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sábado, 24 de abril de 2021

Faltam 2 dias para o mais belo de todos os dias

 

por estatuadesal

(Carlos Esperança, 23/04/2021)

Há quem, antes, não tivesse precisado de partido, quem não sentisse a falta da liberdade, quem se desse bem a viver de joelhos e a andar de rastos.

Houve cúmplices da ditadura, bufos e torturadores, quem sentisse medo, quem estivesse desesperado, quem visse morrer na guerra os filhos e nas prisões os irmãos, e se calasse. Houve quem resistisse e gritasse. E quem foi calado a tiro ou nas prisões.

Uns pagaram com a liberdade e a vida a revolta que sentiram, outros governaram a vida com a vergonha que calaram.

Houve quem visse apodrecer o regime e quisesse a glória de exibir o cadáver e a glória da libertação. Viram-se frustrados por um punhado de capitães sem medo, por uma plêiade de heróis que arriscaram tudo para que todos pudéssemos agarrar o futuro.

Passada a euforia da vitória, ninguém lhes perdoou. Os heróis da mais bela revolução da História e agentes da maior transformação que Portugal viveu são hoje proscritos e humilhados por quem lhes deve o poder.

Uns esqueceram os cravos que lhes abriram a gamela onde refocilam, outros reabilitam os crápulas que nos oprimiram, outros, ainda, sem memória nem dignidade, afrontam o dia 25 de Abril com afloramentos fascistas e lúgubres evocações do tirano deposto.

Perante os ingratos e medíocres deixo aqui a TODOS os capitães de Abril o meu eterno obrigado.

Não quero saber o que fizeram depois, basta-me o que nesse dia fizeram.

Obrigado a todos. Aos que partiram e aos que estão vivos. Por cada ofensa que vos fazem é mais um pedaço de náusea que provocam.

Alguns personagens à procura de um texto


por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 23/04/2021)

1 A Iniciativa Liberal tem tido mais sucesso com a parte das iniciativas do que com a parte liberal. A última das suas inicia­tivas foi um achado de imaginação e estratégia política: pedir à Associa­ção 25 de Abril para integrar o desfile oficial evocativo da data, em vez de a celebrar à parte, como sempre tem feito. Como seria de prever, o coronel Vasco Lourenço, presidente vitalício da coisa, foi lesto a dizer que não, caindo na esparrela, sem pensar duas vezes. Tantos anos depois e ele ainda se acha dono do 25 de Abril! Tantos anos depois e ele ainda não percebeu bem o que foi o 25 de Abril!

2 Um dos personagens mais “redondos” da nossa República é o “politólogo” José Adelino Maltez, a quem os jornais costumam pedir regularmente umas opiniões no domínio da sua “especialidade” — recebendo em troca um acervo de banalidades e lugares-comuns ao alcance de qualquer intelectual de café. Desta vez e na pele de ex-candidato a grão-mestre do Grande Oriente Lusitano, essa confraria de grandes intelectuais e samaritanos, Maltez exigiu ser ouvido no Parlamento acerca do projecto regimental que pretende obrigar os deputados a declarar a sua filiação em organizações “discretas” ou “secretas”, como o Opus Dei ou a Maçonaria, de que ele é orgulhoso membro e desastrado propagandista. E, ao que li, deu uma verdadeira lição de boas práticas democráticas aos deputados. Começando por se intitular também “professor” (quem o não é, nos tempos que correm?), o politólogo grão-mestre e mestre disse-lhes que não estava para aturar deputados nem partidos, que a Assembleia da República não era mais do que uma extensão do próprio Grande Oriente Lusitano — tantos eram ou tinham sido os seus membros ali dentro — ao ponto de “se sentir em casa” quando lá entrava, e isto com excepção dos deputados sem avental, que, esses, eram apenas ignorantes, ridículos e reaccionários. E, depois de frisar bem que a Assembleia da República era “o maior templo da Maçonaria em Portugal”, despediu-se em grande e em latim, e, ao que parece, devidamente saudado pelo deputado José Magalhães. E um tipo assim, sem préstimo que se conheça ou que se recomende, vai ali, ao que chamamos a Casa da Democracia, para a qual votamos de quatro em quatro anos e que sustentamos com os impostos que pagamos, declarar que afinal aquilo é um templo da Maçonaria e que ele é o dono daquilo! E querem ser levados a sério, e ao mesmo tempo serem tidos como inofensivos, os aventais que se deixam representar por um Fulano destes?

