Não te abracei quando nasceste, teria sido pouco prudente. Mas apeteceu-me. Como todos os pais, peguei-te ao colo, confesso que, ao início, com medo de te deixar cair. Ao contrário das mães, que parecem ter uma capacidade inata de segurar os filhos, nós temos de aprender, sob o olhar vigilante delas.
Quando começaste a andar e eu chegava a casa ao fim do dia, vinhas a correr do fundo do corredor, saltavas para o meu colo e davas-me um abraço tão forte que o dia estava ganho. Depois ias à tua vida, que a partir desse momento passava também a ser a minha. Vivíamos no chão. A montar Legos, a fazer corridas de automóveis, que ganhavas sempre, ou quase sempre, porque os psicólogos chateiam os pais se não deixam os filhos viver a frustração. Ao fim de semana íamos aos baloiços e aos escorregas. Passado pouco tempo já te atiravas, para eu te agarrar. Nunca te deixei cair, apesar daquela máxima pessimista, que não se deve confiar em ninguém, nem no pai.
Fizemos algumas coisas loucas, que não posso contar aqui, porque não sei quanto tempo demoram a prescrever as irresponsabilidades dos pais. Podem ser criticáveis, mas ainda hoje te lembras delas e me dizes, o pai era muito maluco… E os abraços continuavam sempre.
Depois, a pouco e pouco, como se quisesses respeitar a minha dependência e fazer uma “desintoxicação” lenta, os abraços foram sendo mais esquivos. Primeiro quando estavas com os teus amigos, depois mesmo sozinhos. Respeitei. Mais uma vez me socorri dos psis, que dizem que na adolescência vai tudo para os de fora, os de dentro têm de esperar que venham melhores dias. Confesso que tive ciúmes quando te via abraçar um amigo ou uma amiga, um avô ou uma avó. Mas tinha algumas migalhas nos dias de aniversário, ou quando trocávamos presentes no Natal.
Tudo passou, ficaste um adulto, claro que nunca mais correste para mim de braços abertos, mas os abraços voltaram. Até que veio a malfadada pandemia. No início ainda tentei esquecer-me, mas tu nunca te esquecias. Fugias de mim, no corredor da nossa casa. Quando nos cruzávamos, encostavas-te às paredes. Mas talvez nunca tenhamos falado tanto. De nós, da política, da família.
Aprendi contigo a aceitar decisões de outros que nos afetam profundamente. Devia ser ao contrário, mas usaste um argumento imbatível. Tivemos sorte, ninguém, da nossa família adoeceu. Protestámos juntos, contra os disparates que íamos ouvindo na televisão. Deixámos de ver notícias quando nos fartámos da exploração diária do número de mortos. Expliquei-te, o que já sabias, as desgraças vendem, em nome daquilo a que se chama verdade...
Falámos muito acerca da economia ter de ser para as pessoas e de como sem pessoas não há economia. Da injustiça dos confinamentos para aqueles que não têm ordenado certo ao fim do mês. É verdade que não demos abraços, mesmo com máscara, mas conhecemo-nos melhor. E perdemos as nossas arrogâncias. Eu a de pai e tu a de filho.
Até que chegou a vacina. Eu armado em conhecedor a tentar imaginar hierarquias de vacinação. A cada ideia que tinha, tu replicavas, o pai está a complicar. Isto é muito simples, dizias. Primeiro aqueles que vivem no meio do vírus e depois dos cem anos para baixo... E fazias contas, os avós devem ser vacinados lá para... e os pais lá para...
Até que chegou o meu dia. O primeiro e depois o segundo. Deixaste passar duas semanas, tantas conversas tinhas ouvido que já sabias umas coisas de imunologia. Cheguei a casa ao fim da tarde. Correste para mim como fazias em criança e deste-me um abraço. Nunca mais me irei esquecer do que me disseste: “Finalmente damos um abraço carregado de anticorpos.”
Em 26 de junho de 1975 faleceu monsenhor Josemaria Escrivá, indefetível apoiante do genocida Francisco Franco e fundador do Opus Dei, apoiante dos negócios políticos de João Paulo II, que levaram à falência fraudulenta do banco Ambrosiano e à criação de centenas de santos em Espanha, todos mártires do mesmo lado da guerra civil.
