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terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Os partidos políticos e as candidaturas independentes

 

por estatuadesal

(Carlos Esperança, 20/02/2021)

À primeira vista repugna que os partidos tenham o monopólio das candidaturas. Impedir grupos de cidadãos de se proporem a uma junta de freguesia ou câmara municipal seria a restrição da liberdade de associação, mas o direito existe e os exemplos não são bons.

Parece que a reivindicação se prende com o aumento de facilidades para se constituírem listas de dissidentes partidários no assalto às autarquias, e na oportunidade para partidos sem representatividade se ocultarem sob pseudónimos.

O escrutínio do poder autárquico, exceto nas grandes cidades, praticamente não existe. Os jornais e emissoras de rádio locais raramente subsistem sem os apoios da autarquia e são, quase sempre, o eco dos interesses de quem as ocupa.

Aliás, é difícil saber o que é isso de independentes. De quê e de quem? Habitualmente, são os preteridos pelos partidos onde militam e cuja ânsia de poder é mais forte do que a fidelidade e as convicções ideológicas.

Em Coimbra, a ambição política de um respeitado Bastonário da Ordem dos Médicos, preterido pelo seu partido, o PSD, candidatou-se com um grupo onde predominavam docentes universitários, sob o pseudónimo de «Somos Coimbra», como se as outras candidaturas fossem, v.g., Viseu ou Bragança.

Perguntei a uma das responsáveis se eram de esquerda ou de direita, para eventualmente decidir o meu voto. Foi-me ‘explicado’ que não eram de esquerda nem de direita, tendo ficado elucidado. Eram de direita.

Neste momento, José Silva, então dissidente do PSD e que «foi Coimbra» é dado como o candidato do PSD. Foi mais sério como bastonário do que como militante partidário.

No Porto, o membro da alta burguesia e de grande património imobiliário, conservador e monárquico, concorreu contra o PSD, que o preteriu, e ganhou as eleições autárquicas contra Luís Filipe Meneses, sob o pseudónimo “Porto, o nosso partido”.

Quis ser o presidente da Região Norte na regionalização prevista, a que os exemplos dos Açores e Madeira provocaram hostilidade eleitoral, como se verificou no referendo que, uma vez feito, tornou ilegítima a regionalização política sem a sua repetição.

Podia multiplicar exemplos e refletir sobre a desagregação de partidos com dissidências provocadas por ambiciosos sob a designação de “Malveira, o nosso partido” ou “Somos Boticas” em que basta mudar o nome para cada freguesia ou município.

Quando são eleitos sob sigla partidária, ainda que designados independentes, podem os eleitores julgar o partido que os integrou, pela gestão ou eventuais desmandos do elenco municipal, o que não sucede com os autodesignados independentes.

No Porto, a provarem-se os benefícios com uma bolsa valiosa de terrenos adquirida por usucapião, e nebulosamente caída na família do autarca e dele próprio, que partido pode o eleitorado punir nas próximas eleições?

Os independentes políticos querem parecer filhos de pais incógnitos. Ignora-se a superioridade ética que os recomende.

O outro lado das imagens

 


por estatuadesal

(José Gameiro, in Expresso, 19/02/2021)

José Gameiro

Há filmes que marcam a nossa vida. Mas sabemos pouco sobre a vida desses filmes.


Há filmes que nos marcaram e que vemos e revemos ao longo da vida. Os mais antigos são hoje objeto de estudo e de investigação nas Universidades.

Mas raramente temos acesso, também porque não nos interessa muito, às histórias reais que acompanham o fazer de um filme. É semelhante àquela frase conhecida, se gostas de um livro, não queiras conhecer o autor. Porque podes ficar desiludido.

Cinquenta anos depois do filme “Morte em Veneza”, que nos deslumbrou, surge, no Festival Sundance, de Robert Redford, um documentário sobre o ator que interpretou o papel do jovem Tadzio, “O Rapaz Mais Bonito do Mundo”.

Luchino Visconti demorou meses a encontrar um jovem que fosse suficientemente bonito para encarnar o papel. Correu vários países, Hungria, Polónia, Finlândia e foi finalmente em Estocolmo que encontrou Bjorn Andrésen. O próprio realizador fez um documentário “À Procura de Tadzio”, com todo o percurso que fez.

O filme sobre o ator, agora exibido, demorou cinco anos a realizar. Segundo o jornal “El País”, foram longos tempos a ganhar a confiança de alguém, que tinha ficado marcado para o resto da vida, pelo que se passou depois. Com apenas 15 anos foi exposto de uma forma traumatizante, nas aparições públicas, para promover o filme.

