Simone Lucie-Ernestine-Marie Bertrand de Beauvoir morreu em 14 de Abril de 1986, com 78 anos. Ela que disse um dia, num documentário divulgado mais abaixo, que «a vida não é uma coisa que se tenha, mas sim algo que passa».
Tudo já foi escrito sobre esta escritora, intelectual, activista política e feminista, mas vale talvez a pena recordar o papel decisivo de uma das suas obras – Le Deuxième Sexe –, publicada em 1949. Esteve longe de ser um manifesto militante ou arauto de movimentos feministas que, em França, só viriam a surgir quase duas décadas mais tarde, já que as mentalidades não estavam preparadas para a problemática da libertação da mulher tal como Simone de Beauvoir a abordou, nem para a crueza da sua linguagem.
As reacções não se fizeram esperar, tanto à esquerda (onde o problema da mulher estava fora de todas as listas de prioridades), como, naturalmente, à direita. François Mauriac escreveu: «Nous avons littérairement atteint les limites de l’abject», Albert Camus acusou Beauvoir de «déshonorer le mâle français».
Para a compreensão e a consagração da obra foi decisivo o sucesso nos Estados Unidos, onde foi publicada em 1953. O movimento feminista, em que Betty Friedman e Kate Millet eram já referências, estava aí suficientemente avançado para a receber. Efeito boomerang: Le Deuxième Sexe «regressou» à Europa no fim da década de 50, com um outro estatuto, quase bíblico, e teve a partir de então uma longa época de glória.
Simone de Beauvoir nunca provocou grandes empatias e foi sempre objecto de discussões sem fim sobre a sua importância relativa quando comparada com a de Sartre. Mas, goste-se ou não, estava no centro do Olimpo que Paris era então – quando, no Café de Flore, toda a gente vivia envolta em fumo e Juliette Greco cantava «Il n’y a plus d’après».
«1. Portugal deixou para trás a terceira vaga da pandemia. A dúvida é se virá outra. Sendo certo que, se vier, a ameaça para a saúde pública já não será a mesma: até ao final de maio, estará vacinada toda a população com mais de 60 anos (faixa etária que concentra 95% das mortes por covid-19).
Mas há uma outra ameaça no horizonte, aumente ou não o número de infeções, internamentos ou mortes. Vem aí uma vaga de despedimentos, como se explica nesta edição do JN. Seja por causa do fim de apoios como o lay-off, seja pela escassez de encomendas, seja porque já havia empresas condenadas a emagrecer ou desaparecer, alguns milhares de famílias vão sentir o verão, não como um tempo de esperança, mas como mais uma etapa de um longo pesadelo. Como sempre, serão os precários, os que têm salários mais baixos, os que têm menor formação, a pagar a fatura mais elevada. O Estado não pode resolver tudo, mas tem a obrigação de encontrar fórmulas para garantir um pouco mais de resiliência às empresas. Investir a montante, para poupar a jusante.
2. Há iniciativas políticas condenadas ao fracasso. É o caso da "raspadinha do património", com que o Ministério da Cultura se propõe financiar, a partir de maio, o Fundo de Salvaguarda do Património Cultural. Consciente das receitas que este jogo promete, a ministra, ou alguém por ela, quis garantir mais uma fatia. Na verdade, o retorno de cinco milhões é ridículo quando comparado com o produto original - 1718 milhões de euros de receitas em 2019, que a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa garante redistribuir quase na íntegra, incluindo 20 milhões ao próprio Ministério da Cultura, só no ano passado. Sabe-se que são os mais vulneráveis os que mais apostam e perdem com as raspadinhas. E que os Centros de Apoio a Toxicodependentes e os hospitais estão agora cheios de viciados na raspadinha, como explicámos na edição de ontem do JN. É então com o patrocínio dos mais pobres e dos mais velhos que se pretende pagar a manutenção do património. Uma iniciativa infeliz e ineficaz.»