Levou a vida ao serviço de Deus e do fascismo, seguiu as tropas sediciosas a Madrid, e os seus devotos, a quem indicou o caminho, levaram à falência os impérios Matesa e Rumasa, para maior glória da prelatura e benefício dos desígnios do Monsenhor.
Mal refeito da defunção, obrou 3 milagres, mais 1 do que necessário para a santidade. O primeiro foi no ramo da oncologia, a uma freira, prima de um ministro de Franco, que logo morreu curada. Está nos altares e deixou um exército de prosélitos, apto a enfrentar o islamismo e a subsidiar o Vaticano, onde, depois de dois pontífices amigos, o Espírito Santo iluminou mal os cardeais do consistório e lhes negou o terceiro.
Fundador de uma das mais reacionárias seitas católicas, usava o cilício como prova de amor ao deus que defendeu o generalíssimo, a monarquia, o catolicismo e o garrote, em Espanha.
O 25 de Abril, em Portugal, não o abalou na fé, debilitou-o na saúde. As eleições livres de 1975 só o deixaram respirar mais dois meses. Também Franco, ditador até ao último sacramento, finar-se-ia escassos 5 meses após o santo, bem confessado, melhor comungado e excelentemente ungido e cerimoniado, com o povo de rastos, a cumprir de joelhos as suas últimas vontades quanto ao regime de Espanha e ao destino do cadáver.
2 – A santidade do Opus Dei
“O Opus Dei é uma instituição que busca a perfeição espiritual dos seus membros e a satisfação da vontade divina.”
Acontece, às vezes, que a vocação para a política e para o sector financeiro extravase a necessidade de salvação da alma e comprometa a imagem dos seus membros.
Os jejuns, as orações e os cilícios não ocupam todo o tempo destinado à santidade. Foi o que permitiu ao virtuoso Escrivá apoiar o franquismo sem se esquecer, certamente, de rezar por mais de 900 mil espanhóis assassinados ou deportados pela ditadura.
O virtuoso monsenhor, que já em vida revelou odor a santidade, sentido por pituitárias pias, foi rapidamente canonizado por João Paulo II.
Claro que o Opus Dei teve percalços. Os casos Rumasa e Matesa são nódoas que caíram no pano impoluto da Obra, falências dolosas que os inimigos de Deus aproveitaram para denegrir a santa prelatura. Mais tarde a falência fraudulenta do Banco Ambrosiano salpicaria o Opus Dei e as autoridades italianas quiseram julgar o arcebispo Marcinkus, valendo-lhe a bondade de João Paulo II que não consentiu a extradição e impediu a investigação dos crimes.
Era o que faltava, enxovalhar nos tribunais a Obra que subsidiou o Solidariedade e que a única coisa que não consegue do Céu é que lhe mande dinheiro.
O Supremo Tribunal Suíço, localizado em Lausanne, caracterizou, numa sentença, o Opus Dei como «associação secreta» que atua «ocultamente» com um máximo de opacidade nos seus assuntos. (1).
Coisas de juízes terrenos, que ignoram a transparência do Opus Dei em relação a Deus.
(1) O Mundo Secreto do Opus Dei - Robert Hutchison (pg. 450), 29-07-2007
Apostila – Deve dizer «o» Opus Dei e não «a» Opus Dei. Opus é do género neutro em latim o que dá masculino em português, mas está vulgarizado o feminino, referido à Obra pia, associação pouco recomendável.
As origens destes movimentos são muito diferentes, têm várias fontes e algumas tradições, mas hoje fazem parte de uma nova extrema-direita que está a emergir em vários países europeus e nos EUA. A classificação de extrema-direita tem sentido, porque a sua génese no populismo actual não é equilibrada no conjunto do espectro político, ou seja, comunica mais com o quadro tradicional dos temas da extrema-direita, de onde vêm muitos dos seus elementos e para onde vão muitos dos seus elementos.
Sublinhe-se desde já que alguns dos movimentos, por exemplo, contra a ciência, existem também na esquerda, mas são mais “calmos” e menos militantes do que os seus congéneres à direita. Há raras excepções, uma das quais é o antiespecismo radical que inclui formas de “guerrilha”, por exemplo, para “libertar” animais que estão a ser usados por laboratórios para testar medicamentos, implantes, cosméticos. Se é por isso possível comparar as teorias das “medicinas alternativas”, “holísticas”, homeopáticas, “orientais”, do veganismo, de formas de “regresso à natureza”, como, por exemplo, a propaganda dos partos em casa, que já causaram mortes, ou movimentos precursores da luta contra as vacinas, elas estão longe da excitação agressiva dos movimentos actuais pela “verdade”.