Tudo começou logo na conferência de imprensa de Visconti em Cannes. Falavam dele como se ele não estivesse presente, em francês, que não entendia, sobre a sua beleza. Pareciam morcegos, tive medo, disse Bjorn. A seguir foi levado para um clube homossexual. Só se lembra da decoração vermelha e negra, as línguas vorazes, bebeu muito para não se sentir um bocado de carne. Ainda hoje estas recordações estão bem vivas na sua memória.

Depois levaram-no para o Japão. Ali foi explorado e drogado para aguentar sessões de fotografia, programas de televisão e a gravação de um disco. Ficou lá durante um ano, à espera de fazer um filme, prometido, mas que nunca aconteceu.

Era um jovem marcado pela morte precoce da mãe e por uma avó obcecada pela ideia de ele vir a ser um ator famoso, que o lançou nos castings.

Foram anos e anos em que não conseguia olhar-se no espelho. Hoje, com 66 anos recuperou, fez as pazes com o que viveu e trabalha em cinema e televisão. Como se a história da pandemia que atravessa o filme o tivesse atingido durante muitos anos.

Já em 2007, Maria Schneider, atriz principal do filme de Bernardo Bertolucci, “O Último Tango em Paris”, tinha denunciado o abuso do realizador e de Marlon Brando, na célebre cena da relação anal. Ambos combinaram não revelar o limite da cena, porque queriam ter uma reação da menina e não da atriz... O filme, à época, foi muito criticado pela cena sexual explícita, mas ninguém se preocupou com o que teria sentido uma jovem de 19 anos.

Nenhum destes realizadores abusou dos seus atores. Ao contrário do que foi denunciado nos últimos anos no mundo do cinema e da moda, em que algumas escolhas eram determinadas pela disponibilidade, debaixo de forte pressão, dos jovens em terem relações sexuais, Visconti e Bertolucci nunca o fizeram. Mas permitiram que fossem criados contextos fortemente traumáticos, que condicionaram o resto das suas vidas.

O fotógrafo David Hamilton, célebre e admirado pelas suas fotografias de meninas púberes, em poses sensuais, foi acusado de as ter abusado. À época, foi admirado pelas suas fotos em busca da beleza pura...

Tudo isto se passou há muitos anos, em que ainda ninguém ligava nenhuma a estes abusos. Desde então muita coisa mudou e algumas das vítimas conseguiram falar e denunciar.

Mas as marcas ficaram para sempre e, provavelmente ainda “não sabemos da missa a metade”.

domingo, 21 de fevereiro de 2021

Anúncio não alimenta nem trata

Posted: 20 Feb 2021 03:56 AM PST


 

«As políticas de anúncio, de repetição de promessas que tardam em se concretizar ou se esvaziam pelo caminho, esgotam-se sempre em pouco tempo. Num contexto como aquele que vivemos, carregado de ruturas na vida das pessoas, de desproteções, de sofrimento, de urgências que clamam políticas com rigor e ação, esse esgotamento acelera-se e torna-se perigoso.

São múltiplos os casos, no plano nacional e na União Europeia, em que entre o anúncio e a concretização se verifica um desfasamento abissal. Onde deveria haver agilidade e rapidez há meses a passar. Onde todos deviam estar abrangidos, não faltam exclusões. Onde precisávamos de recursos volumosos, há mãos cheias de muito pouco. Assim, a desconfiança, a incerteza, o desespero e o medo crescem e gera-se um quadro cada vez mais propício ao cinismo político e à manipulação.

A "bazuca" europeia, tão festejada pelo volume e rapidez com que foi anunciada, afinal não começou a chegar em 2020 e já se diz que talvez venham uns "pacotes de vitaminas" lá para o outono. E não nos admiremos se a coisa resvalar para 2022. A receita milagrosa pode, assim, reduzir-se a mezinhas.

É uma tolice política apresentar a "bazuca" como o meio que vem garantir combate eficaz à desproteção e à pobreza, acudir à recomposição da economia, propiciar "reformas estruturais", alavancar um processo de transformação do país. Quanto à exaltação do poder da "bazuca, as posições da Direita até ultrapassam as do Governo. Mesmo que (por milagre) a UE adote uma política financeira adequada à dimensão e caraterísticas desta crise que vivemos - reforçando imenso o apoio a países como Portugal -, nós só sairemos do pântano em que estamos se abandonarmos os austeritarismos tacanhos, se dotarmos o Estado de meios e operacionalidade, se fizermos forte investimento público, se qualificarmos e valorizarmos o emprego, se tratarmos da coesão entre gerações e territórios.

Os problemas também não se resolvem com fugas para a frente ou excesso de expectativa na ciência, como fez, esta semana, a presidente da Comissão Europeia ao transferir a esperança para as vacinas de segunda geração, quando aquilo que podia dar mais confiança, agora, era uma boa gestão do processo de vacinação. Ora, o da União está a ser um relativo fiasco. Os avanços científicos na área da saúde são importantíssimos, mas exige-se convocar muitos outros saberes humanos - científicos e não científicos - com princípios e valores éticos, para se evitar cenários aterradores. Desde logo, deite-se mão da ciência da boa execução das políticas.

