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segunda-feira, 12 de abril de 2021

Imaginar o pós-capitalismo

 


por estatuadesal

(António Guerreiro, in Público, 09/04/2021)

António Guerreiro

Já tem um quarto de século, uma boutade proferida por Fredric Jameson, garantindo que “é mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo”. Nos últimos tempos, fomos invadidos por um caudal de discursos (livros, artigos, conferências, etc.) sobre fins e colapsos do mundo, de tal modo que assistimos ao nascimento de uma nova disciplina, de fronteiras incertas, que se chama colapsologia. Já sobre o fim do capitalismo, o que nos chega, quando muito, são ainda os ecos de antigas e falsas profecias, recorrentemente anunciadas e sempre desmentidas. Temos agora a certeza de que Jameson tinha razão: tanta gente a pensar o fim do mundo e quase ninguém a pensar o fim do capitalismo.

Aquilo que o anti-capitalismo clássico, agarrado à noção de “classe capitalista” caracterizada como proprietária dos” meios de produção” e detentora de um “capital fixo” nunca quis perceber muito bem foi que o capitalismo se foi alterando radicalmente do interior e passou a ser “outra coisa”, sempre mutante, esvaziando de razão os pressupostos escatológicos dos anúncios recorrentes do fim e da superação. De tal modo que já não é possível hoje saber do que se está a falar quando se fala em capitalismo. É como dizer “o ambiente”, ou “a atmosfera”, ou “o horizonte”. Nomear hoje o capitalismo exige precisão, implica uma classificação vectorial: há o capitalismo digital, o capitalismo de vigilância, o capitalismo atencional, o capitalismo extractivista, o capitalismo estético, o capitalismo de plataforma e, até, o capitalismo genético. E outros, certamente, pois neste domínio tornou-se difícil ser exaustivo. Assim, temos hoje múltiplos capitalismos, e de alguns deles nós nem sabemos que mercadoria eles põem em circulação ou nem suspeitávamos que era possível extrair mais-valias colossais daquilo que nem tínhamos antes percebido que podia ter um imenso valor de troca. Se há quarenta anos nos viessem dizer que a mercadoria do nosso século é a experiência humana (a experiência da atenção, por exemplo) e o saber sobre os nossos comportamentos nós não acreditaríamos, estávamos ainda colados à ideia de que o capitalismo sobrevive graças à exploração do trabalho humano. Jonathan Crary mostrou muito bem, em 24/7. O Capitalismo Tardio e os Fins do Sono (trad. portuguesa, Antígona), que o capitalismo, que outrora se alimentava durante os nossos horários de trabalho, está agora activo durante as 24 horas dos 7 dias da semana, mesmo que para isso precise de nos roubar o tempo do sono.

Mas é sempre tardiamente que nos apercebemos de que tem um imenso valor aquilo que fomos cedendo gratuitamente, em troca de algo que acreditávamos que era gratuito. Por exemplo, os nossos dados. O que o capitalismo hoje possui não é uma mercadoria material, é a nossa própria despossessão. Foi assim que a “riqueza das nações” foi hoje substituída pela “riqueza das redes”, como anunciou o professor de direito económico em Harvard, Yochai Benkler.

Apesar de algumas inibições dos discursos políticos, já se começa a falar aqui e ali de pós-capitalismo. Por exemplo, a revista francesa Multitudes dedicou-lhe o seu primeiro número de 2018, mas sob a forma da interrogação: “Post-capitalisme?”. Aí encontrávamos, entre outros, um artigo de McKenzie Wark, autora do famoso Hacker Manifesto, que tinha um título inquietante. “E se já nem fosse capitalismo, mas algo ainda bem pior?” McKenzie mostra-se ai muito crítica em relação às esperanças progressistas da tradição marxista e encontra boas razões para ver nestes novos vectores do capitalismo algo bem pior do que a antiga “classe capitalista” porque o poder de predação tornou-se total, começa no controle dos meios para fazer circular e gerir a informação aos mecanismos de financiamento que fazem aumentar o valor, passando pelos servidores que recolhem os nossos dados. Todo este poder colossal, como nunca antes houve outro igual, está concentrado neste acrónimo: GAFAM (Google, Aple, Facebook, Amazon, Microsoft). Podemos achar que McKenzie é exageradamente pessimista, indo assim ao encontro daqueles discursos do colapso que exercem hoje um enorme fascínio. Mas o seu “pós-capitalismo” de feições sinistras tem pelo menos um efeito pedagógico: obriga-nos a desconfiar de antigas e modernas ilusões ligadas a visões da história que já estão caducadas.