(Frederico Carvalhão Gil, in Facebook, 13/04/2021)
O princípio do Estado de direito é coisa que os juristas portugueses ainda não compreenderam porque a memorização acrítica de coisas que se vão dizendo ex-cátedra por docentes que se formaram nessa roda viciosa de cretinices germanófilas, apesar de o conhecimento suficiente do alemão não abundar assim tanto.
É, por isso, que quando abrimos um livro de direito de autor português é quase certo que lá virá a acrítica e compulsiva repetição de que o Estado de Direito é coisa que se deve aos alemães, não obstante de, por cá, já nos anos 20 do século XIX se utilizar a expressão «governo da lei». Dizem os ditos que estado de direito vem do alemão Rechtsstaat que mais não é do que somente o reino da legalidade. Seja um estado legal «perfeitamente acomodado a regimes totalitários, como a eleição «democrática» de Hitler, legítima porque legal».
Na verdade, um estado de direito tem que ter como vértice - na tríade indivíduos, estado, direito -, o direito que regula a relação entre os indivíduos entre si, e os indivíduos e o estado, e não da relação direta entre o estado e os indivíduos, à maneira de Carl Schmitt, como o apregoou recentemente Marcelo (o afilhado) como profissão de fé nos inimigos da Estado de Direito (o Governo da Lei, The Rule of Law).
Mas os doutores em Portugal, inclusive os dos tribunais e anexos carregam livros, como poderia sintetizar a sabedoria popular portuguesa, e também aquela conhecida máxima de sabedoria de Heráclito em que se diz que o muito estudar não dá inteligência.
E por isto - e outras cretinices - a administração da justiça é um problema político em Portugal. E se o bom senso não fosse o arbítrio de quem o usa, diria que é preciso passar à reforma procuradores, juízes, professores de direito que ainda não viram a luz do conhecimento, que não aprenderam o significado do sapere aude de E. Kant, e preferem mergulhar no reino da ignorância repetindo fórmulas que lhes disseram serem o bom pensamento, mas na ausência do saber pensar bem.
É um avacalhamento da ordem constitucional portuguesa, das normas e princípios que a estruturam, afirmar que a lei serve a política e não o contrário. Isto é muito pior do que as javardices do chefinho do Chega, este subproduto das «covert actions» financiadas pelo tal ricalhaço com negócios na América. Mas todos fingem que está bem para bem parecer!
(José Miguel Júdice, in Expresso Diário, 13/04/2021)
(Júdice não terá, seguramente, qualquer simpatia por Sócrates mas é um experimentado jurista e conhecedor do funcionamento dos nosso sistema de Justiça. Mas até ele sentiu necessidade de se precaver, por antecipação, das críticas que lhe vão ser dirigidas pelo facto de não embandeirar em arco na lapidação pública ao juiz Ivo Rosa.
Contrariamente à indigência jurídica e à menoridade intelectual de outro comentador de direita - Marques Mendes -, Júdice é outra loiça: sólido no argumentário jurídico, escorreito nas suas considerações. Por isso o publicamos.
Comentário da Estátua, 14/04/2021)
Vou entrar, em plena consciência e por isso sem demasiadas ilusões, num terreno minado. Vou tratar hoje do chamado “Processo Marquês”.
A situação está de tal modo radicalizada e emocional que André Ventura até pareceu moderado (comparado com o que li de pessoas moderadas) no modo como tentou aproveitar a seu favor a Decisão de 6ª feira do Juiz Ivo Rosa.
Quando as coisas estão assim, a opinião pública não tolera que se aborde com serenidade e independência o tema. Mas – talvez sobretudo por isso – acho que tenho o dever de tentar.
E faço-o sobretudo pelas seguintes razões: dediquei a minha vida à Justiça, acumulei 40 anos de experiência de tribunais (o que não creio que ocorra com nenhum dos habituais comentadores televisivos regulares e com quase ninguém que abordou o tema nos media), fui Bastonário e Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados.
Como é natural, hoje não surgem as secções finais de “As Causas”: por falta de tempo, claro; mas sobretudo porque neste tema há espaço para elogio, para lembrar que ler é sempre o melhor remédio, para fazer perguntas que não vão ter respostas e para revelar loucura mansa.