Outra observação prévia é que as medidas de restrição e confinamento são particularmente danosas para certas áreas económicas, como a restauração, os espectáculos, o turismo, e isso significa um pano de fundo social – com falências, perdas de lucros, despedimentos, encerramento de empresas, quebra de expectativas económicas, pobreza – para a radicalização dos movimentos pela “verdade”. O custo social e económico da pandemia e do combate à pandemia são os factores a que se deve prestar mais atenção, para se diminuir o processo de radicalização em curso.
Voltemos à “verdade”, nome absurdo mas revelador da pretensão destes movimentos de que são detentores de algum conhecimento especial que está a ser escondido pelo poder político e pelos cientistas, que estão a usar a pandemia como pretexto para terem mais poder e para limitar as liberdades. Estão a tentar criar uma “ditadura” em nome de interesses ocultos para o vulgo, mas bem conhecidos dos “verdadeiros”, seja a conspiração judeo-maçónica, o grupo de Bilderberg, os demónios vivos de George Soros e de Bill Gates, os que estão a encher os ares de sinais 5G, ou alienígenas maléficos. Como diz um cartaz empunhado por um senhor “verdadeiro”: “Os mafiosos da farsa covid grupo Bilderberg com a loucura da nova ordem mundial seguidos pelos lacaios políticos mundiais da maçonaria e do Opus Dei. Acordem.”
Todas estas teorias da conspiração estão aí e circulam em Portugal, e têm um único motivo: não há pandemia, há uma “gripezinha”, os mortos não morreram de covid, mas de outras enfermidades, devem tomar uma série de remédios ou mezinhas – o mais célebre, pela propaganda fantasiosa de Trump-Bolsonaro, foi a hidroxicloroquina –, o uso de máscaras destina-se a tapar os “sorrisos”, porque, como diz um cartaz, as “máscaras geram desconfiança”.
A segunda palavra mais usada é “liberdade”, hoje uma palavra que também está doente de tanto abuso. Uma mãe e uma filha ainda criança posam numa destas manifestações com uma dupla de cartazes que são todo um programa. “Não ao uso de máscaras nas escolas/ não ao novo normal/ temos o direito de respirar ar puro”, diz o cartaz da pobre da criança. E o da mãe diz: “Não ao uso obrigatório de máscaras na rua/ não DGS controlo a mais! Poder a mais!/ não aos controlos DGS/ não ao novo normal/ não consentimos!” Ou seja, querem tirar-lhes a liberdade para terem um “novo normal”. Um outro cartaz explica que esse “novo normal” é uma “ditadura”, resultado destas “medidas perversas”.
O que exigem é liberdade para não usar máscara, liberdade para se fazer festas seja com que número de pessoas for, liberdade para andar aos beijos e abraços, liberdade para ir aos restaurantes, visitar os lares, etc. Podiam lembrar-se de acrescentar outras liberdades, como seja não usar capacete nas motas ou cinto de segurança, andar nas estradas a 200 à hora, entrar livremente na casa das pessoas, porque o direito de propriedade é uma usurpação (isto não dizem, claro, para não parafrasearem Proudhon e a sua “propriedade é um roubo”…), e por aí adiante. Na verdade, em nenhum destes casos está em causa a liberdade, que é de outra natureza e que nada tem que ver com o uso de máscaras.
A maioria destas irresponsáveis patetices não se ficam pelos cartazes “verdadeiros”, encontram-se também em artigos de opinião no Observador, que podiam ser citados como versões dos cartazes acima – e, se não fossem pagos, já de há muito mereceriam outra exposição –, ou nas manifestações do Chega e proliferam como vírus nas redes sociais. Estão lá exactamente os mesmos temas, a “ditadura” de Costa e do “bloco central”, o abuso das medidas de confinamento contra as “liberdades”, a inutilidade das máscaras, a “invenção” da pandemia.