3 Depois de anos a divulgarem, subscreverem e acrescentarem acriticamente todas as teses da acusação no Processo Marquês, sem o menor pudor ou contenção em esperar para ver a versão da defesa ou o veredicto do juiz de instrução sobre essas teses (nem mencionando sequer o julgamento), os jornalistas que se prestaram a tal não escondem agora a sua frustração e o seu mau perder, obviamente canalizados contra Ivo Rosa ou o Tribunal Constitucional, cuja interpretação sobre o regime legal da prescrição do crime de corrupção deixou o Ministério Público em maus lençóis. No início, eram apenas os jornalistas com ligação directa e habitual ao DCIAP ou que usaram o expediente de se constituírem assistentes no processo com o fim único de terem acesso ao que estava em segredo de justiça e o divulgarem publicamente (uma das decisões em que o Tribunal da Relação de Lisboa contrariou Ivo Rosa, quando este quis pôr fim a esse regabofe). Mas depois da malta ajornalada, lentamente e um por um, vieram juntar-se à causa do julgamento prévio e popular muitos outros jornalistas e jornais que tinham obrigação de não confundir a rua com a sala de audiências e a condenação ética ou política com a justiça criminal.

Agora, um desses jornalistas, ou que se assina como tal — João Miguel Tavares — vai ainda mais longe e, no desânimo de não ter visto triunfar no despacho instrutório as teses que tão longamente defendeu a par do MP, resolveu escrever uma peça de “ficção” televisiva onde assume como verdade, sem direito a contraditório ou mesmo julgamento, tudo o que ele e a acusação disseram sobre Sócrates. Não é pioneiro nisso: há anos, também a declarada jornalista Leonor Pinhão escreveu um guião para um filme, exibido próximo do Estádio da Luz, com a versão do MP no caso Apito Dourado — a qual viria a ser completamente derrotada e humilhada em julgamento. Mas podem? Podemos substituir o julgamento pela acusação, a sala de audiências pela sala de cinema e o jornalismo dos factos pela ficção?

4 Não, ao que parece, ninguém aprendeu nem quer aprender nada. Talvez só aprendam no dia em que o azar lhes bater à porta e precisarem das garantias do Estado de Direito em seu favor e descobrirem que elas já não existem, sacrificadas no altar da justiça popular e instantânea e das excelentes causas que dispensam meios decentes de actuação.

Em fevereiro, o arquitecto Manuel Salgado demitiu-se da Empresa de Urbanismo de Lisboa, depois de constituído arguido pelo MP, suspeito de vários crimes na autorização de construção do CUF — Tejo. Passados mais de dois meses, com o habitual aparato policial e abertura em todos os telejornais, seguiu-se uma operação de busca em diversos locais ligados à CML e ao arguido, esclarecendo as autoridades que as suspeitas incidiam sobre várias operações urbanísticas, e não apenas uma. Não consigo perceber por que razão a ordem das coisas não é a inversa: porque não se fazem primeiro as buscas — sem aparato nem televisões — e só depois e em função do que elas mostrarem, Fulano é chamado, interrogado e constituído ou não arguido. Além do mais, parece-me que o que se perdia em publicidade ganhava-se em eficiência, não dando a um eventual culpado dois meses para fazer desaparecer o que lhe interessasse. Mas eles lá sabem...

Talvez só aprendam no dia em que o azar lhes bater à porta e precisarem das garantias do Estado de Direito em seu favor e descobrirem que elas já não existem

O facto é que este “método de investigação” — amplamente utilizado no Processo Marquês e em todos os chamados processos mediáticos — já produziu, neste caso, o previsível e inevitável efeito prático: Manuel Salgado já foi sumariamente julgado e condenado pelos justiceiros das redes sociais. Mas nem eu nem qualquer deles temos a mais pequena forma de sabermos se ele é culpado ou inocente. Porém, temos o dever de presumir a sua inocência até final e de exigir que seja tratado como tal e por todos. É a isso que se chama Estado de Direito, é a isso que se chama justiça. Talvez haja quem não se importe de viver de outro modo; eu importo-me e já é tarde para mudar de ideias e dispor-me a facilitar.

Para agravar ainda mais o nada auspicioso começo desta Operação Olissipus, o MP esqueceu-se que vamos ter autárquicas daqui a seis meses e que a instituição tem um desagradável currículo de desencadear operações deste tipo em vésperas de eleições e, coincidentemente ou não, quase sempre visando o PS. Embora neste momento e por razões à vista, o PS queira falar de tudo menos de justiça criminal, estavam a pôr-se a jeito para quem quisesse ir por aí.

