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terça-feira, 6 de outubro de 2020

Uma pandemia política

Uma pandemia política

por estatuadesal

(Pedro Adão e Silva, in Expresso, 03/10/2020)

Pedro Adão e Silva

De acordo com a sondagem ICS/ISCTE que o Expresso hoje publica, um ano depois das legislativas pouco ou nada mudou: PS e PSD têm os mesmos resultados que tiveram nas urnas; os partidos de esquerda continuam a formar uma maioria sólida e os políticos mais bem avaliados são o Presidente e o primeiro-ministro. A única novidade é mesmo o crescimento do Chega e a intensificação da tendência de queda do CDS.

À primeira vista nada mudou, pelo que uma crise política tenderia a resultar num cenário em tudo idêntico ao atual. Ou seja, não se resolveria nenhum problema e, pelo caminho, acrescentar-se-iam alguns. Os partidos sabem-no e é também isso que condiciona o seu comportamento.

Mas é ilusório pensar que não está a acontecer nada na política portuguesa. Alguma coisa teria de mudar com a pandemia. A deterioração da situação económica e social tem inevitavelmente tradução política.

É sabido que o efeito do comportamento da economia na avaliação dos governos é, por definição, assimétrico: quando a economia melhora, os ganhos para quem governa não são lineares, pois são marcados pelas predisposições políticas. Quem é favor do partido do Governo valoriza o que está a acontecer, enquanto quem está mais próximo da oposição não tem a mesma opinião. Ao mesmo tempo, quando a situação piora, os executivos são responsabilizados, independentemente das orientações políticas dos eleitores. O corolário é simples: os problemas económicos tornam-se politicamente mais salientes à medida que a situação se deteriora e, acima de tudo, com um impacto transversal ao espectro ideológico.

Como mostram os resultados da sondagem, os portugueses reconhecem que a situação está a piorar (79% dos inquiridos em comparação com apenas 18% em fevereiro), mas esta opinião ainda não se traduz nem na intenção de voto nem na avaliação do primeiro-ministro. No entanto, existem indícios de mudança. Há mesmo uma linha que converge a um ritmo acelerado: o número de inquiridos que afirma que o Governo está a fazer um trabalho positivo aproxima-se muito do daqueles que fazem uma avaliação negativa. Em fevereiro, 57% avaliavam entre o bom e o muito bom o trabalho do executivo; agora, esse número é de 49%, enquanto a variação do número de avaliações negativas cresceu nove pontos, de 34% para 43%.

Com o tempo, é provável que a queda na avaliação política, agora circunscrita ao Governo, acabe por contaminar a intenção de voto no PS e a opinião sobre o primeiro-ministro. Como não se vislumbra que esteja para emergir uma alternativa maioritária à direita, a probabilidade de estarmos confrontados com uma verdadeira pandemia política, marcada por maior fragmentação partidária, crescimento da representação antissistémica e incapacidade de compromisso, é real.

Nessa altura, a tensão em torno do orçamento do Estado para 2021 vai parecer uma memória distante de um tempo tranquilo. Era bom que os partidos pensassem já nisso.

sábado, 3 de outubro de 2020

Direito à indignação

Posted: 02 Oct 2020 03:26 AM PDT

«Foi Mário Soares quem cunhou esta expressão provocatória: o direito à indignação!

Um "direito" que exprime o escândalo perante a indignidade, a falta de respeito, contra a violação inaceitável das regras elementares da convivência humana, a reação sentida e legítima contra uma ofensa insuportável. Mário Soares sempre foi assim ao longo de toda a vida, até para desautorizar o seu primeiro-ministro, Cavaco Silva, em Março de 1995, no pleno exercício das funções de presidente da República! Vem isto a propósito da polissemia da expressão, "dignidade humana", e da sua importância e atualidade.

Esta pandemia que não sabemos ainda por quanto mais tempo nos vai atormentar expôs com flagrante nitidez velhos problemas que tardamos em reconhecer e enfrentar, como as desigualdades crescentes que romperam a coesão das sociedades e a crescente vulnerabilidade dos velhos estados soberanos no contexto da desregulação internacional que enfraqueceu a autoridade democrática num mundo desregulado, ameaçado pelas alterações climáticas e pela proliferação anárquica de conflitos armados.

