vez mais deixam de responder sine die ou aterrorizam por abuso de autoridade.

Recordo-me bem da noite de 29 de Março de 2020. Era um domingo à noite de um país dramaticamente confinado. O mundo desabava pela covid-19, as imagens de Itália e Espanha traziam a morte galopante. Na TVI, no Jornal das 8, José Alberto Carvalho demonstrava a dificuldade em escolher qual das duas brutais manchetes do dia devia ser mostrada em primeiro lugar aos telespectadores. Optou pela pandemia por breves minutos, mas logo depois apresentou o caso "SEF". Três dias depois o DN encetou um trabalho exemplar para detalhar como foi possível chegar-se ao homicídio. Outros surgiram depois. Pouco eco. Nenhuma reação significativa no Governo.

O caso Ihor. Era tão inacreditável que parecia impossível que fosse mesmo assim. Um funcionário do SEF finalmente quebrara o jugo do medo e contara à Imprensa o que acontecera. Fê-lo porque presumiu que nunca saberíamos disto pelos circuitos internos do SEF.

(Aliás, no SEF, quantos sabiam? Que gritos ecoaram no aeroporto? Ninguém tentou ajudar? Que vestígios foram apagados? Que repressão existe sobre as pessoas que ganham a vida a limpar o chão e as paredes das "Salas de Tortura SEF" sem que possam perguntar de onde vem aquele sangue e ter direito a uma resposta?)

E isto é ainda mais angustiante porque o meu país não é isto. Portugal supostamente recebe bem os estrangeiros, tem forças de segurança civilizadas e leis com respeito dos Direitos Humanos. Pior: como demorar nove meses a tirar conclusões e a mudar aquela estrutura de cima a baixo? Alguém enlouqueceu ou perdeu-se a total decência?

Falarmos de Eduardo Cabrita é já perder tempo. Penso sim na brutalidade de quem matou Ihor. E vejo nisto a impunidade do novo tempo, alimentada pelo discurso de ódio de Trump em controlo remoto pelo mundo. Que por cá também se instalou, bem demonstrado na deflagração de extremismo fascista dentro nas forças policiais, como se vai vendo nas redes sociais ou em privado.

Mudar o SEF não chega. Ou o Estado gasta dinheiro a avaliar a saúde mental das diversas polícias, ou há muito mais em causa. Polícias sem medo da lei são o melhor instrumento para instalar a prazo um regime autoritário, mesmo que democraticamente eleito. Não fazer deste caso um aviso sério é desistir-se da decência e da liberdade.

Os mortos de Camarate

por estatuadesal

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 11/12/2020)

Clara Ferreira Alves

Teorias da conspiração, cada um tem a sua. A minha é a do caso Dominique Strauss-Kahn. O diretor do FMI que foi preso e acusado de ter violado uma empregada do hotel francês em Nova Iorque onde ocupava a suíte presidencial. Naquela época, DSK estava na calha para ser o futuro presidente de uma França que odiava Nicolas Sarkozy. E era uma ameaça ao mundo nebuloso da alta finança internacional, criticando o comportamento da banca e instituições financeiras que levou à crise de 2008 e que, em 2011, quando ele foi apanhado, estava a preparar a desintegração da Europa. Se DSK tivesse prevalecido, a crise da dívida soberana teria sido diferente, e os resgates da Grécia e de Portugal também. Um dia, será feita a história completa deste período. O que temos são peças de um puzzle e cada um junta as que pode e sabe.

DSK tinha uma vida sexual pouco convencional e foi caçado na teia das “indiscrições”. Não havia melhor candidato para uma armadilha sexual, e caiu nela. Quanto a Sarkozy, acusado de corrupção ao mais alto nível, também não havia melhor candidato para uma conspiração destas. O próprio DSK previra, pouco tempo antes, que Sarkozy tentaria armadilhá-lo sexualmente e estender-lhe a famosa honey trap, truque dos serviços secretos que espiam as vulnerabilidades pessoais. O erro de DSK foi, ao intuir a trama, não resistir ao mel. Era um pecador convicto e descuidado.

É a minha convicção. Destituída de provas e não destituída de convencimento lógico misturado com emocional, uma mistura explosiva. Jay Epstein escreveu um relato minucioso e cronológico da armadilha na “New York Review of Books” que me convenceu, demasiadas inconsistências polvilhavam a versão da assaltada e mesmo das autoridades policiais de Nova Iorque, que não resistiram a passear DSK no famoso perp walk e assim espatifar-lhe a carreira para sempre. Com a passagem do tempo e a pressão do movimento Me Too e da cancel culture, o dito Epstein acabaria por rever a teoria, sem deixar de manter o essencial. DSK foi armadilhado? Por quem? Nunca saberemos.