E não é que foi de onde não se esperava, e que menos interessava ao MP, que veio a conexão política? Paralisado nas sondagens e paralisado na iniciativa política, Carlos Moedas não resistiu a abocanhar o isco e morder o anzol todo. Ou muito me engano ou deu um valente tiro no pé. Mas de certeza que deu um valente tiro, também ele, no Estado de Direito. Escrevendo que o caso representa uma política de “favores e amiguismos... uma forma de governar a cidade absolutamente inaceitável... uma cultura de irresponsabilidade que dá amparo aos que, à custa do interesse público, exercem o poder em benefício próprio ou dos seus próximos”, Carlos Moedas veio juntar-se ao linchamento público de Manuel Salgado pelos carrascos das redes sociais. Tal como eles, e apenas dispensando os insultos costumeiros, Moedas já dispensou tudo o resto: conhecer a acusação e os factos, ouvir a defesa, saber o que pensa o juiz de instrução, esperar pelo julgamento. Para efeitos políticos e eleitorais, que é o que lhe interessa, Salgado é culpado e, por arrasto, também Medina, o seu adversário em Novembro. Pode ser por corrupção, por prevaricação, por participação económica em negócio, por fraude fiscal, qualquer coisa, desde que seja crime e ele seja arguido. Pois se é arguido, é culpado: é esta a regra do jogo em vigor.

Confesso que não esperava isto de Carlos Moedas. Mas, vindo de onde veio, isto só quer dizer uma coisa: que é altura de parar para pensar, porque este caminho é perigoso demais.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia 

sexta-feira, 23 de abril de 2021

A Justiça e a Política

 


por estatuadesal

(Carlos Esperança, 22/04/2021)

Quando os políticos se servem da Justiça para o combate político não podem admirar-se de que a Justiça utilize esse combate, em benefício próprio, instrumentalizando os seus exóticos sindicatos.

O PCP, o BE, o PS, o próprio PR e o presidente da AR estão dispostos a inverter o ónus da prova em Direito Penal, fragilizando o Estado de direito democrático para responder ao clamor da populaça acirrada pelos média. É a capitulação imposta pelo sindicalista que preside à ASJP, a obrigar os partidos a legislar como pretende.

Quem anda atento, nota os rumores, suspeitas e investigações sobre eventuais crimes de corrupção de políticos a aumentarem exponencialmente em anos eleitorais, com redobrado eco nos média do costume e nos comentadores à solta e sem vergonha.

Não surpreende, pois, que a Câmara de Lisboa, ainda sem arguidos, já tenha servido ao candidato do PSD para enxovalhar o presidente que, aliás, mereceu, por ter ele próprio aproveitado a operação Marquês para um ato pusilânime de demagogia.

Agora, é esperar para ver quem se emporcalha mais, com deputados do PSD, PS, CDS e BE suspeitos de moradas falsas para arredondarem os vencimentos.

E hão de voltar à tona os esqueletos que ficaram sem autópsia, como as ações da SLN, onde Cavaco Silva e filha conseguiram pingues mais-valias na venda a Oliveira e Costa, se acaso pagaram a compra; a permuta da vivenda Mariani pela Gaivota Azul; as verbas que Miguel Relvas deu à Tecnoforma, de Passos Coelho, e cuja devolução a UE exigiu; os submarinos de Paulo Portas que a PGR, Joana Marques Vidal, com provas alemãs de suborno, nunca averiguou, apesar de admitir fazê-lo.

Enfim, há de voltar a falar-se da herança ética de Dias Loureiro, Duarte Lima, Oliveira e Costa e Arlindo de Carvalho que Carlos Moedas varreu ontem para baixo do tapete.

Super Liga Europeia: como a economia “trickle down” chegou ao futebol

 

por estatuadesal

(Vicente Ferreira, in Blog Ladrões de Bicicletas, 19/04/2021)

O anúncio de ontem à noite chegou às capas de jornais um pouco por todo o mundo: 12 dos clubes mais ricos do planeta oficializaram a criação da Super Liga Europeia, uma prova que pretende funcionar como alternativa à atual Liga dos Campeões. Embora ainda não se conheçam todos os contornos, os clubes fundadores – Arsenal, Chelsea, Liverpool, Manchester City, Manchester United, Tottenham, AC Milan, Inter, Juventus, Real Madrid, Atlético de Madrid e Barcelona – terão direito a um lugar permanente na competição, havendo a possibilidade de admitir anualmente alguns convidados. O projeto conta com um empréstimo de €3,25 mil milhões da JP Morgan, como adiantamento de receitas futuras provenientes dos direitos de transmissão televisiva.