Se nós fôssemos, mais do que já somos, uma sociedade má, tomávamos à letra estas reivindicações. Muito bem, querem ter estas “liberdades”, façam uma declaração de que se responsabilizam pelos custos do tratamento da covid, caso fiquem infectados. E se fôssemos uma sociedade ainda pior, não os deixávamos entrar no SNS, onde os tratamentos são gratuitos, porque os pagamos todos nós. E depois exigir uma segunda declaração sobre a responsabilidade de indemnizar todos os que se provem que foram infectados por um dos “verdadeiros” e, no caso de essa infecção resultar numa morte, condenação por homicídio. E depois dar-lhes um autocolante a dizer: “Já sou livre, venha a covid que eu não tenho medo.” Tenho quase a certeza de que não ia ser preciso distanciação social, as pessoas fugiam todas…
«Tinha de ser um francês. Numa semana recheada de más notícias, indecisões, atrasos, confinamentos, vagas de infeções e planos frustrados sobre a vacinação e a guerra das vacinas, o comissário europeu Thierry Breton anunciou, e foi logo expandido o bravo anúncio por todos os media, que a imunidade coletiva da Europa chegaria no dia 14 de julho. Num dia específico. Dia 14. De julho. Ninguém na União Europeia se lembrou de perguntar como é que um homem de negócios, sem nenhuma credencial científica ou outra exceto como ex-ministro das Finanças e professor da Harvard Business School (e sabemos como a menção de Harvard faz tombar todas as dúvidas dos descrentes e das massas ignaras) é capaz de prever um acontecimento destes, o Graal do corona, a imunidade coletiva, com uma precisão destas. Nenhum cientista se aventurou nestas paragens. Nem o dr. Fauci.
Monsieur Breton, francês de gema, educado nas escolas de elite de Paris, nem hesitou. Saído dos ares condicionados e rarefeitos da Comissão Europeia, onde responde a Ursula von der Leyen, para a luz clara da realidade da pandemia e do fracasso das vacinas na Europa, Breton vaticinou que, em breve, tudo estaria resolvido. O mundo subdesenvolvido pode estar infetado ou morto, e sem vacinas, mas nós, na Europa, estaremos protegidos e de regresso à boa vida bebericando champanhe nas esplanadas dos cafés. As variantes que virão dos outros, dos estrangeiros, não nos afetarão porque teremos no bolso o passaporte verde e na mucosa nasal a imunidade. À míngua de hospedeiros, o vírus definhará. No dia 15 de julho, estaremos livres.
Porquê o 14 de julho? Aqui, entra a França. Derrotada na guerra da descoberta das vacinas, a França reclama para o seu Dia da Bastilha, o seu feriado nacional, o seu 14 de julho, o fim do medo da pandemia e mesmo da dita pandemia. Dá imenso jeito ser no dia da Tomada da Bastilha que inaugurou a Revolução Francesa, porque neste dia podemos comemorar com uma data gaulesa a vitória sobre o vírus que veio da China (como vem tudo o resto). Os franceses poderão sair para a rua e dançar não ao som da derrocada do poder aristocrático, e da tomada do poder pelo povo e a burguesia, mas ao som da agonia viral. Com esta conversa, Breton espera, esperemos, dar aos revoltados franceses uma esperança e impedir a tomada do Eliseu no ano que vem pela senhora Le Pen, armada de furor revolucionário.
E tudo isto se passa no ano da graça de 2021, cumprido um ano de catástrofes acumuladas, sem que ninguém se interrogue se será aceitável continuar a ouvir este tipo de inanidades, semelhantes às de outros políticos que acham que a estupidificação das audiências e a anestesia geral que a pandemia e os confinamentos induziram se curam, como a miséria e a morte que o vírus provocou e provoca, com solipsismos otimistas.
O otimismo leibniziano do professor Pangloss, claro. Temos de reler o “Cândido”, de Voltaire, francês com mérito, que ridiculariza na novela picaresca os governos, os exércitos, os filósofos, os teólogos, e, claro, o otimismo de Leibniz. Cândido chega à conclusão que os sistemas falham e que mais vale sobreviver confiando em nós, cultivando “o nosso jardim”. Sendo hoje um dos livros do cânone ocidental, ensinado, lido e cultivado nas escolas que o senhor Breton frequentou, “Cândido” foi imediatamente banido apesar de publicado na clandestinidade, e considerado um livro blasfemo, um manifesto contra os intelectuais e um crime de sedição. O terramoto de Lisboa de 1755 foi uma das inspirações de Voltaire, uma cidade devorada pelos incêndios e pelas águas do tsunami que galgaram as ruas. Não, não podíamos estar, leibnizianamente, no “melhor dos mundos possíveis”.
