(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 23/04/2021)
1 A Iniciativa Liberal tem tido mais sucesso com a parte das iniciativas do que com a parte liberal. A última das suas iniciativas foi um achado de imaginação e estratégia política: pedir à Associação 25 de Abril para integrar o desfile oficial evocativo da data, em vez de a celebrar à parte, como sempre tem feito. Como seria de prever, o coronel Vasco Lourenço, presidente vitalício da coisa, foi lesto a dizer que não, caindo na esparrela, sem pensar duas vezes. Tantos anos depois e ele ainda se acha dono do 25 de Abril! Tantos anos depois e ele ainda não percebeu bem o que foi o 25 de Abril!
2 Um dos personagens mais “redondos” da nossa República é o “politólogo” José Adelino Maltez, a quem os jornais costumam pedir regularmente umas opiniões no domínio da sua “especialidade” — recebendo em troca um acervo de banalidades e lugares-comuns ao alcance de qualquer intelectual de café. Desta vez e na pele de ex-candidato a grão-mestre do Grande Oriente Lusitano, essa confraria de grandes intelectuais e samaritanos, Maltez exigiu ser ouvido no Parlamento acerca do projecto regimental que pretende obrigar os deputados a declarar a sua filiação em organizações “discretas” ou “secretas”, como o Opus Dei ou a Maçonaria, de que ele é orgulhoso membro e desastrado propagandista. E, ao que li, deu uma verdadeira lição de boas práticas democráticas aos deputados. Começando por se intitular também “professor” (quem o não é, nos tempos que correm?), o politólogo grão-mestre e mestre disse-lhes que não estava para aturar deputados nem partidos, que a Assembleia da República não era mais do que uma extensão do próprio Grande Oriente Lusitano — tantos eram ou tinham sido os seus membros ali dentro — ao ponto de “se sentir em casa” quando lá entrava, e isto com excepção dos deputados sem avental, que, esses, eram apenas ignorantes, ridículos e reaccionários. E, depois de frisar bem que a Assembleia da República era “o maior templo da Maçonaria em Portugal”, despediu-se em grande e em latim, e, ao que parece, devidamente saudado pelo deputado José Magalhães. E um tipo assim, sem préstimo que se conheça ou que se recomende, vai ali, ao que chamamos a Casa da Democracia, para a qual votamos de quatro em quatro anos e que sustentamos com os impostos que pagamos, declarar que afinal aquilo é um templo da Maçonaria e que ele é o dono daquilo! E querem ser levados a sério, e ao mesmo tempo serem tidos como inofensivos, os aventais que se deixam representar por um Fulano destes?
3 Depois de anos a divulgarem, subscreverem e acrescentarem acriticamente todas as teses da acusação no Processo Marquês, sem o menor pudor ou contenção em esperar para ver a versão da defesa ou o veredicto do juiz de instrução sobre essas teses (nem mencionando sequer o julgamento), os jornalistas que se prestaram a tal não escondem agora a sua frustração e o seu mau perder, obviamente canalizados contra Ivo Rosa ou o Tribunal Constitucional, cuja interpretação sobre o regime legal da prescrição do crime de corrupção deixou o Ministério Público em maus lençóis. No início, eram apenas os jornalistas com ligação directa e habitual ao DCIAP ou que usaram o expediente de se constituírem assistentes no processo com o fim único de terem acesso ao que estava em segredo de justiça e o divulgarem publicamente (uma das decisões em que o Tribunal da Relação de Lisboa contrariou Ivo Rosa, quando este quis pôr fim a esse regabofe). Mas depois da malta ajornalada, lentamente e um por um, vieram juntar-se à causa do julgamento prévio e popular muitos outros jornalistas e jornais que tinham obrigação de não confundir a rua com a sala de audiências e a condenação ética ou política com a justiça criminal.
Agora, um desses jornalistas, ou que se assina como tal — João Miguel Tavares — vai ainda mais longe e, no desânimo de não ter visto triunfar no despacho instrutório as teses que tão longamente defendeu a par do MP, resolveu escrever uma peça de “ficção” televisiva onde assume como verdade, sem direito a contraditório ou mesmo julgamento, tudo o que ele e a acusação disseram sobre Sócrates. Não é pioneiro nisso: há anos, também a declarada jornalista Leonor Pinhão escreveu um guião para um filme, exibido próximo do Estádio da Luz, com a versão do MP no caso Apito Dourado — a qual viria a ser completamente derrotada e humilhada em julgamento. Mas podem? Podemos substituir o julgamento pela acusação, a sala de audiências pela sala de cinema e o jornalismo dos factos pela ficção?
4 Não, ao que parece, ninguém aprendeu nem quer aprender nada. Talvez só aprendam no dia em que o azar lhes bater à porta e precisarem das garantias do Estado de Direito em seu favor e descobrirem que elas já não existem, sacrificadas no altar da justiça popular e instantânea e das excelentes causas que dispensam meios decentes de actuação.
Em fevereiro, o arquitecto Manuel Salgado demitiu-se da Empresa de Urbanismo de Lisboa, depois de constituído arguido pelo MP, suspeito de vários crimes na autorização de construção do CUF — Tejo. Passados mais de dois meses, com o habitual aparato policial e abertura em todos os telejornais, seguiu-se uma operação de busca em diversos locais ligados à CML e ao arguido, esclarecendo as autoridades que as suspeitas incidiam sobre várias operações urbanísticas, e não apenas uma. Não consigo perceber por que razão a ordem das coisas não é a inversa: porque não se fazem primeiro as buscas — sem aparato nem televisões — e só depois e em função do que elas mostrarem, Fulano é chamado, interrogado e constituído ou não arguido. Além do mais, parece-me que o que se perdia em publicidade ganhava-se em eficiência, não dando a um eventual culpado dois meses para fazer desaparecer o que lhe interessasse. Mas eles lá sabem...
Talvez só aprendam no dia em que o azar lhes bater à porta e precisarem das garantias do Estado de Direito em seu favor e descobrirem que elas já não existem
O facto é que este “método de investigação” — amplamente utilizado no Processo Marquês e em todos os chamados processos mediáticos — já produziu, neste caso, o previsível e inevitável efeito prático: Manuel Salgado já foi sumariamente julgado e condenado pelos justiceiros das redes sociais. Mas nem eu nem qualquer deles temos a mais pequena forma de sabermos se ele é culpado ou inocente. Porém, temos o dever de presumir a sua inocência até final e de exigir que seja tratado como tal e por todos. É a isso que se chama Estado de Direito, é a isso que se chama justiça. Talvez haja quem não se importe de viver de outro modo; eu importo-me e já é tarde para mudar de ideias e dispor-me a facilitar.
Para agravar ainda mais o nada auspicioso começo desta Operação Olissipus, o MP esqueceu-se que vamos ter autárquicas daqui a seis meses e que a instituição tem um desagradável currículo de desencadear operações deste tipo em vésperas de eleições e, coincidentemente ou não, quase sempre visando o PS. Embora neste momento e por razões à vista, o PS queira falar de tudo menos de justiça criminal, estavam a pôr-se a jeito para quem quisesse ir por aí.
E não é que foi de onde não se esperava, e que menos interessava ao MP, que veio a conexão política? Paralisado nas sondagens e paralisado na iniciativa política, Carlos Moedas não resistiu a abocanhar o isco e morder o anzol todo. Ou muito me engano ou deu um valente tiro no pé. Mas de certeza que deu um valente tiro, também ele, no Estado de Direito. Escrevendo que o caso representa uma política de “favores e amiguismos... uma forma de governar a cidade absolutamente inaceitável... uma cultura de irresponsabilidade que dá amparo aos que, à custa do interesse público, exercem o poder em benefício próprio ou dos seus próximos”, Carlos Moedas veio juntar-se ao linchamento público de Manuel Salgado pelos carrascos das redes sociais. Tal como eles, e apenas dispensando os insultos costumeiros, Moedas já dispensou tudo o resto: conhecer a acusação e os factos, ouvir a defesa, saber o que pensa o juiz de instrução, esperar pelo julgamento. Para efeitos políticos e eleitorais, que é o que lhe interessa, Salgado é culpado e, por arrasto, também Medina, o seu adversário em Novembro. Pode ser por corrupção, por prevaricação, por participação económica em negócio, por fraude fiscal, qualquer coisa, desde que seja crime e ele seja arguido. Pois se é arguido, é culpado: é esta a regra do jogo em vigor.
Confesso que não esperava isto de Carlos Moedas. Mas, vindo de onde veio, isto só quer dizer uma coisa: que é altura de parar para pensar, porque este caminho é perigoso demais.