O ESSENCIAL DA DECISÃO IVO ROSA
A começar, um resumo das conclusões essenciais:
A Decisão Instrutória foi escrita por um juiz experiente, preparado e independente, mas revela as fragilidades que também o definem e erra em pontos muito importantes.
A revolta social, que se compreende, está a ocultar que a investigação criminal foi esforçada, beneditina, atenta aos detalhes, mas estrategicamente incompetente, e nela está a origem do que estamos a viver.
A estratégia socratiana de “animal feroz” destrói a mera possibilidade social de empatia com as sucessivas violações dos direitos fundamentais, desrespeito do processo devido e abusos de poder, de que são exemplos marcantes as prisões preventivas (e o modo como foram feitas) e os acessos de certos meios de comunicação ao inquérito, que assim fizeram durante anos um julgamento na praça pública, o que por sua vez condicionou os próprios investigadores.
O processo penal é contraditório a partir da instrução, e os advogados (a quase totalidade são profissionais especialistas em prática individual ou sócios de pequenos escritórios) aproveitaram como é seu dever a investigação criminal pouco competente; e os seus argumentos de um modo geral tiveram sucesso.
Se hoje houvesse um capítulo para o Elogio ele seria para os advogados de defesa dos arguidos, até pela coragem que em ambientes deste tipo é preciso para defender quem a opinião pública acha que não merece defesa.
Ivo Rosa é a antítese de Carlos Alexandre e assume-se como juiz das liberdades e nisso aplica o mandato constitucional, o que torna objetivamente mais grave para o ex-Primeiro Ministro e outros arguidos as conclusões a que ele chegou.
Por isso Ivo Rosa matou politicamente José Sócrates – goste-se ou não que assim seja – muito mais claramente do que se fosse Carlos Alexandre (“justiceiro” e colaborador do MP) a pronunciá-lo e a todos os arguidos mesmo que por todos os crimes de que vinham acusados, como seria mais do que provável.
Finalmente, o sistema judicial tem em si todos os instrumentos para rever – se for caso disso - o Despacho de Ivo Rosa, pelo que escusam de rasgar as vestes os que acham que não há Justiça em Portugal.
AS NECESSÁRIAS EXPLICAÇÕES
Feito o resumo, agora algumas explicações:
Ivo Rosa foi – sem nenhuma necessidade jurídica – muito para além da missão do Juiz de Instrução, que é pronunciar ou não pronunciar, não sendo útil criticar com enfase e adjetivos a acusação, como não o seria fazer o mesmo à defesa. Nesse sentido, vestiu a pele do Juiz do Julgamento – mas isso morre com a Decisão e não tem efeitos jurídicos.
Creio que Ivo Rosa errou na questão fiscal e quando decidiu não pronunciar Ricardo Salgado e Helder Bataglia, o que deveria ter feito registando que – devido à confissão de Bataglia - há fortes indícios de que ao menos um deles corrompeu ou tentou corromper, e que deveria ser o juiz do julgamento a decidir – mas isso pode ser alterado pelo Tribunal da Relação.
A decisão sobre prescrição segue a doutrina conhecida do Tribunal Constitucional, mas como esta não tem (ainda) força obrigatória geral, pode também ser revista e alterada pelo Tribunal da Relação.
A pronúncia com base em indícios de corrupção de Sócrates feita por Santos Silva foi defendida por advogados de defesa na instrução, e o MP teria podido aditar à acusação essa tese de forma subsidiária, fortalecendo-a, o que não quis fazer; e ela é compatível com a existência de corrupções a montante, pelo que a insistência na teoria do “testa de ferro” foi um erro estratégico do MP.
Se hoje houvesse o capítulo da Pergunta sem Resposta, ela seria para o MP que não teve a cautela de fazer o óbvio, o que permite agora – corretamente, ou não – ao advogado de José Sócrates ir defender a nulidade da pronúncia com esse fundamento.
O MP partiu de dois factos inequívocos – Carlos Santos Silva fornecia dinheiro a Sócrates a partir de contas com mais de 30 milhões de euros – para tentar a seguir descobrir corruptores ativos, foi passando de uns para outros, tudo isso foi divulgado por alguns meios de comunicação social, e desse modo o MP ficou refém da sua estratégia, optando – como tantas vezes faz, e em regra com o apoio de Carlos Alexandre – por acusar tudo e todos e por todos os crimes que tenha à mão, e depois quando perde no julgamento a “culpa” é dos juízes.
A linha da decisão de Ivo Rosa está correta, pois segue a sábia doutrina dos meus mestres Eduardo Correia, Figueiredo Dias, Costa Andrade e outros (a doutrina aliás já vem do tempo da Ditadura o que não é dizer pouco…).
Esta linha doutrinária é muito rigorosa e defende que para se poder pronunciar um arguido é necessário que existam “indícios suficientemente consistentes para tornarem previsível a condenação” (ou, nas palavras do art. 308, nº1 do CPP, “indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena”, ao passo que a acusação (art. 283 2 do CPP) exige e basta-se com indícios de que haja “uma possibilidade razoável” de vir a ser aplicada, por força deles, uma pena em julgamento.
Em termos legais, há um oceano a separar a “possibilidade razoável” da “previsibilidade” de condenação. Por isso é normal – mesmo que o MP seja cauteloso, mas nos casos mediáticos prefere não ser – que a pronúncia não coincida com a acusação (até porque na fase da instrução surge o contraditório que não havia no inquérito).
Vou entrar, em plena consciência e por isso sem demasiadas ilusões, num terreno minado. Vou tratar hoje do chamado “Processo Marquês”.
A situação está de tal modo radicalizada e emocional que André Ventura até pareceu moderado (comparado com o que li de pessoas moderadas) no modo como tentou aproveitar a seu favor a Decisão de 6ª feira do Juiz Ivo Rosa.
Quando as coisas estão assim, a opinião pública não tolera que se aborde com serenidade e independência o tema. Mas – talvez sobretudo por isso – acho que tenho o dever de tentar.
E faço-o sobretudo pelas seguintes razões: dediquei a minha vida à Justiça, acumulei 40 anos de experiência de tribunais (o que não creio que ocorra com nenhum dos habituais comentadores televisivos regulares e com quase ninguém que abordou o tema nos media), fui Bastonário e Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados.
Como é natural, hoje não surgem as secções finais de “As Causas”: por falta de tempo, claro; mas sobretudo porque neste tema há espaço para elogio, para lembrar que ler é sempre o melhor remédio, para fazer perguntas que não vão ter respostas e para revelar loucura mansa.
O ESSENCIAL DA DECISÃO IVO ROSA
A começar, um resumo das conclusões essenciais:
A Decisão Instrutória foi escrita por um juiz experiente, preparado e independente, mas revela as fragilidades que também o definem e erra em pontos muito importantes.
A revolta social, que se compreende, está a ocultar que a investigação criminal foi esforçada, beneditina, atenta aos detalhes, mas estrategicamente incompetente, e nela está a origem do que estamos a viver.
A estratégia socratiana de “animal feroz” destrói a mera possibilidade social de empatia com as sucessivas violações dos direitos fundamentais, desrespeito do processo devido e abusos de poder, de que são exemplos marcantes as prisões preventivas (e o modo como foram feitas) e os acessos de certos meios de comunicação ao inquérito, que assim fizeram durante anos um julgamento na praça pública, o que por sua vez condicionou os próprios investigadores.
O processo penal é contraditório a partir da instrução, e os advogados (a quase totalidade são profissionais especialistas em prática individual ou sócios de pequenos escritórios) aproveitaram como é seu dever a investigação criminal pouco competente; e os seus argumentos de um modo geral tiveram sucesso.
Se hoje houvesse um capítulo para o Elogio ele seria para os advogados de defesa dos arguidos, até pela coragem que em ambientes deste tipo é preciso para defender quem a opinião pública acha que não merece defesa.
Ivo Rosa é a antítese de Carlos Alexandre e assume-se como juiz das liberdades e nisso aplica o mandato constitucional, o que torna objetivamente mais grave para o ex-Primeiro Ministro e outros arguidos as conclusões a que ele chegou.about:blank
Por isso Ivo Rosa matou politicamente José Sócrates – goste-se ou não que assim seja – muito mais claramente do que se fosse Carlos Alexandre (“justiceiro” e colaborador do MP) a pronunciá-lo e a todos os arguidos mesmo que por todos os crimes de que vinham acusados, como seria mais do que provável.
Finalmente, o sistema judicial tem em si todos os instrumentos para rever – se for caso disso - o Despacho de Ivo Rosa, pelo que escusam de rasgar as vestes os que acham que não há Justiça em Portugal.
AS NECESSÁRIAS EXPLICAÇÕES
Feito o resumo, agora algumas explicações:
Ivo Rosa foi – sem nenhuma necessidade jurídica – muito para além da missão do Juiz de Instrução, que é pronunciar ou não pronunciar, não sendo útil criticar com enfase e adjetivos a acusação, como não o seria fazer o mesmo à defesa. Nesse sentido, vestiu a pele do Juiz do Julgamento – mas isso morre com a Decisão e não tem efeitos jurídicos.
Creio que Ivo Rosa errou na questão fiscal e quando decidiu não pronunciar Ricardo Salgado e Helder Bataglia, o que deveria ter feito registando que – devido à confissão de Bataglia - há fortes indícios de que ao menos um deles corrompeu ou tentou corromper, e que deveria ser o juiz do julgamento a decidir – mas isso pode ser alterado pelo Tribunal da Relação.
A decisão sobre prescrição segue a doutrina conhecida do Tribunal Constitucional, mas como esta não tem (ainda) força obrigatória geral, pode também ser revista e alterada pelo Tribunal da Relação.about:blank
A pronúncia com base em indícios de corrupção de Sócrates feita por Santos Silva foi defendida por advogados de defesa na instrução, e o MP teria podido aditar à acusação essa tese de forma subsidiária, fortalecendo-a, o que não quis fazer; e ela é compatível com a existência de corrupções a montante, pelo que a insistência na teoria do “testa de ferro” foi um erro estratégico do MP.
Se hoje houvesse o capítulo da Pergunta sem Resposta, ela seria para o MP que não teve a cautela de fazer o óbvio, o que permite agora – corretamente, ou não – ao advogado de José Sócrates ir defender a nulidade da pronúncia com esse fundamento.
O MP partiu de dois factos inequívocos – Carlos Santos Silva fornecia dinheiro a Sócrates a partir de contas com mais de 30 milhões de euros – para tentar a seguir descobrir corruptores ativos, foi passando de uns para outros, tudo isso foi divulgado por alguns meios de comunicação social, e desse modo o MP ficou refém da sua estratégia, optando – como tantas vezes faz, e em regra com o apoio de Carlos Alexandre – por acusar tudo e todos e por todos os crimes que tenha à mão, e depois quando perde no julgamento a “culpa” é dos juízes.
A linha da decisão de Ivo Rosa está correta, pois segue a sábia doutrina dos meus mestres Eduardo Correia, Figueiredo Dias, Costa Andrade e outros (a doutrina aliás já vem do tempo da Ditadura o que não é dizer pouco…).
Esta linha doutrinária é muito rigorosa e defende que para se poder pronunciar um arguido é necessário que existam “indícios suficientemente consistentes para tornarem previsível a condenação” (ou, nas palavras do art. 308, nº1 do CPP, “indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena”, ao passo que a acusação (art. 283 2 do CPP) exige e basta-se com indícios de que haja “uma possibilidade razoável” de vir a ser aplicada, por força deles, uma pena em julgamento.
Em termos legais, há um oceano a separar a “possibilidade razoável” da “previsibilidade” de condenação. Por isso é normal – mesmo que o MP seja cauteloso, mas nos casos mediáticos prefere não ser – que a pronúncia não coincida com a acusação (até porque na fase da instrução surge o contraditório que não havia no inquérito).
Se hoje houvesse o capítulo Ler é o Melhor Remédio, a sugestão era para se lerem as lições destes professores da Escola de Coimbra.
Se o MP tivesse optado por acusações separadas para cada tipo de situação, em vez do tradicional megaprocesso, o efeito mediático seria muito menor, mas a eficácia processual muito maior.
Uma decisão de um juiz como Ivo Rosa – que é muito mais exigente do que outros no conceito de “previsibilidade” da condenação – é muito pior para Sócrates em termos políticos.
Não acredito – conheço o MP bem – que houvesse uma conspiração para o destruir politicamente e evitar que viesse a ser eleito presidente da República. Pessoas como Rosário Teixeira merecem o meu respeito em termos éticos.
Mas, com toda a sinceridade, um político com a experiência e ambição que José Sócrates (ele confessa agora que queria ter sido eleito presidente da República em 2016) nunca deveria ter aceite o que aceitou receber de Santos Silva, e como o aceitou, mesmo que não se prove – ou mesmo que não tenha havido – corrupção. E disso só ele é responsável.
Por isso se houvesse hoje o capítulo Loucura Mansa, seria para a forma como o ex-Primeiro-Ministro desgraçou o seu futuro político.
Finalmente, 7 procuradores durante 5 anos, apoiados em permanência por um Inspetor Tributário, realizaram um
inquérito com meios e condições nunca existentes, reuniram milhares de documentos, acusaram em documento com mais de 3200 páginas, depois dezenas de advogados carrearam para o processo largas centenas de documentos durante 2 anos e meio e um juiz de instrução – sozinho – em 8 meses, sem férias nem fins de semana, segundo o próprio, teve de decidir e para isso de escrever mais de 6500 páginas.
Ivo Rosa seguramente que não tomou uma decisão sem erros, mas com a minha experiência de julgador o que me admira é que sejam tão poucos. E isso é matéria essencial para reflexão.
QUE FAZER? REFORMAS DO SISTEMA JUDICIAL PENAL
Agora algumas sugestões que resultam de tudo isto:
É urgente mudar radicalmente a cultura do inquérito, reforçando o caráter de magistratura do MP e admitir no futuro que o Estado Português se possa constituir assistente, para separar as águas e evitar a tentação dos procuradores em se tornarem advogados de acusação.
É urgente acabar com o “Ticão”, por tantas razões que uma hora não chegava para de todas falar.
«A imagem de Ursula von der Leyen arredada dos lugares de honra, devido a um erro de protocolo, na recente visita de Estado à Turquia, representa bem a metáfora do estado da União Europeia na cena política mundial.
Sem dúvida constrangedora a imagem da presidente da Comissão Europeia, sentada num sofá lateral, afastada da importância simbólica exigida pelo cargo que ocupa. Parece ser esse o lugar político da União.
Depois de um arranque promissor na forma integrada como a UE reagiu à pandemia e como, pela primeira vez, a resposta a uma crise surgiu conjunta e coesa, rapidamente os 27 deixaram vir a lume as divergências - as fragilidades de uma união política à procura ainda daquilo que verdadeiramente a une. Os primeiros percalços no processo de vacinação foram suficientes para voltarmos a ver cada um a olhar para o interesse particular do seu país, sem qualquer pejo em deixar à vista de todos que o interesse comum é uma boa bengala retórica a que se recorre nos discursos de circunstância.
Seja pelas diferentes medidas relativamente à vacina da AstraZeneca, seja nas estratégias para suprir a falta de vacinas, cada país trata de se remediar, mandando às urtigas a promessa de que os 27 iriam cuidar da crise pandémica com a solidariedade de um momento excecional.
Perante tal situação, podem os cidadãos confiar numa estratégia, abalada diariamente por episódios que a põem em causa, verdadeiros ou postos a circular por interesses mais ou menos obscuros, quando cada um dá uma resposta que contradiz a do vizinho?
Neste momento, devemos reconhecê-lo, os cidadãos do Reino Unido devem estar a agradecer o timing com que o populista Boris Johnson os desafiou a abandonar o barco dos 27 e a acantonarem-se na ilha.»