Voltaire era um autor que utilizava a sátira para as suas avaliações filosóficas servidas por uma pena literária. “Candide ou L’Optimisme” é a obra de um humanista que quis combater o pensamento feito e o fanatismo religioso. No século das Luzes, a lucidez de Voltaire batia-se pela liberdade de expressão, a plataforma superior da política.
Um século depois, em “Bouvard et Pécuchet”, um livro admirável sobre a estupidez, Flaubert elevaria o conceito de ideia feita a uma espécie de proposição filosófica. “Bouvard et Pécuchet”, publicado postumamente em 1881, inacabado, é um tratado sobre a vulgaridade que se pretende intelectual. Estranhamente presciente do fenómeno das redes sociais e da opinião generalizada e inútil que hoje por aí abunda e orneia em todas as plataformas do narcisismo contemporâneo. A selfie do cérebro comum. Bouvard e Pécuchet são dois homenzinhos ociosos que se interessam por tudo, todas as ciências, religiões, filosofias, teologias, sistemas, literaturas, e tudo debatem e manuseiam sem nada saberem ou aprofundarem. Querem elevar este sistema de ignorância a uma pedagogia. Um amontoado de ideias superficiais que reproduzem as generalidades da bêtise humaine. Na Europa, depois da revolução de 1848, o debate político era aceso e os dois reformados postados numa pastoral e medíocre existência, observam-se ao espelho como dois intelectuais ativos e informados. Mais não fazem do que associar-se a um movimento geral de falsas tranquilizações perante a incerteza de um tempo em mutação.
Toda a história do combate à pandemia na Europa, o continente mais culto do planeta, e que os politicamente corretos me deixem em paz porque considero a cultura do Ocidente a mais perfeita e a mais sofisticada, a que nos habilita, nós, europeus, a compreender o mundo em que vivemos, é uma história de falsos otimismos. Os políticos, perante a adversidade e a hipótese do erro, acharam que a propaganda virtuosa os salvaria do desastre. O desastre seria percebido como uma catástrofe natural, como um terramoto, sem intervenção humana. Ora, foi a intervenção humana que falhou. Os políticos continuam a acenar-nos com um mundo pós-pandemia que estaria intacto para nos receber e à nossa jovialidade. Se estivermos vacinados, o turismo regressará. Se estivermos vacinados e com um passaporte poderemos salvar o verão. Se estivermos vacinados, a vida regressará como dantes. No dia 14 de julho.
A experiência demonstra que nenhuma destas bêtises acertará no pleno. O que os políticos teriam de fazer, e seria um exercício intelectual em vez de voluntarista, era prever e prevenir o pior cenário. O que nunca fizeram. O SNS colapsou? Colapsou. Que dizemos? Dizemos que não colapsou. Em Portugal, o que faremos se o turismo não regressar? O que faremos se a aviação não se salvar? O que faremos se as variantes do planeta não vacinado tornarem as vacinas obsoletas? O que faremos se os confinamentos em acordeão matarem uma economia sem recursos e sem riqueza? O que faremos se as alterações climáticas inutilizarem as decisões do presente, como a do aeroporto? O que faremos quando tudo arde? Em vez da preparação para o pior, atiram-nos migalhas de planos falseados, esperanças falseadas e promessas falseadas, incluindo a ‘bazuca’, um conceito dotado da espessura da ignorância. E assim nos manteremos cândidos.»
Para se ser ministro do Ambiente em Portugal são precisas três coisas: primeiro que tudo, amar profundamente este país maravilhoso que é Portugal e querer absolutamente preservar o que ainda resta daquilo que é o seu maior património, presente e futuro — a sua paisagem natural e ecossistema; segundo, ter bem presente quais são as principais ameaças a essa preservação e ser clarividente na desmontagem dos inúmeros alçapões que se abrem no caminho de quem o quer fazer; terceiro, e consequentemente, estar disposto a travar um combate feroz contra poderosíssimos interesses instalados e suportar as pressões, as ameaças, os riscos inerentes.
Não é tarefa fácil: não basta a um ministro do Ambiente querer defender os tomates contra os abacates, ele tem de ter tomates para enfrentar os abacates.