O Governo não pode anunciar apoios que depois não aparecem ou se estreitam; não pode anunciar disponibilização de computadores que, entretanto, não compra. O ministro Sisa Vieira ao anunciar que a tarifa social da Internet será disponibilizada até junho, lá longe do reinício das aulas presenciais, abre espaço à ridicularização.

Esta falta de agilidade em tempo real é, em parte, filha de incertezas que hoje pairam sobre quem governa, mas acima de tudo, de uma conceção política que sacraliza o desinvestimento e a ortodoxia orçamental. Umas palavras de anúncio e a desmemória cultivada por certa Comunicação Social e pelo ciclo (e circo) noticioso, não substituem uma governação com ética e rigor, geradora de confiança.»

sábado, 20 de fevereiro de 2021

Economistas com uma mão, mas autoridades do medicamento com dois olhos

 

por estatuadesal

(Luís Aguiar Conraria, in Expresso, 19/02/2021)

1 Em estatística distinguem-se os erros de tipo I dos de tipo II. Definimos uma hipótese que consideramos mais verosímil — o nosso default — e diz-se que cometemos um erro de tipo I quando erradamente rejeitamos essa hipótese. O erro de tipo II acontece sempre que erradamente aceitamos essa hipótese como verdadeira. (Na verdade, nunca aceitamos uma hipótese, diz-se apenas que não a rejeitamos, mas adiante.)

Imagine uma farmacêutica que alega ter uma determinada vacina. Nada mais natural do que, até prova em contrário, partirmos do princípio de que não presta. Não queremos no mercado uma vacina que não funcione ou que tenha efeitos secundários graves. Com esta atitude, reduzimos os erros de tipo I.

Mas, ao nos focarmos nos perigos de aprovar uma droga errada, exigindo sucessivos testes clínicos, muitas vezes esquecemos as vidas que se perdem por causa dos erros de tipo II: os doentes que podiam ser salvos e não o são, porque a droga não foi aprovada em tempo útil. Uma atitude racional obriga a ponderar ambos os tipos de risco.

É difícil. A visibilidade do erro I é muito maior. Basta ver a atitude de tantos no momento do lançamento das vacinas contra a covid. Todos à espera dos efeitos secundários para acusarem as autoridades responsáveis de terem sido apressadas. Ou ver como reagimos quando soubemos que a Rússia avançou para a vacinação sem ter terminado a terceira fase de testes clínicos. “Que irresponsáveis”, dissemos nós. Mas...

A vacina da Moderna foi concebida a 13 de janeiro de 2020, dois dias depois da sequenciação genética do coronavírus. E, se estávamos todos de pedras na mão para as atirar às autoridades de saúde caso houvesse efeitos secundários, nem nos lembramos de as responsabilizar pelas centenas de milhares de vidas que se perderam porque demoraram a autorizar as vacinas. Entre desemprego, morte, confinamentos forçados, escolas fechadas, quantos milhões viram a sua vida destruída porque não se aprovou a vacina mais cedo?

Condenámos a pressa da Rússia em administrar a sua vacina, acusando-os de puro marketing, mas não perguntámos quantos russos se salvaram graças a essa rapidez. Nem nos lembrámos de que o marketing só funcionaria se a vacina resultasse.

Nesta situação, os custos do atraso são óbvios. Na maioria das vezes, nem damos conta. Se, por acaso, um tratamento eficaz para o tratamento da diabetes não obtiver autorização das autoridades do medicamento ninguém saberá. Olhos que não veem, coração que não sente: como ninguém sabe, ninguém acusará o Infarmed, ou a Agência Europeia do Medicamento (EMA), de negligência criminosa. Já se um mau medicamento, com sérios efeitos secundários, for aprovado, o escândalo será imediato e cabeças rolarão. Assim, as EMA e os Infarmed têm muito mais incentivos a evitar um determinado tipo de erros do que outros.

Na prática, a sociedade decidiu que as vítimas dos erros de tipo I, ou seja, as vítimas de um medicamento errado, valem muito mais do que as vítimas de erros de tipo II, as pessoas que padecem de doenças que seriam curadas se tivessem acesso aos medicamentos uns anos mais cedo.

Ninguém advoga que se aprove facilmente qualquer droga que apareça. Seria cometer o engano oposto. Simplesmente, se fôssemos mais maduros, ponderaríamos ambos os riscos. Foi Harry Truman que pediu um economista maneta. Queixava-se de que todos os economistas lhe respondiam o mesmo: “On the one hand... on the other hand.” Com a aprovação de medicamentos, passa-se o contrário, precisamos de especialistas com os dois olhos, o esquerdo para as vítimas de um tipo de erro e o direito para as vítimas do outro.