Joe Biden, o perigoso esquerdista

Posted: 09 Apr 2021 03:33 AM PDT

 


«Washington, o símbolo do capitalismo, anda por estes dias a dar lições à Europa que fundou o Estado social. O plano de recuperação da economia desenhado pela administração Biden empurra a “bazuca” europeia para um canto envergonhado e o FMI, o monstro protagonista de tantos planos de austeridade por esse mundo fora, vem agora, na sequência da crise da covid, apelar a uma justiça tributária que crie impostos especiais para quem lucrou com a pandemia.

O sistema político americano é diferente do europeu e particularmente do português: no Partido Democrata que elegeu Joe Biden cabe um largo espectro de militantes do Partido Socialista, do Partido Social Democrata e até parte do CDS “fofinho”, aquele que rejeita coligações com o Chega. E é esse Partido Democrata que propõe agora uma revolução para uma reforma global da taxação das multinacionais, de forma a que as grandes empresas mundiais paguem os impostos devidos aos países onde lucram. Uma mudança que, a ser convenientemente aceite pela Europa, mudará a economia mundial em favor dos mais pobres.

“As empresas não vão conseguir esconder os seus rendimentos em paraísos fiscais como as ilhas Caimão ou as Bermudas”, disse Joe Biden ao apresentar o plano de aumento de impostos directos sobre as empresas para financiar o seu megaplano de investimento de combate à crise económica e as novas regras para impedir que a riqueza criada num sítio desapareça rumo a um paraíso fiscal.

O aumento dos impostos sobre as empresas de 21% para 28% é acompanhado da subida da taxa de imposto mínima aplicada aos lucros globais, como aqui explica Sérgio Aníbal, que tem por base os lucros declarados aos investidores com base em operações feita em todo o mundo e não apenas os lucros contabilizados nos Estados Unidos.

A América está a olhar para a situação presente como uma efectiva Grande Depressão, enquanto a Europa arrasta lentamente os pés, como é mais ou menos costume – embora se tenha aprendido alguma coisa depois do desastre da crise financeira. Não deixa de ser interessante que a revolução neokeynesiana nos chegue agora da América, que parecia ter esquecido o “New Deal” há muito. Mas nem sempre as coisas em política são lineares: John Maynard Keynes, que é actualmente o economista inspirador de muitos socialistas, não era do Partido Trabalhista britânico, mas do Partido Liberal. E também do Partido Liberal era William Beveridge, fundador da London School of Economics e autor do famoso Relatório Beveridge, o documento que esteve na base da criação do Estado social no Reino Unido (posto em prática pelo Governo trabalhista de Clement Attlee e não destruído por Churchill). A Europa social tem agora muito que aprender com a América capitalista.»

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A montanha pariu um rato


por estatuadesal

(Estátua de Sal, 09/04/2021)

Sócrates foi corrompido? Talvez. Rosário Teixeira é um incompetente? É!

Seguindo a leitura que Ivo Rosa esteve a fazer do despacho instrutório do processo Marquês, fiquei com os cabelos em pé. Crimes imputados mas já prescritos, acusações sem qualquer indício que vá além de um argumento de romance, incongruências e contradições factuais de datas, desconhecimento dos acórdãos do Tribunal Constitucional, contradições mesmo entre partes várias da acusação. Como é possível que um processo desta importância tenha tantas falhas, aberrações e atropelos ao Direito?

Tudo começou com a prisão de Sócrates. À época o Ministério Público não tinha qualquer prova que incriminasse o detido. Prendeu para investigar. Investigou e deve dizer-se que nenhum político em Portugal, em algum tempo, foi tão devassado e escrutinado como Sócrates. O facto de o MP não ter encontrado nenhuma prova objetiva e insofismável de que Sócrates tenha sido corrompido, deve levar-nos a pensar. Com milhares de escutas ao próprio e a todos os que o rodeavam, apreensão de emails e correspondência cobrindo largos períodos de tempo, em nenhum momento vem ao de cima “conversas” que indiciem os presumíveis crimes?! É, de facto, tão estranha essa ocorrência, tanto ou mais estranha ainda que a facilidade com que o amigo de Sócrates lhe fazia chegar elevadas quantias de dinheiro.

Depois de ter promovido a prisão de um ex-Primeiro Ministro, com informação prévia à imprensa e às televisões, o Ministério Público tinha que construir posteriormente uma acusação que justificasse uma tão grave diligência. Não conseguiu, apesar de ter recorrido a uma panóplia de atropelos aos formalismos e às regras mínimas do processo penal, como ficou patente na longa leitura de Ivo Rosa.

No final da decisão de Ivo Rosa o que restou? Essencialmente as dúvidas do Juiz em o amigo de Sócrates lhe entregar dinheiro de forma capciosa e sub-reptícia, indiciando tal um crime de corrupção sem objeto identificado – ainda que já prescrito -, originando em consequência um crime de branqueamento de capitais.