Como julgo que já toda a gente percebeu, o personagem que, entre nós, responde actualmente pela alcunha de ministro do Ambiente não é homem para essa função. Não sei se lhe falha a primeira qualificação, a segunda, a terceira ou todas elas. Mas, manifestamente, nem ele próprio saberá dizer o que anda por lá a fazer naquele lugar, além de um evidente desejo de não dar nas vistas, sendo tão inútil quanto necessário. E antes que ele volte a escrever para aqui, acusando-me de embirrar com ele de cada vez que não tenho mais nada que fazer, deixem-me notar que não estou sozinho nessa “embirração”: esta semana, a propósito da iminente aprovação de um projecto de construção turística no Mouchão do Lombo do Tejo, pondo em risco a preservação ambiental do estuário do Tejo, um grupo de 11 reputados especialistas no assunto, todos com responsabilidades passadas nessa área, vieram acusar o actual ministro de “envergonhar a sua missão, em pleno século XXI, num país da União Europeia”. E vimos, esta semana também, como o ministro meteu os pés pelas mãos e se refugiou atrás da Autoridade Tributária e de um inesperado ímpeto anti monopolista contra a EDP para justificar o injustificável bónus fiscal de 110 milhões de euros que o Governo deu à EDP. É Matos Fernandes no seu melhor, no seu habitual: há sempre um serviço que atrapalha, um departamento que complica, uma lei que não é clara, um parecer que não esclarece, um grão de areia que o deixa de mãos atadas, na impossibilidade funcional de ser outra coisa que não inútil.
O Tejo foi transformado num esgoto químico há três anos por uma empresa que, até hoje, nada pagou por esse crime ambiental. Mas Matos Fernandes gaba-se de ter limpo o rio — à custa dos contribuintes — sem ter obrigado a empresa a pagar um euro, a garantir que não volta a fazer o mesmo da próxima vez que o rio não tenha caudal, nem tenha tido coragem para mudar a lei para permitir que nenhum expediente jurídico impeça que se meta imediatamente na cadeia alguém que resolve mandar abrir o esgoto de uma fábrica sabendo que vai envenenar o maior rio do país, fonte de vida e de abastecimento de centenas de milhares de pessoas.
E, na semana que entra, quando o Parlamento começar, enfim, a discutir a questão do plantio dos abacates no Algarve — que já vai em 2000 hectares —, ele irá dizer, ou mandar dizer, que o assunto é com a Agricultura e que, embora seja verdade que o abacate gasta muita água e o Algarve tenha pouca e venha a ter cada vez menos, ele tem um plano para trazer água do Guadiana, via Pomarão. (Problema: quando falta água no Algarve, também falta no Guadiana, e os espanhóis, que usam a nossa água para plantar abacates em Tavira e olivais superintensivos no Alqueva, não deixam passar água do Guadiana para baixo.) Mas, em boa verdade, o problema é mais geral do que este homem — reside na cultura instalada muito antes dele e de que ele é apenas um continuador, porventura mais fiel e obediente do que os outros. Veja-se o sistemático retalho e redução das áreas de paisagem protegida, agrícola e ecológica da Rede Natura 2000 e até de Parques Naturais, por via da aprovação dos malfadados Projectos PIN — uma invenção que, em nome de um suposto “interesse nacional”, permite passar por cima de todas as restrições legais à construção e à ocupação do território. Veja-se a modalidade, verdadeiramente terceiro-mundista, da figura da suspensão provisória e ad hoc dos Planos Directores Municipais, a que todos, cidadãos e empresas, têm de se submeter se quiserem construir nem que seja só um metro quadrado dentro de um concelho, mas que podem ser suspensos em casos excepcionais pelo tempo suficiente para que determinados projectos megalómanos sejam aprovados, sendo logo depois repostos em vigor — é assim que, passo a passo, a frente ribeirinha do Tejo, em Lisboa, vem sendo roubada aos lisboetas. Veja-se a tentativa em curso de passar a competência da gestão e licenciamento dentro dos Parques Naturais para as Câmaras Municipais, como se eles não fossem património nacional mas municipal, abrindo caminho para uma inevitável catástrofe paisagística e ambiental.