As mortes de Francisco Sá Carneiro e Snu Abecassis, Adelino Amaro da Costa e mulher, de António Patrício Gouveia, dos dois pilotos, foi inesperada e traumática. Para quem viveu aqueles tempos de uma política perturbada pela violência e o radicalismo, pelas derrotas e vitórias torturadas, o acidente de Camarate teve contornos duvidosos. E para quem esteve na última conferência de imprensa de Sá Carneiro no Hotel Tivoli, ao lado do candidato Soares Carneiro, e viu e ouviu um chefe político manipular a íntima certeza de que sairia derrotado da contenda contra Eanes e a esquerda ao mesmo tempo que apregoava a vitória, a contemplação na longa noite dos destroços fumegantes engendraria um pesadelo sem despertar. Nada, naquelas eleições, fora normal.

Sá Carneiro, um homem com olhos azuis de aço afiado e magnetizado pelo chamado carisma, foi atacado pelo Partido Socialista por causa da ligação com Snu Abecassis de uma forma soez. Hoje, os tempos são mais civilizados. Por sua vez, a direita reacionária e negacionista corria a albergar-se debaixo do chapéu largo do PPD/PSD, não escondendo o ódio aos socialistas, que por sua vez odiavam e eram odiados pelos comunistas. Polarização, chamava-se isto. No CDS, Freitas do Amaral, com Amaro da Costa, tentava civilizar a direita. Em frente à sede do PS, no Largo do Rato, desfilava-se com a saudação nazi. Dentro do edifício, havia quem preparasse a resistência armada. Sobravam armas, resultado de uma descolonização apressada, e muita gente escondia-as em casa à espera de as usar. Portugal evitou a guerra civil graças aos chefes civilistas, Sá Carneiro, Mário Soares, Diogo Freitas do Amaral, e graças à moderação e autoridade do militarão Ramalho Eanes, que se revelaria um general estadista. Naquele tempo, não era claro que o fosse. As paixões espumavam, e o PS vivia num clamor contínuo, dilacerado entre uma direita acirrada e a ameaça de Cunhal à esquerda. Ontem como hoje.

Soares Carneiro era um candidato deplorável, um general inexpressivo e opaco, que Sá Carneiro vendia sabendo que não conseguira arranjar melhor e que fora buscar contra um Ramalho Eanes fortíssimo, o mesmo Eanes que valeu a Mário Soares um dos combates maiores pelo comando do partido que fundara.

Conhecendo as limitações da AD, a Aliança Democrática, e das franjas do PPD/PSD, da direita não alinhada, Sá Carneiro era um homem só. Mais inteligente do que as hostes, mais desconfiado, mais preocupado do que parecia. Este católico conservador clássico, que não apreciava a esquerda, sabia que construir uma ala direita forte num país saído de uma ditadura de décadas, com uma classe dominante constituída por uma alta burguesia inculta e um empresariado incipiente, que não apreciavam a diminuição dos poderes e a transferência democrática, significava fazer concessões e alianças com gente pouco recomendável e indisciplinada. A esquerda era demasiado poderosa, apesar de dividida. Rodeado dos delfins, a massa crítica e a gente mais inteligente do partido, ou seja, rodeado de elitistas, sabia que o país não era aquilo. Portugal era um amálgama de teorias, armadilhas, golpes, contragolpes, rumores e intrigas. Na sombra, apoiado por Moscovo, o brilhante e perigosíssimo Álvaro Cunhal ainda esperava a hora de derrotar o 25 de Novembro de vez.

No Tivoli, a temperatura era de escaldar. Berros, imprecações. Recém-chegada ao jornalismo e à política, lembro-me que olhei para aquilo como quem assiste a uma ópera bufa. Observei como um dos criados da política, os assessores antes de o serem, ser mandado entregar uma pergunta a uma famosa jornalista da televisão, já falecida, para ela fazer a Sá Carneiro. A pergunta ia num papel. E nem se preocuparam em esconder a manobra. A jornalista, que era do partido, fez a pergunta. Pensei, isto não pode ser a maneira de fazer jornalismo em política. Os escrúpulos não abundavam. O jornalismo, tal como a política, inventava-se depois do lápis da censura. Era tudo muito tosco e primitivo.

Pode ter sido um atentado. Pode ter sido um acidente, a versão em que sempre acreditei. Tudo tão tosco e primitivo como o resto. Descobrir, em 2021, que vivo num país onde o Presidente da República social-democrata acredita que foi atentado e nada acontece, como se fosse natural, arrepia-me. Um país onde seria possível assassinar sete pessoas impunemente. Uma delas, o primeiro-ministro. Imaginar que foi atentado significa atestar que o Estado de direito falhou, a Justiça falhou, o encobrimento venceu. Teorias da conspiração, cada um tem a sua.

Nestes 40 anos das mortes de Camarate, um pesado manto de nostalgia cobre, ainda, a orfandade da direita portuguesa. O PSD anda à deriva e à procura de D. Sebastião. Sem âncora ideológica, sem convicção, sem programa, sem outro desejo a não ser a despeitada ocupação do poder, esta direita dos caciques nascida do aparelho partidário que o cavaquismo personalista bombardeou e que o poluído Chega intoxicará com populismo, não chega para reformar Portugal. Mimetiza a direita insurrecta e ignorante do tempo de Sá Carneiro. A que ele sabia menos inteligente do que ele. E os novos elitistas, mais uma vez, não têm voz ativa nem representam o país. O CDS está no parque infantil. O PSD não despiu o luto.

O ódio da viúva e a ironia do ministro

Posted: 11 Dec 2020 03:45 AM PST

«Percebe-se que o ministro da Administração Interna esteja nervoso. Entende-se que Eduardo Cabrita esteja inquieto com o desenrolar do caso da morte de Ihor Homeniuk nas instalações do SEF e que levou à acusação de três inspetores daquele serviço por homicídio qualificado.

Compreende-se que ataque diretamente a Comunicação Social e os comentadores televisivos que escreveram e opinaram sobre a tragédia do cidadão ucraniano.

Percebe-se porque esta postura do governante não é novidade. Já em julho do ano passado acusou a Imprensa de causar alarmismo, após o "Jornal de Notícias" ter divulgado que as 70 mil golas antifumo entregues pela Proteção Civil no âmbito do programa "Aldeia Segura - Pessoas Seguras" foram fabricadas com material inflamável e sem tratamento anticarbonização.

O que não se entende é o que o Estado português tenha ignorado durante nove meses a família do cidadão ucraniano morto no Aeroporto de Lisboa. Não tenha tido uma palavra de conforto. Que a demissão da diretora do SEF tenha demorado nove meses. E que o ministro da Administração Interna anuncie agora, numa comunicação carregada de dispensável ironia, que vai indemnizar a família, como se não fosse essa a obrigação. Uma indemnização, diga-se, paga por todos os contribuintes portugueses.

São duras as palavras da viúva. "Não era nem criminoso, nem terrorista, nem assassino; era uma pessoa normal", diz, referindo-se ao pai dos seus dois filhos menores. E o "ódio" que confessa sentir pelo nosso país não se apagará certamente com uma conferência de Imprensa durante a qual um ministro tem a pretensão de achar que pode dar lições sobre direitos humanos aos portugueses.

É legítimo que vários partidos peçam "consequências políticas" para o caso de um cidadão espancado até à morte e que defendam que a demissão da diretora do SEF não é suficiente.

Por muito menos, já se demitiram ministros. Por muito menos.»

Manuel Molinos

Segurança Social, vítima de uma burla com décadas

por estatuadesal

(Vítor Lima, in Blog Grazia Tanta, 07/12/2020)

O valor retido pelo empresariato corresponde a quase um ano de pensões, com a conivência silenciosa dos governos e das chamadas oposições.

A riqueza é sempre relativa e, incorporando o vírus do capitalismo, não se contenta em qualquer patamar de acumulação. Enriquecer é um desígnio nunca saciado e para o qual a ética, quando apontada, é apenas um tapete que encobre a burla e o roubo; se necessário, através da inevitável repressão das gentes.

O papel do Estado, desde a ascensão do capitalismo foi sempre o de um gestor, de um auxiliar essencial para a acumulação de capital. Para o efeito, (re)constrói, em permanência, um discurso de organização e de encaminhamento da punção fiscal, hierarquizando os vários segmentos sociais.

Em Portugal, a Segurança Social (SS), no essencial, obtém, entre outras, as suas receitas a partir das quotizações dos próprios trabalhadores e contribuições das empresas onde trabalham, por conta do valor acrescentado que geraram. Os recursos financeiros da SS têm assim, uma proveniência bem definida e uma aplicação dos seus fundos, bem delimitada – pagamento de reformas, situações de desemprego, doença ou invalidez dos indivíduos que procederam aos devidos descontos. Pelo contrário, o Estado, tem recursos captados sobre toda a população (impostos) e, uma aplicação não consignada, muito generalizada, envolvendo uma miríade de funções.