Vivemos um tempo de ansiedade e de incerteza. Aquilo que ainda há poucos anos se acreditava serem valores essenciais e irrenunciáveis tornou-se objeto do tráfico venal entre interesses instalados que já nem tentam ocultar o mais despudorado oportunismo. Significativamente, o debate entre os dois candidatos às eleições presidenciais nos Estados Unidos da América que ocorreu na madrugada desta quarta-feira ofereceu-nos o mais deplorável espetáculo do estado lamentável em que se encontra o planeta e a mais poderosa potência que sobreviveu à Guerra Fria. Nem o moderadíssimo candidato democrata, Joe Biden, conseguiu manter uma postura de estado, séria e impassível, face à diarreia verbal do seu opositor e atual presidente, Donald Trump.

A pandemia que paralisou por longos meses a economia mundial revelou também o lado mais trágico da miséria que alimenta o opulência dos mais ricos. Desde os camponeses da Índia aos americanos do Norte e do Sul, aos lares de idosos da Suécia ou aos bairros mais pobres de Madrid, o vírus atuou de forma metódica, coerente, letal. Dos que sobreviverem, muitos vão enfrentar o desemprego ou a insolvência mas muitos outros sobrarão para alimentar a fome insaciável da máquina de fazer dinheiro. O que farão os governos, os partidos, os representantes eleitos? O conceito de dignidade humana atingiu hoje um patamar incompatível com a indiferença perante o absurdo de tamanhas desigualdades. Não há liberdade sem igualdade e é o escândalo perante tal indiferença que alimenta a extrema-direita populista e autocrática. Só na relação entre seres de igual dignidade é que a liberdade se torna um bem estimável, valioso e carente de proteção.»

Pedro Carlos Bacelar de Vasconcelos

Ilíada, Canto IX, 438-43

por estatuadesal

(Por Valupi, in Aspirina B, 01/10/2012)

Não custa a entender. Quem defende o ostracismo de Ventura, recusando dar-lhe atenção e palco, está cheio de boas intenções: limitar a sua influência, manifestar a repugnância que a sórdida figura suscita, evitar lutar com o porco para não ficar emporcalhado. Acontece que quem assim pensa está também a pensar mal.

A Odisseia é muito mais popular do que a Ilíada mas é nesta que se encontra uma lição política fundante e fundamental: aquele que é bravo na assembleia é valente na batalha – aquele que for bravo na batalha será valente na assembleia. A capacidade de tomar a palavra e enfrentar a ameaça de injustiça, como faz Aquiles na abertura do poema na cara de um rei, não é menos heróica do que a capacidade de enfrentar Heitor junto às muralhas de Tróia. As gerações que vieram a criar a primeira forma de democracia beberam desde o berço esta e outras lições – onde o falar livremente numa comunidade, de deuses ou humanos, era toda a civilização.

Se João Miguel Tavares merece ser uma das personalidades mais importantes do regime, tendo-lhe sido oferecida a raríssima e supina honra de presidir ao mais densamente simbólico dos feriados patriotas, por que razão se foge do Ventura alegando ser má companhia? Um e outro devem o seu sucesso exactamente à mesma fórmula, tentam ocupar os mesmos segmentos de mercado. Ambos viram uma oportunidade na decadência da direita, afundada na impotência e no ódio, e criaram marcas fortes e independentes. Um tornou-se caluniador profissional especializado nos alvos de quem lhe paga. O outro alinhou com Passos e serviu de cobaia para se ensaiar em Portugal o radicalismo da direita inimiga dos direitos humanos.

Loures só foi uma derrota nas urnas, no plano da inovação política corresponde a um triunfo da fórmula pois vimos um presidente do PSD, ex-primeiro-ministro, a promover e consagrar uma cópia à portuguesa de Trump. O caminho que trouxe o Chega para os boletins de voto ficou então aberto.

O equivalente da sonsaria torpe do bracinho do Ventura a simular a saudação nazi numa manifestação encontra-se nos artigos e intervenções deste Tavares entretanto rico quando ensaia a defesa do Estado Novo e a diabolização do 25 de Abril debaixo de camadas de torpe sonsaria inspirada em Rui Ramos e quejandos. Ambos, André e João Miguel, comungam da visão intencionalmente mentirosa e alucinada em que a corrupção é a mãe de todos os males, em que quase todos (ou todos, depende do espectáculo) os políticos são corruptos e fazem leis para blindarem a corrupção na impunidade, em que o Estado não presta e deve ser reduzido à expressão mínima para não andarmos a sustentar madraços e estroinas, e em que só Passos Coelho e Joana Marques Vidal nos poderão proteger dos monstros socialistas que nos querem devorar. Os públicos a quem se dirigem são uma mistela de fanáticos, broncos e descompensados.