No comunicado oficial, os fundadores da nova competição dizem que a decisão surge “num contexto em que a pandemia agravou a instabilidade do atual modelo económico do futebol europeu”, embora, na verdade, as discussões para a criação desta prova já tenham alguns anos. A ideia passa por criar “um formato para que clubes e jogadores de topo compitam uns contra os outros de forma regular”, que possibilite uma “abordagem comercial sustentável […] para o benefício de toda a pirâmide do futebol europeu”. É aqui que o caso se torna interessante: os clubes responsáveis por este projeto prometem que os benefícios não serão apenas para si próprios, mas que acabarão por ser distribuídos e beneficiar todos os outros. É a lógica “trickle down” aplicada ao desporto. Esta ideia, que tem origem nos debates sobre a política fiscal do final do século passado, diz-nos que a redução dos impostos sobre os mais ricos tenderia a beneficiar a sociedade como um todo, pelo efeito de promoção do investimento e da criação de emprego. Alivie-se a tributação da riqueza e esta distribui-se naturalmente, dizia-se.

Só há um problema: a experiência dos últimos 50 anos mostra que esta ideia não funciona. Os economistas Julian Limberg, do King’s College de Londres, e David Hope, da London School of Economics, estudaram os cortes de impostos sobre os mais ricos aprovados ao longo das últimas cinco décadas em 18 países diferentes. Sem grande surpresa, a conclusão a que chegaram foi a de que estes cortes beneficiaram bastante o 1% do topo, mas tiveram efeitos negligenciáveis para o resto da sociedade. “Em média, cada diminuição considerável de impostos resulta num aumento de 0,8 pontos da fatia do 1% do topo”, lê-se no estudo. Por outro lado, “a evolução do PIB per capita e da taxa de desemprego não é afetada por reduções significativas dos impostos sobre os mais ricos”. É por isso que, nas últimas décadas, os países que mais reduziram a taxa de imposto aplicada ao 1% do topo foram aqueles onde a fração do rendimento nacional captada por este grupo mais aumentou. Por outras palavras, foi nesses países que o 1% do topo passou a arrecadar uma fatia ainda maior do bolo, como mostrou um estudo de Thomas Piketty, Emmanuel Saez e Stefanie Stantcheva. Conclusão: estes cortes só acentuaram as desigualdades.

É expectável que a criação da Super Liga tenha um efeito semelhante, favorecendo a concentração do dinheiro e acentuando o fosso entre os clubes mais ricos e os restantes. Basta notar que a promessa de que os ganhos vão ser redistribuídos é feita pelos mesmos proprietários que recusam há anos a criação de mecanismos legais para isso mesmo, como a introdução de limites à participação de capitais privados na gestão dos clubes, a partilha de receitas entre todos ou a definição de tetos salariais, que acontece em algumas modalidades nos EUA. A ausência de regulação explica, de resto, o crescimento da desigualdade nos principais campeonatos europeus ao longo das últimos vinte anos, embora com algumas diferenças entre os países.

Apesar disso, convém não esquecer que esta é uma disputa entre alguns clubes de elite e a UEFA, uma organização marcada por vários casos de corrupção e que já atuava de forma semelhante a um cartel. E isso deve-se ao facto de se ter entregue a gestão dos clubes a grandes grupos económicos, pouco preocupados com os interesses de adeptos e sócios. Mesmo que o conflito venha a ser resolvido nos próximos tempos, talvez sirva para recentrar a discussão nos modelos de propriedade dos clubes: retirar os clubes aos adeptos e entregá-los a acionistas milionários não só acaba com o associativismo de base local, como promove um modelo de gestão guiado exclusivamente pela rentabilidade.

A tendência agrava-se quando se permite uma competição sem regras onde impera a lei dos mais ricos. Não surpreende que estes pretendam agora cimentar o poder que detêm e evitar o incómodo da concorrência. Afinal, uma Super Liga criada por clubes que se encontram a meio da tabela nos respetivos campeonatos nacionais é um bom exemplo de como o mercado hesita muito pouco na hora de decidir entre o mérito e o dinheiro.

Como é fazer parte dos 97%?

Posted: 21 Apr 2021 04:06 AM PDT

 


«Se as palavras fossem categorizadas nos dicionários tal como nos laboratórios, de acordo com o seu grau de nocividade ou inflamabilidade, seria caso para dizer que o medo é uma substância extremamente corrosiva, altamente tóxica e facilmente explosiva.