2 Circula uma petição a pedir a deportação de Mamadou Ba. Veio na sequência da exigência do CDS para que Mamadou saísse do Grupo de Trabalho para a Prevenção e o Combate ao Racismo e à Discriminação. Qual o crime que o conhecido ativista português cometeu? Disse que o tenente-coronel Marcelino da Mata era fascista e criminoso de guerra.

Espanto-me sempre com o escarcéu que os paladinos do antipoliticamente correto fazem quando não se usa do politicamente correto para falar dos seus adorados. Que Marcelino da Mata, enquanto voluntaria e fervorosamente combatia por um regime colonialista e opressor, cometeu crimes de guerra não é propriamente segredo. E que era um herói de um regime ditatorial, a que muitos chamam fascista, é um facto. Até foi condecorado por Salazar.

E agora? É proibido chamar fascista e sanguinário a um herói de guerra do Portugal salazarista? Tenham juízo e respeitem a liberdade de expressão.

Professor de Economia da Universidade do Minho

Extravio de vacinas no país real

Posted: 19 Feb 2021 04:14 AM PST

 


«Assistimos todos ao folhetim da vacinação indevida em horário nobre. Uma autarca descrita como mais avantajada furou a fila em Portimão, logo seguida por outros no Seixal, Arcos de Valdevez e Reguengos de Monsaraz. A Segurança Social de Setúbal atirou vacinas a todos os funcionários que as conseguiram apanhar. Na Associação de Farminhão, a responsável da cozinha ainda aproveitou uns restos. Nem a igreja resistiu à tentação, com relatos de padres inoculados em várias paróquias. Mesmo com os custos da insularidade, o movimento chegou aos Açores, na pessoa da diretora regional para a Promoção da Igualdade e Inclusão Social. No Porto, por aparente falta de comparência dos seus destinatários, 11 doses já preparadas acabaram na pastelaria ao lado das instalações do INEM.

O país, com razão, inquietou-se. Quando a escassez de vacinas é assunto diário, cada picada num braço não prioritário implica a desproteção de uma pessoa de risco. Pelo caminho, as suspeitas atingiram o próprio dirigente da task force, prontamente substituído por um militar que vestiu um camuflado para ir à televisão sinalizar o fim da rebaldaria. A Direção-Geral da Saúde regulou enfim o destino das sobras, determinando o seu aproveitamento segundo as regras da prioridade. Dado a legislação vigente só permitir sancionar funcionários do Estado ou equiparados, o PSD e o Chega apresentaram propostas de lei para a introdução de um crime autónomo com penas que vão, respetivamente, até três e cinco anos. Sem pôr em causa a rigorosa investigação da conduta de quem, em plena pandemia, consegue ficar imunizado antes da sua vez, criar legislação penal deste calibre em pura reação ao alarme social não me parece cumprir os requisitos da boa legística.

Pese embora a descrição do fenómeno como típico do chico-espertismo nacional, há vacinas extraviadas noutros lugares. A clientela abastada de um conhecido hospital privado parisiense está sob suspeita. Depois do anúncio da inoculação da mais famosa instrutora de spinning de Manhattan, o título no “The New York Times” era ‘Don’t hate the soulcycle celeb who got the vaccine. Hate the system’. Lá fora, o problema está no privilégio dos mais ricos; por aqui, no lugar de vacinas VIP, tivemos um retrato do país real do pequeno nepotismo e do compadrio local. Pelos vistos, a recém-adquirida imunidade por um obscuro provedor da Santa Casa da Misericórdia tem mais impacto mediático do que a vacinação da presidente do grupo Luz Saúde, impecavelmente penteada.

Enquanto vociferamos contra o sistema, talvez questionar em que medida contribuímos no passado para a sua instalação. Telefonemas e inscrições em listas andam a desviar vacinas por todo o território continental e ilhas porque, em Portugal, o “contacto certo” funciona rotineiramente como forma de obter um benefício em detrimento dos outros. A memória dos casos começa a esbater-se e o mais provável é acabarem todos algures nos meandros de mais uma série de inquéritos. Não sendo a situação mais censurável, a distribuição de sobras pelo INEM no estabelecimento comercial mais próximo pode bem ser a que vai ficar mais tempo no imaginário popular. Demasiada gente já foi um dia a prima do presidente da junta e ainda tem a esperança de ser a costureira da mãe do senhor prior. Daí a nossa perplexidade perante esta decisão de vacinar aleatoriamente quem está ali mais à mão sem que ninguém se tenha lembrado, antes, de usar o telemóvel para marcar um número — que até podia ser o meu.»