O Daniel Oliveira, por exemplo, entrevistou com gosto e compadrio o caluniador profissional. E ouviu dele, sem ripostar, a celebração da actividade criminosa no seio do Ministério Público ao serviço de uma agenda de perseguição política. Que razões terá para continuar sem convidar Ventura para o Perguntar não ofende quando estamos, como diria o Jerónimo, perante farinha do mesmo saco? Acaso Ventura não é interessante e importante por desvairadas razões ou sob variegados pontos de vista? Acaso os seus ouvintes não adorariam assistir à conversa sobre a podridão de Pedroso, Vara e Sócrates? Ou será que o Daniel teme ficar outra vez em silêncio face às barbaridades que saíssem do boca do seu entrevistado e, nesse caso, tal já daria que falar, e depois era chato?

Deixar o Ventura, um hipócrita que se desfaz com um sopro de decência e duas ou três noções básicas de História, sem contraditório, olhos nos olhos e de peito cheio, acaba por ser um monumento ao estado degenerado da sociedade. Uma sociedade que tem alinhado cobardemente com a violação do Estado de direito democrático ao serviço de vinganças oligárquicas e corporativas. Uma sociedade que aceitou ser cúmplice da pulsão do linchamento moral. Ventura nasceu nesse esgoto e foi subindo pela sua montanha de merda até conseguir empestar a Assembleia da República. O Portugal da indústria da calúnia sente que Ventura é um dos seus, e cala-se consolado. O Portugal que se respeita a si próprio mas que opta por fugir de um palhaço que nos quer fazer mal pagará o preço de não combater pela liberdade.

As presidenciais, o PS e o dever de reserva seletivo

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 02/10/2020)

Daniel Oliveira

Santos Silva, que não dá um passo sem se coordenar com o primeiro-ministro, tornou explícito o apoio a Marcelo. E insinuou que Ana Gomes, que foi candidata do PS a inúmeros cargos, é uma “extremista”. Na exigência de reserva aos ministros, o objetivo de Costa nunca foi amarrar o Governo a qualquer neutralidade, foi impedir que quem não tem a opinião do primeiro-ministro a contrariasse.


Há uns tempos, António Costa fez uma declaração extraordinária: “Os membros do Governo devem ter em relação às presidenciais um particular dever de reserva, tendo em conta a relação com o próximo Presidente da República, com quem teremos de conviver muito tempo”. A frase foi dita depois de Pedro Nuno Santos, que Costa não desejaria ter como sucessor mas que é o que mais apoios soma neste momento, ter afirmado que se não houvesse um candidato da área do PS votaria noutro de esquerda. Pois bem, há uma candidata da área do PS.

Este recado de Costa foi triplamente extraordinário.

Extraordinário porque reescreve a História. Nela, podemos ver como o PS apoiou Manuel Alegre contra a reeleição de Cavaco Silva, quando estava no governo, em 2011. E isso não tem mal nenhum. Cooperação institucional não é o mesmo que cooperação eleitoral. Mal seria que o partido que está no governo não pudesse apoiar um candidato diferente do que está na Presidência. O raciocínio até é contrário ao espírito constitucional do nosso sistema semipresidencial bastante mitigado.

Extraordinário porque transforma os membros do governo em meros prolongamentos do primeiro-ministro, mesmo na atividade política e partidária que ao governo não diz respeito. Dá a António Costa o poder de silenciar todos os militantes do PS que estejam no Executivo. Mas os ministros só têm dever de reserva em questões que fazem parte da atividade do governo. Não ficaram, enquanto militantes e dirigentes de um partido, limitados nos seus direitos. E muito menos estão impedidos de discordar da opinião pessoal (não foi decidida em nenhum órgão partidário) do seu líder. O Governo não é uma ala do partido.

Extraordinário porque é uma posição sonsa. Este apelo veio depois do próprio António Costa ter feito o número que se conhece em frente à Autoeuropa e que correspondeu a um apoio quase explícito à candidatura de Marcelo Rebelo de Sousa. Já escrevi sobre o erro histórico a que corresponde este gesto, que atira parte da direita democrática que se opõe a Costa para os braços de André Ventura, deslocaria o centro do debate para a direita e deixaria parte do eleitorado socialista órfão. Mas o que está em causa é, depois de impor o apoio informal a um candidato fazer de forma desastrada, à margem do partido e não correspondendo a nenhuma estratégia coletiva, tentar silenciar qualquer outra posição.

As declarações de Augusto Santos Silva, que não dá um passo sem se coordenar com o primeiro-ministro, ajudam a aclarar as coisas: “Se Ana Gomes é uma boa candidata? Na minha opinião, sim. Se Ana Gomes é uma boa candidata para ter o apoio do PS? Na minha opinião, não”. Isto, por si só, não seria um problema. As pessoas podem ser boas candidatas para uma coisa e não para outras. O que é grave é o critério que o ministro dos Negócios Estrangeiros insinuou para excluir Ana Gomes: “Na minha opinião não devemos combater extremismos com outros extremismos, polarizações com outras polarizações. Gostaria que o combate contra os extremismos fosse feito pelo grande arco daqueles que são moderados”. A isto, Pedro Nuno Santos respondeu com duas críticas de natureza diferente. Uma política, outra processual.