O ano de 2020 e os primeiros, mas tão longos, meses de 2021 podem ser facilmente caracterizados pelo medo sentido pela população. Seja ele pelo receio gerado perante as incertezas criadas no contexto de pandemia, ou por todos os problemas estruturais a níveis social, cultural, político e económico, que se agravam com o passar de cada mês. O dia de amanhã é uma total incógnita e, para quem tenta fazer contas à vida, é impossível não se corroer, a cada segundo de cada minuto, com tudo aquilo que se passa e, principalmente, com o que não se passa à sua volta.

Este último ano foi também de protestos, não só contra os novos desafios que têm surgido, mas, simultaneamente, contra todos os problemas pré-existentes na nossa sociedade, que se tendem a agravar.

No início de Março de 2021, o desaparecimento da londrina Sarah Evarard, de 33 anos, chocou a Inglaterra e o resto do mundo. Porém, de acordo com o The Guardian, o caso não é “incrivelmente raro”; isto porque a insegurança na rua é usual na vida de uma mulher e o assassinato de Sarah Everard veio apenas reafirmar essa realidade.

Todas nós já saímos de casa de amigos depois de anoitecer, já nos questionámos se deveríamos ir ou não a pé para casa, e acabámos por fazer um telefonema para não caminharmos totalmente sozinhas. Sempre com muito cuidado, a observar e interpretar o ambiente que nos envolve como se a nossa vida dependesse disso porque, muitas das vezes, depende.

Depois da morte da jovem inglesa foi conduzido um estudo para averiguar a percentagem de mulheres que já foram alvo de assédio sexual na rua em Inglaterra e, nesse seguimento, conclui-se que 97% das mulheres, entre os 18 e os 24 anos, já tinham sido alvo de abusos em espaços públicos. Desde cedo aprendemos a lidar com esta realidade porque “é normal”. Uma em cada dez mulheres na União Europeia já foi vítima de assédio sexual, sendo que o risco é superior para as jovens com idades compreendidas entre os 18 e os 29 anos, o que só nos afasta, dia após dia, da nossa meta, cujo prémio final é a igualdade de género.

Viver nesta condição torna-se tóxico, a constante necessidade de alerta, a antevisão do que se passa à nossa volta, o calcular dos possíveis desfechos das diversas vezes que somos abordadas, até mesmo compreender qual é a reacção mais adequada a adoptar para que se evite qualquer tipo de tragédias.

Há quem me oiça e diga “Que exagero, foi só um assobio”, mas da última vez, depois do assobio veio um apalpão, depois de um olhar veio uma pequena, mas para mim muito longa, perseguição, e não me consigo deixar de questionar “O que é que vai acontecer? O que é que devo fazer? Será que vai ser hoje? Até onde é que esta situação pode escalar?”. E finalmente expludo. Expludo e como todas as outras mulheres que são alvo de abusos na rua, chego a um ponto de ruptura e digo “Basta!”.

O assédio sexual não existe só na sua forma física, mas diz respeito a “todo o comportamento indesejado de carácter sexual, sob forma verbal, não verbal ou física, com o objectivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afectar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador”, define a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima. Todas as “pequenas” mas grandes acções contribuem, de alguma forma, para a deterioração da dignidade feminina e da sua segurança em espaços públicos.

Cabe a cada um de nós, enquanto cidadãos, informarmo-nos e tentar compreender o que se passa à nossa volta e de que forma é que os nossos actos podem estar a contribuir, mesmo que de forma passiva, para agravar ou eternizar a violência da qual as mulheres são alvo. Vivemos numa sociedade que apresenta os seus preconceitos de base, cuja profundidade muitas das vezes não conseguimos avaliar, mas que não é por isso que deixam de estar presentes no nosso dia-a-dia, ou que não são responsáveis pela normalização de comportamentos abusivos e degradantes à condição humana.

É importante procurarmos fomentar conversas de consciencialização junto de rapazes e de homens, aliados essenciais para que se possa combater estas atrocidades. Começa por ouvirmos os testemunhos das mulheres à nossa volta e procurarmos debater junto da nossa família e amigos sobre todos os comportamentos responsáveis pela perpetuação deste ciclo de violência, para que estes também o façam junto das pessoas que os rodeiam. As palavras não são ocas, acarretam os seus significados e. tal como se faria num laboratório, é importante expormos os riscos às quais estão associadas.

A informação e a educação permitem-nos chegar mais longe, desconstruir problemas de fundo e, acima de tudo, neutralizar o pior elemento químico presente no dicionário, a ignorância, essa que tão sorrateiramente vem de mão dada com o medo.»

Mariana Vital