O problema é, pois, cultural: falta de amor ao país, à sua paisagem, ao seu património natural. E da parte de todos: governantes, autarcas, empresários. Tudo pode ser resumido na imorredoira frase, que eu não me canso de citar, de um ex-presidente da Câmara de Portimão, contemplando a ria de Alvor e suspirando pelos entraves à sua livre urbanização (entretanto, já em curso): “A natureza também tem de nos dar alguma coisa em troca!”
Uma das vantagens de não estar na política é não temer as acusações que os políticos temem, e uma deles é o centralismo. O centralismo é, de facto, um dos problema que temos e que não é assim tão difícil de resolver. Mas o centralismo não é para aqui chamado — nenhum país que se preza abre mão de defender, a nível nacional, os seus recursos naturais. E a paisagem e o ambiente são recursos naturais e nacionais — eu não confio nem nos autarcas nem nos interesses a que eles são permeáveis para o fazerem. É ao Estado que compete essa função.
E há várias coisas que, em linhas gerais, se impõem fazer, por parte dos governos. Uma é, desde logo, terminar com as excepções às leis que delimitam as Reservas Nacionais — uma pequeníssima parte do território: como sucede em qualquer país civilizado, aí não se pode construir e ponto final. A lei é igual para todos, e não há PINS, nem suspensões do PDM, nem excepções de qualquer espécie para ninguém, sob pena de sanções criminais a sério. Depois, é essencial interligar a agricultura com o ambiente e o ordenamento do território, porque só uma visão integrada e abrangente de todas essas áreas permite uma gestão adequada dos recursos e a sua preservação. É preciso que a água passe a ser a prioridade absoluta de qualquer decisão nestas áreas e que a sustentabilidade de novos projectos deixe de ser uma bonita e vã palavra, mas seja sim uma condição prévia e demonstrada para a sua aprovação, nos domínios do consumo de água, energia, captura de CO2, recolha de lixos, etc. É necessário pôr termo ao ultrapassado princípio do poluidor-pagador e substituí-lo pelo efectivo princípio do poluidor-criminoso, pois, se reconhecemos que os crimes ambientais são crimes, devem ser tratados como tal e não reservar para os seus autores apenas o pagamento de uma multa ou mesmo o ressarcimento dos danos materiais causados, como se de uma simples contravenção se tratasse. É preciso uma visão corajosa que contrarie a estratégia instalada a todos os níveis de uma “economia brutal”, baseada na exaustão dos recursos naturais e tendo como objectivo o lucro rápido: o turismo de massas, a ocupação selvagem da orla costeira, a agricultura superintensiva. E, para tal, é fundamental, é decisivo mesmo, terminar com a ligação entre as receitas do IMI e as receitas das autarquias, pois isso é a fonte e o prémio de todos os crimes urbanísticos e factor de desigualdade territorial. Quanto mais uma autarquia autoriza construir, mais receitas do IMI recebe. E quanto mais receitas tem, mais rotundas, centros de dia, pavilhões de congressos e piscinas constrói e mais eleições ganha o seu presidente. E mais se degrada a paisagem, mais betão vem o Ministério do Ambiente injectar nas rochas e mais areia trazer para as praias. Enquanto concelhos do interior, afastados da pressão turistíco-urbanística, vegetam sem verbas para melhorias essenciais. As autarquias deveriam ser financiadas directamente pelo Orçamento do Estado e em função de critérios objectivos — a área e a população — e de critérios subjectivos — o grau de desenvolvimento e, por exemplo, o seu desempenho em termos de qualidade de vida proporcionado às populações e de respeito pelas metas ambientais.
Eu sei, tudo isto é um sonho. Mas se, como disse, para vergonha nossa, a ministra das Finanças da Suécia, é fascinante que os portugueses não se revoltem por ver os suecos viverem aqui com as suas ricas pensões de reforma sem pagarem um euro de IRS, quer lá quer aqui, também é fascinante pensar que, apesar de tudo, temos de agradecer: este Governo que em matéria fiscal é tão generoso com os estrangeiros, como a EDP e os reformados suecos, e tão impiedoso com os portugueses, ainda não nos cobra impostos por ousarmos sonhar. É de aproveitar.
(*O título é roubado ao livro autobiográfico de Hugo Pratt, o imortal criador de Corto Maltese, e tem a ver com o que o pai lhe dizia quando ele era pequeno e, em vez de estudar, só gostava de desenhar: “Queres ser um inútil?” Porém, qualquer comparação com a inutilidade do ministro do Ambiente é deveras injusta.)
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia