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sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Imaginar o fim do capitalismo

  por estatuadesal

(António Guerreiro, in Público, 09/11/2018)

Guerreiro

António Guerreiro

É bem conhecido o paradoxo que o norte-americano Fredric Jameson, nome importante da teoria e crítica da cultura, enunciou há alguns anos: actualmente, é mais fácil para nós imaginarmos o fim do mundo do que o fim do capitalismo. É significativo que ele tenha utilizado a palavra “imaginar”, já que o colapso do capitalismo foi muitas vezes anunciado como previsão de ciência certa — e outras tantas vezes desmentido — desde Marx até ao pensamento ecologista actual que denuncia a impossibilidade (a “insustentabilidade”, como se diz hoje) do modelo “extractivista”, segundo o qual ele se constrói (e Marx parece não ter pensado nos limites dos recursos naturais quando escreveu: “De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades”).

Uma teoria ecológica mais elaborada e de mais vasto alcance diz que o capitalismo é insustentável do ponto de vista das três ecologias de que falava Félix Guattari: a ecologia natural dos recursos físico-biológicos, a ecologia política das relações sociais (que, como sabemos continua a degradar-se com a exacerbação das desigualdades), a ecologia mental das nossas capacidades “atencionais” (se me é permitido este neologismo um pouco bárbaro), esgotadas quer pelo crescimento dos processos competitivos, quer por uma estimulação incessante por meio das novas tecnologias digitais da informação e da comunicação.

Quem hoje entra nas grandes livrarias ou, por outras vias, está atento ao que se vai publicando no campo da teoria política, da sociologia e da filosofia, é convidado com alguma persuasão a “imaginar” o fim do capitalismo. Na verdade, esse ramo de produção teórica e especulativa é vasto e cada vez mais próspero. Uma das experiências mais inconsequentes e mais fúteis que o mundo capitalista nos oferece é precisamente esta: nas prateleiras e bancadas das livrarias vemos alinhar-se um exército de livros de crítica e combate, onde se constroem cenários do fim do capitalismo, das suas transformações, dos seus apocalipses alegres ou negros. mas mal saímos à rua tudo se reconfigura de modo a nem conseguirmos “imaginar” o fim do capitalismo.

Bem podemos ter folheado na livraria um livro seriíssimo, estimulante e de grande alcance teórico sobre a cidade pós-capitalista, um livro recente que, com uma enorme habilidade, até actualiza e desvia do seu território ideológico original (o de uma cultura de direita que já nem existe e que  está na base da “revolução conservadora” entre as duas guerras mundiais) a noção jüngeriana de “mobilização total”; assim que voltamos à rua, a mobilização é de facto total, mas completamente outra: a cidade segue o seu curso neoliberal, indiferente a imaginações e profecias. Ou, pelo menos, é o que parece.

Veja-se, por exemplo, o que se passa em Lisboa e no Porto: os centros destas cidades são um verdadeiro parque de diversões, cada nova loja ou novo restaurante (e há-os, recém-inaugurados: “la forme d’une ville/ Change plus vite, hélas, que le coeur d’um mortel”, como escreveu Baudelaire) é um novo “conceito” que, não produzindo nada, visa criar um valor especulativo em tudo o que existe. A cidade está toda ela sujeita a ser governada pela lógica da injecção de valor abstracto que pode ser aniquilado tão rapidamente como foi construído (os sociólogos Luc Boltanski e Arnaud Esquerre analisaram este fenómeno do “enriquecimento”, no sentido em que se fala de urânio enriquecido, num livro recente intitulado Enrichissement. Critique de la marchandise)

Se não conseguimos imaginar o fim do capitalismo é talvez porque tendemos a pensar — assim fomos treinados — que esse fim se dará sob a forma de um cataclismo, de passagem violenta para outra coisa completamente diferente. Mas talvez seja mais avisado pensar um pós-capitalismo (e há já quem o esteja a pensar, limito-me a fazer eco de algumas leituras recentes) que está a desenvolver-se a partir do interior do próprio capitalismo, numa altura em que tudo nele obedece à regra da hipertelia, do que se anula porque vai para além dos seus próprios fins.

Tendo falhado todos os ditados do fim do capitalismo por acção dos seus limites exteriores, a maneira possível de imaginar o seu fim é começar a perceber para onde ele está a ser conduzido pelos seus limites interiores. Então, talvez comecemos a perceber que o hiato entre a rua e algumas secções das livrarias actuais não é tão grande como parece.

PSD: obrigado pelo striptease

  por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 09/11/2018)

Daniel

Daniel Oliveira

Vou ser breve com este assunto como fui com o de Barreiras Duarte ou outros semelhantes noutros partidos. Como percebem se acompanharem os meus textos, este é o tipo de tema que excita a comunicação social e não me excita a mim. Nem à esquerda, nem à direita. Deixo para outros colunistas especializados o papel de guardiões diários da moral – até ao dia em que alguém vá verificar a sua própria coerência. Eu gosto mais de política. Não é falta de exigência ética, é mesmo exigência intelectual.

É evidente que o comportamento de José Silvano é condenável. Que ter alguém a assinar as suas presenças é uma trafulhice que, num trabalho como o da maioria dos portugueses, levaria a despedimento por justa causa. Que ter alguém a entrar com a sua password pode roçar o crime – nunca deixará de me espantar pelo descaramento a rapidez com que o Ministério Público manda saber que está a investigar cada pequeno caso que belisque um líder partidário que não lhe faz grandes elogios. Seja como for, perante este caso, Rui Rio devia ter feito o que não fez com Feliciano Barreiras Duarte: ter sido rápido a afastar o deputado das suas funções internas no PSD. Não precisa de qualquer investigação para isso, chega o que o próprio já confessou.

Não basta a Rui Rio ser eticamente rigoroso consigo mesmo. Tem de ser rigoroso com os seus, o que quase sempre é mais doloroso e difícil. Compreendo a resistência em acompanhar o acelerador do tempo que faz de um pequeno caso um caso enorme. Mas, por mais que se resista, a política faz-se sempre no contexto em que se exerce. E o tempo está mesmo mais rápido.

Dito isto, tenho, como alguém que está à esquerda, de fazer alguns agradecimentos. De tanto ler o Observador, o Correio da Manhã e os seus avatares nos vários jornais estava convencido que todos os trafulhas se acoitavam nas sedes do Partido Socialista e que toda a hipocrisia comia caviar nos acampamentos de verão do Bloco de Esquerda. Foi preciso que a direita fosse liderada por alguém que não é do agrado dos acólitos do passismo, uma versão empobrecida da nossa tradição sebastianista com boas relações nas redações, para que descobríssemos alguns tesourinhos deprimentes do PSD. E alguns já lá andam há tanto tempo e foram tão poupados antes de Rui Rio os escolher.

De tanto ler o Observador, o Correio da Manhã e os seus avatares nos vários jornais estava convencido que todos os trafulhas se acoitavam nas sedes do PS e que toda a hipocrisia comia caviar nos acompanhamentos de verão do Bloco. Foi preciso que a direita fosse liderada por alguém que não é do agrado dos acólitos do passismo, com boas relações nas redações, para que descobríssemos alguns tesourinhos deprimentes do PSD

Feliciano Barreiras Duarte passeou durante anos com um currículo martelado e nós fomos poupados às suas mentiras. Repentinamente, quando apareceu ao lado de Rio, tudo se ficou a saber. E não foi por não ter responsabilidades anteriores: foi um muito relevante secretário de Estado de Passos. Suspeito que José Silvano, feito comendador da Ordem de Mérito por Cavaco Silva, antigo presidente da Câmara de Mirandela, ex-administrador de seis empresas municipais ou públicas, coordenador da Comissão Eventual para o Reforço da Transparência no Exercício de Funções Públicas (a ironia) e deputado entre 1995 e 1999, tendo voltado ao Parlamento pela mão de Passos Coelho, também não ganhou agora hábitos menos próprios.

Há, no entanto, um pequeno dano colateral deste streap-tease da direita: a oposição. Os deputados do PSD que querem apear o líder antes de serem apeados das listas têm-se esquecido que há um Governo e que estamos a um ano das eleições.