É sabido que a Justiça ainda vai seguir o seu percurso e que o MP irá seguramente recorrer da decisão de Ivo Rosa. Contudo, apesar de não ser jurista, parece-me que dificilmente a decisão agora havida poderá ser muito alterada, tal o cuidado e a qualidade jurídica dos argumentos contidos neste despacho de pronúncia.

Contudo, deve desde já elogiar-se Ivo Rosa. Pela primeira vez no processo Marquês a comunicação social e as televisões não foram informadas previamente do que iria ser o resultado das suas decisões. O segredo de justiça foi respeitado até ao fim, o que é inédito no âmbito do dito processo.

Sendo a Justiça um sistema imperfeito – porque humanos e imperfeitos são os seus agentes -, fiquei hoje com a sensação de que o sistema contém em si, ainda assim, uma lógica de contrapesos que lhe permite corrigir os seus próprios limites e falhas.

Assim o consiga fazer em tempo útil e com o mínimo de danos para quem sofra de tais deficiências. No caso de Sócrates, tal já não será possível. Devido à mediatização do processo, decorrente das reiteradas violações do segredo de justiça, para o bem ou para o mal, já todos o julgámos. 

quinta-feira, 8 de abril de 2021

Quer saber como se polariza o debate? Leia títulos de jornais.

 

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 07/04/2021)

Daniel Oliveira

A técnica do extremista político (a que por facilidade se tem chamado “populista”), num tempo em que as redes sociais contribuem para a polarização, é dizer ou escrever coisas polémicas e esperar que a indignação siga o seu caminho. Mesmo que ela seja mal fundamentada, garante atenção. As reações negativas são o seu melhor promotor. Não o tornam apenas protagonista do debate, conseguem que as coisas inaceitáveis que ele diz ganhem o estatuto de tema fraturante, centro de confronto e polémica, passando a ser ele a definir a agenda política. Até estarmos todos a discutir os temas que ele escolhe como relevantes, nos termos que ele define como oportunos e quase sempre em torno das simplificações e caricaturas que ele próprio desenha. Não falta, aliás, quem esteja disponível a corresponder ao adversário desejado, para ser a sua antítese. Porque aceita que seja o extremista a definir os termos em que se faz o confronto.

Como é que os extremistas (não confundir com radicais) descobriram esta técnica? Não descobrindo coisa alguma. Limitaram-se a aproveitar as regras impostas pela comunicação social. Não foram eles que inventaram os títulos polémicos e enganadores em busca de cliques para notícias que tinham tudo para ser sóbrias. Não foram eles que fizeram da exceção a regra, seguindo a máxima de que há notícia quando o homem morde no cão, não quando acontece o oposto. Uma coisa que fazia sentido quando não tínhamos ciclos noticiosos de 24 horas, com um matraqueamento tal que conseguimos convencer um país inteiro que a norma agora é os homens morderem os cães, ao contrário do que acontecia no passado.

Não foram os extremistas políticos que inventaram a lógica do debate prós e contras, que reduz os confrontos a dois lados contrastados e inconciliáveis. Seja qual for o tema. E já nem sequer são apenas (ou especialmente) os colunistas de extrema-direita que vivem de artigos de opinião que se esgotam nos títulos e que sugam de qualquer tema o que de mais polémico ele possa ter. E se não for polémico, o mais descarado “whataboutismo”, recurso preguiçoso de todos os preguiçosos.

É possível que qualquer pessoa que escreve e fala com frequência no espaço público já tenha cedido a esta facilidade, mas há quem faça disto carreira. E que seja aplaudido pelo “desassombro”, a “coragem”, a “frontalidade”, a “liberdade”. Ser polémico ou inaceitável, chocante ou abjeto, passou a ser uma qualidade profissional. No passado, tinha de se juntar a estes atributos uma enorme qualidade argumentativa. Assim, sim, compreendia-se a vantagem diferenciadora: defender bem o que é difícil de defender, que a maioria recusa, exige ser melhor do que os outros. Agora, não é preciso nada. Só a reação indignada. A cultura de trincheira fará o resto, com dois exércitos reativos prontos para se digladiarem em torno de pouco mais do que nada.

Leio na imprensa de referência e oiço nos espaços de comentário televisivo um enorme incómodo com a polarização da política e da sociedade. E a responsabilização das redes sociais por isso. Ou dos partidos de extrema-direita ou até “antissistémicos”. Mas foi a lógica concorrencial dos media, que pede espetáculo em vez de reflexão, grotesco em vez de inteligência, apenas ajudada pelas redes sociais, que tornou este discurso mais apetecível para quem queira ter algum sucesso mediático. Foi a comunicação social mainstream que alimentou o debate polarizado e deu valor comercial à afirmação chocante. A política veio depois.

quarta-feira, 7 de abril de 2021

Os adultos são chamados à sala

Posted: 06 Apr 2021 03:52 AM PDT

 


«Numa altura em que o Centro Europeu de Controlo de Doenças (CECD) coloca Portugal em primeiro lugar na situação epidemiológica relativa à pandemia, apenas ultrapassado no continente europeu pela Islândia, e iniciada ontem a segunda fase do desconfinamento, resta-nos apelar ao sentido cívico de todos para que não voltemos a ser os piores do mundo e para que, deste modo, possamos começar a recuperação de uma cavada crise económico-financeira e social.

Todas as organizações que se dedicam meritoriamente ao apoio aos mais carenciados dão nota de números crescentes de pedidos de auxílio, que abrangem já a classe média, e que demandam, de todos, uma constante atenção para com o outro. Só o Banco Alimentar, nos primeiros seis meses de funcionamento da Rede de Emergência, valeu a mais de 60.750 pessoas. Neste ponto, estou em crer que a nossa secular História, como nos tem demonstrado, não deixará de ser a massa unificadora de uma sociedade coesa e solidária.

Todavia, os sinais são deveras preocupantes. No seu mais recente relatório (World Economic Outlook), o Fundo Monetário Internacional (FMI), já em Abril, assume que os efeitos económicos da pandemia implicam e implicarão consideráveis perdas de médio prazo, embora, como sempre, mais salientes nos países menos desenvolvidos. Estima-se, não obstante, que os efeitos não serão tão gravosos quantos os advenientes da crise das dívidas soberanas, iniciada em 2008, e que por cá pôs o país perto da bancarrota e trouxe-nos a troika de volta.

Em 2024, prevê-se que o crescimento do PIB global seja 3% abaixo do expectável pré-covid. A contracção na indústria hoteleira e da restauração representa, em Espanha, perdas de 6% a 7% da riqueza nacional, o que não andará longe do que sucede em Portugal. Na educação, um estudo recente da OIT (Organização Internacional do Trabalho) verificava que 65% dos estudantes têm a percepção de menos aprendizagens com as aulas online, para já não falar nos dados de um estudo promovido pela UNESCO, Unicef e Banco Mundial, que aponta como principais problemas para os novos modelos de ensino-aprendizagem as circunstâncias de 68% dos estudantes do mundo não terem sequer acesso à electricidade, 65% à Internet e 58% dos professores não disporem ou estarem preparados para lidar com as novas ferramentas.

Donde, como nos vêm dizendo – e bem –, é suicídio que Portugal junte às crises sanitária e económica uma crise política. Para tal será essencial que o primeiro-ministro interiorize que não governa com maioria absoluta e que a forma como tem tratado alguns parceiros da anterior solução governativa é de uma altivez que, aqui e além, roça tiques autoritários que criticou a Cavaco ou de que também padeceu Sócrates. Em especial com o BE, é urgente refazer pontes, o que é sempre um caminho bilateral, evitando os afrontamentos públicos a que vimos assistindo. Tanto assim é que, se o PCP tiver mais um decepcionante resultado eleitoral, agora nas autárquicas, a cooperação que tem mantido com o PS pode entrar em colapso. Os comunistas têm um património secular de luta pelos interesses do país, por certo à luz dos seus ideais, de que discordo. Mas tal património pode ceder quando confrontado com a dura realidade de se tornar uma força política irrelevante e descaracterizada, tanto mais que a sua perda de força no terreno será proporcional à capacidade negocial com o Governo.

Numa palavra, as esquerdas devem, quanto mais não seja por dever patriótico, encontrar plataformas comuns de entendimento aptas a relançar a economia e o emprego. Nas últimas legislativas, o Povo português demonstrou que a “geringonça” era para continuar e o PS pré-pandemia acreditou que poderia criar uma crise política quando as sondagens apontassem para uma maioria absoluta. Tal não vai suceder até ao fim da legislatura.

A outra alternativa, de direita, não arranca, com um PSD ziguezagueante e um líder incapaz de se afirmar dentro e fora do partido. O argumento de que são os governos que perdem as eleições e não as oposições que as ganham só em parte procede, pois os eleitores, se não vislumbrarem ao menos um lampejo de caminho alternativo, deixam-se ficar. A lei mais cumprida no mundo é a do menor esforço ou da força da inércia. O CDS está moribundo, a IL não parece descolar dos valores já alcançados e as opções mais à direita nem merecem comentário.

Donde, como bem diz o Presidente da República, os próximos dois Orçamentos do Estado serão essenciais e espera-se de Marcelo que, como diz, tudo faça para segurar a maioria parlamentar, pela pragmática razão que ela é a única que já deu provas de funcionar. Por certo com erros ou imperfeições, mas, quando se faz a chamada, quem mais diz “presente”?»