A política: “As pessoas não servem para o PS para fazerem umas coisas de vez em quando, para serem candidatas, para serem eurodeputadas, para serem candidatas à câmara municipal, para serem membros do secretariado nacional e depois de um momento para o outro passarem a ser vilipendiadas porque não lhes dá jeito.” E tem razão. Santos Silva insinua (que é ainda pior do que o dizer claramente) que aquela que o seu partido apresentou como candidata a inúmeros cargos é uma “extremista”. Apesar de o ter representado, sem qualquer oposição do próprio Santos Silva, até agora. Além de incoerente, é uma declaração insultuosa para uma camarada de partido.

A questão processual é ainda mais relevante. Diz Pedro Nuno Santos: “Quem decide quem o PS apoia são os órgãos do partido. Ponto. Não é o Governo, não é nenhum membro do Governo, é mesmo o Partido Socialista que decide quem apoia e quem deixa de apoiar.” Na sua entrevista à TVI, Santos Silva expressa de forma inequívoca o apoio a Marcelo Rebelo de Sousa. E isto quer dizer que decidiu, a poucos dias do Conselho Nacional do PS, e sendo membro do Governo, antecipar-se à decisão dos órgãos do PS no apoio a um candidato específico. Sabendo-se a sua enorme proximidade a Costa, fica claro que, na exigência de reserva aos ministros, o objetivo nunca foi amarrar o Governo a qualquer neutralidade, foi impedir que quem não tem a estratégia do primeiro-ministro a contrariasse. O que, não estando em causa um assunto do Governo, é revelador de uma cultura, digamos, cavaquista.

Haverá militantes do PS na candidatura de Ana Gomes, que também ela é militante do PS e concorre contra o candidato da direita democrática e conservadora. A sua candidatura é o lugar natural de muitos socialistas, sejam quais forem os cálculos táticos do primeiro-ministro. E a não ser que o PS decida apoiar formalmente Marcelo, só pode ser pacífico que lá estejam. O que inclui ministros, que respondem ao primeiro-ministro no exercício de funções executivas, não no exercício da sua militância. E é importante para a democracia manter as coisas separadas.

Trump, o touro enraivecido

Posted: 01 Oct 2020 03:34 AM PDT

«Ao contrário do que os media logo opinaram, em uníssono e usando o mesmo adjetivo, caótico, o debate entre Trump e Biden autorizou pelo menos duas conclusões. A primeira é simples, os jornalistas estão e estarão mal equipados para lidar um touro como Trump. Falta-lhes o aguilhão, a vara para tanger bois. A segunda é ainda mais simples, os debates de Trump nunca são ou serão sobre políticas e sim sobre propaganda, diversão e insulto. Um debate é uma troca de ideias, de propostas e de argumentos e Trump é escasso em todos estes bens. O arsenal palavroso dele é um amálgama de ofensas, provocações e afirmações de potestade, quase todas falsas. Assim, o respeito está ausente e o caos garantido, e caos é o pântano onde floresce esta planta carnívora.

A campanha de Trump tinha preparado um panfleto onde proclamava que Trump tinha debatido o suficiente com Biden e acabava por ali. O problema? O panfleto foi solto antes do debate, ou seja, nada tinha a ver com o resultado da ação. Em Trump, nada tem a ver com o resultado da ação e sim com a perceção do que ele deseja ser o resultado da ação, repetido à exaustão e ventilado na plataforma de eleição dos trolls, o Twitter. O debate não foi um debate mais foi aquilo que Trump conhece, usa e abusa, a televisão do formato reality show. Neste caso, abusou. Em quantos votos isso o pode prejudicar? Provavelmente, poucos. O Trump com quatro anos de palco e de Casa Branca em cima não é o mesmo da campanha de 2016, e os eleitores dele também não são os mesmos. Os idólatras estão mais entrincheirados.

Trump está a lutar pela sobrevivência, pessoal e a do grupo económico com a marca, e usará todos os truques do gangsterismo para escapar ileso em caso de uma vitória de Joe Biden. Ilegalidades, intimidação, usurpação de poder, incitamento à violência, negação das evidências, manipulação distribuída pelas plataformas, do Twitter à imprescindível Fox News, e um rol de mentiras e factos negados, nada ficará de fora do arsenal Trump, e este arsenal não é político nem integra políticas. Querer retirar da torrente de lama uma pedra preciosa é exercício inútil. É como argumentar contra Bashar al-Assad, o presidente da Síria, quando ele negava o uso de armas químicas. Assad decidira lutar pela sobrevivência usando as armas proibidas e, num terreno menos sangrento, Trump luta pela sobrevivência usando as armas proibidas pelo civismo da polis. Quando ele mencionou os Proud Boys, um grupo de supremacistas brancos de extrema-direita, não foi, ao contrário do que disseram alguns jornalistas, para os absolver por não os condenar. Foi para os incitar à violência armada, avisando-os para se prepararem. A subtileza é importante. Os Proud Boys celebraram.

Se a eleição correr mal a Trump, não hesitará em atiçar as milícias da igreja de fiéis, e em desafiar a “lei e ordem”. Porque não só acha que pode ditar a lei e a ordem, como sabe que caso Biden ganhe, o grupo Trump estará condenado a anos no banco dos réus, e Trump e filhos gastarão os lucros inflacionados que nunca tiveram, mais uma cortina de fumo e marketing, em advogados e peritos legalistas. E nem vamos falar do crime de traição à pátria, que os serviços secretos guardam com prudência, decerto em camadas de encriptação. Ou negociará um perdão com os democratas, o que começa a ser uma possibilidade remota dada a acrimónia. Mas, se a guerra civil for uma ameaça, os democratas não hesitarão em aplacar o touro enraivecido.

Em última análise, Trump negociaria um retorno ao seu meio de origem, a televisão, e certamente a Fox News e o sr. Murdoch o contratariam para continuar a disparar flechas envenenadas para cima de uma Administração democrata. Mesmo ganhando a Casa Branca, sem o Senado ser retirado ao Partido Republicano, a democracia americana continua em risco de vida.

Assim o tem repetido Thomas Friedman, o colunista do “The New York Times” e um dos raros jornalistas equipados para lidar o touro. No “debate”, entre aspas, Chris Wallace foi massacrado pela boçalidade de Trump, e acabou, como sempre acontece aos jornalistas neste tipo de debates, a ser o bode expiatório da noite. Retirar o microfone ao Presidente, como alguns sugeriram? Seria um atentado à liberdade de expressão, esse elástico que estica até ao infinito, e um gesto que daria a Trump a oportunidade para se armar em vítima.

E, claro, a obsessão jornalística com a imparcialidade e a neutralidade, fez com que logo a seguir ao debate os títulos online tentassem fazer equivaler o touro desembestado a um político normal. Os primeiros títulos tentavam também responsabilizar Biden pelo desastre e colaram-lhe a frase do “palhaço”. Biden chamou palhaço a Trump, uma ofensa onde os únicos ofendidos seriam os palhaços. A equivalência moral dos dois candidatos é uma falsa premissa que conduz a falsas conclusões. Às primeiras sondagens sobre quem ganhou e quem perdeu, igualmente inúteis para virarem o eleitorado como as eleições de 2016 demonstraram, os títulos online começaram a mudar. Sobretudo no “Financial Times”, que parecia acusar Biden de ter contribuído para um debate “mal-educado” ou “sem maneiras”. O título foi logo substituído pelo adjetivo “caótico”. O que o adjetivo não diz, e omite, é que o caos tem um único criador, e não dois. Trump é o caos, e não é um caos criativo. A propaganda não é política, mas é uma arma política eficaz, perguntem aos totalitaristas e autocratas, perguntem à história de todas as ditaduras.

Ao cabo de quatro anos de desordem, Trump continua a ser um magnete mediático. Quatro anos em que a CNN se transformou numa plataforma de Trump por oposição, quatro anos de Trump bashing em vez de informação clara e factual, e de igualdade de tratamento e tempo de antena aos dois partidos, de alargamento do ecrã a Biden em vez da sua ocupação a tempo inteiro por Trump e comentadores de Trump. Quatro anos em que os eleitores Trump sentiram que o seu homem era vítima de tratamento diferenciado e negativo, quatro anos em que nem um facto ou factoide do grupo Trump e da família foi investigado. Biden foi deslizando na invisibilidade, bem como os democratas. É um elogio à sua resistência que tenha conseguido chegar inteiro ao debate. A televisão não o queria. E, pior ainda, também não o detestava, como detestava Hillary Clinton. Se Biden conseguiu a nomeação, isso atesta uma capacidade política. E se for eleito, é Kamala Harris que será eleita para um segundo mandato. Ou não. E a democracia expirará em direto.»

Clara Ferreira Alves