Em Portugal, por regra, as receitas da área pública são cobradas com uma enorme e calculada dose de incúria; uma incúria que tem décadas, que é estrutural para financiamento de empresas que se inserem num capitalismo subalterno e, historicamente, muito dependente do apoio estatal. Esse apoio, revela-se num tradicional e elevado nível de economia paralela (27 a 30% do PIB); de fraude contributiva, com aparelhos de fiscalização muito lentos e “maleáveis”; e, uma administração pública burocratizada, partidarizada, que publicou a Conta da Segurança Social de 2018 (um verdadeiro labirinto) uns, vinte meses após o final daquele ano.

A SS, tal como a Autoridade Tributária, passou a divulgar listas de empresas com grandes débitos para com aquelas instituições. Uma consulta recente nomeava 34 empresas com dívida de contribuições não pagas, no valor de € 1 a 5 milhões; e que certamente não pagarão, não só pelo nível acumulado de dívida; porque já terão dissipado qualquer património; ou ainda, porque aquele foi previamente objeto de garantia a favor dos bancos credores, muito mais lestos e cautelosos nesta matéria. Se o objetivo era envergonhar alguém com essas listagens esse objetivo… falhou redondamente.

A situação conhecida no momento atual é clara quanto a uma silenciosa política de instalada incúria visando o financiamento de … empresários falidos ou calculistas.

                       Fonte: Contas da Segurança Social

O crescimento das dívidas tomadas como de médio ou longo prazo resulta, nos últimos anos, da grande redução das contribuições tomadas como dívida consolidada e já não como prestações em atraso (Contribuintes); o que não ilustra a gestão de Vieira da Silva. Para mais em paralelo temporal com o tempo pos-troika, o I governo Costa lançou o programa Peres[1]de recuperação de dívida que, como todos os programas[2]do género deverá ser o último… antes do próximo que provavelmente virá na boleia dos danos do covid-19.

O gráfico seguinte ilustra a crescente utilização das contribuições não pagas à SS como norma de capitalização ou fuga de capitais por parte dos empresários portugueses, com a dedicada conivência dos governos, naturalmente. A grande quebra observada entre 2002/2003 deve-se a uma operação de titularização de dívidas fiscais e à SS[3], levada a cabo por Manuela Ferreira Leite. Nessa operação os créditos cedidos - € 9446 M do Estado e € 1995.2 M da SS – em grande parte incobráveis, os valores recebidos no final, foram de € 1453 M e € 307 M respetivamente. A diferença, na sua maioria, corresponde a não pagamentos de empresas em dívida e, entretanto desaparecidas, como produto da tradicional benevolência dos órgãos estatais face aos responsáveis. Uma tradição que surge como inconcebível em outros países da Europa.

Curiosamente, como também se pode ver no gráfico seguinte, o grande crescimento da dívida à SS, em termos de percentagem do PIB e entre 2005/11, coincide com a governação Sócrates, tendo como ministro para a SS um nocivo Vieira da Silva; que voltaria a protagonizar um acréscimo da dívida a partir de 2015, com António Costa, e apesar da cobrança extraordinária do já atrás referido, Peres. Vieira da Silva protagonizou[4] ainda a introdução do Factor de Sustentabilidade, uma fórmula de colocação dos trabalhadores a trabalhar (e a descontar) mais anos, encolhendo, naturalmente o tempo de vida, livre do trabalho; e, reduzindo o encargo para a SS mantendo a habitual displicência face ao incumprimento por parte dos patrões. Em contrapartida, o regime pos-fascista age duramente sobre pequenos devedores como neste caso.

Sobre a Segurança Social, sinalizamos adiante textos divulgados nos últimos anos – um tema que nunca interessou a imprensa, porque os prejuízos recaem sobre a população em geral e os reformados em particular que não têm lobbies para os representar. O modelo organizativo é aceite acriticamente pelos sindicatos, pela população em geral e, com o silêncio interessado da classe política; da parcela mais à direita até à menos reacionária.

O tecido económico de hoje não é dominado pelo trabalho intensivo como há décadas e isso exige outras incidências para financiamento da SS, mormente sobre o valor acrescentado; um tema que obviamente não é colocado, na pobreza ideológica dominante.