Longe de mim querer acabar com esta solidão da esquerda, em que o BE e o PCP têm de fazer, por falta de comparência, de governo e de oposição. Mas não seria mal, nos intervalos das ações de sabotagem ao vosso líder, fingirem que se opõem a Costa. Não precisam de o sentir, mas podiam disfarçar. Mentiria se dissesse que sofro ao ver o PSD transformando no campo de batalha de Verdun. Mas, apesar de tudo, a democracia precisa de ter oposição ativa. Quando acabarem os ajustes de contas, que o sobrevivente venha cumprir a sua função.

Silvanices

  por estatuadesal

(In Blog O Jumento, 09/11/2018)

silvano

Não sei o que mais incómoda, se a indignação por ver um deputado a ganhar uns cobres de forma indevida ou a vergonha de ter um representante que recorre  a truques, digamos de um bordel, parta ganhar mais uns trocos.

Como se tudo isto fosse pouco ainda temos um deputado que, de dia para dia, arranja novas desculpas e um dirigente que nos quis baptizar num banho de ética, armado em parolo a dar respostas em alemão.

O cargo de secretário-geral não é assim tão importante no PSD, está entre a secretária pessoal do líder e o mestre de cerimónias na sede do partido. Ainda assim, e apesar de ser modesto, ao longo dos anos este cargo foi desempenhado por gente com alguma qualidade e merecia mais cuidado por parte do PSD.

Convenhamos que, ter um secretário-geral que rouba fruta na casa do vizinho, não é uma boa ideia. Compreende-se que o senhor precise de ajeitar o ordenado, que uma deslocação para Lisboa tem custos, que provavelmente não são devidamente cobertos pelo que recebe no parlamento. Ma quem não quer ser urso não lhe veste a pele e se José Silvano acha que o cargo não tem compensação financeiramente então que volte para a terra.

É bom lembrar que, na sua primeira intervenção, o agora secretário-geral do PSD declarou que não temia ninguém e como garantia de qualidade invocou a sua condição de transmontano, como se o ser desta  ou daquela região lhe conferisse qualidades, raras noutras regiões. Bem, se não se importa de envergonhar o PSD talvez não fosse má ideia pedir desculpa aos seus conterrâneos.

Brasil, Brasil

Entre as brumas da memória


Posted: 07 Nov 2018 03:12 PM PST

Deixo para mais tarde descrições turísticas do dia de hoje, porque muitos me pedem impressões no campo político. Antes de mais, que fique claro que três dias em viagem de passeio não chegam para se ter qualquer opinião consolidada. Em todo o caso, aí vão umas pinceladas.

Ontem assisti, na TV, ao último minuto de uma declaração que Moro fez para justificar a aceitação do cargo de ministro da Justiça. Seguiram-se três comentadores, com ar sereno e formal, que resumiram o que Moro dissera, sem qualquer crítica ou distanciamento, frisando aliás que o facto de ele levar para o ministério várias pessoas dos tribunais constitui uma garantia de competência reforçada. Passou-se para a Economia e dois especialistas explicaram (também sem a menor reserva, didaticamente), o que Paulo Guedes vai fazer: usar o dinheiro das privatizações para diminuir a dívida («Não tenham medo, não vai haver nenhuma reestruturação») e reformar a segurança social. A mensagem do conjunto das intervenções era clara: estes dois ministros são a cara de um governo que vai ser competente.

Esta manhã, tomei o pequeno-almoço com duas brasileiras de 30 e tal ou 40 anos, desempoeiradas, funcionárias públicas. Nenhuma votou Bolsonaro «que é um doido», optaram pelo voto nulo. Teriam escolhido sem hesitação Lula, mas não Haddad. Não só porque foi um mau candidato, mas sobretudo pela vice, Manuela d’Ávila, «essa extremista louca». No meio disto tudo, em quem depositam grande esperança: no ministro da Economia. Quando lhe expus as minhas reservas, concordaram plenamente, até por saberem que, como funcionárias públicas, serão «vítimas». Mas se o homem endireitou a economia do Chile sem ser chileno, certamente que salvará a do seu país. Elas foram trabalhar e eu desejei-lhes felicidades…

Em suma: tenho a sensação (provisória…) de que, acabada a guerra da campanha eleitoral, esta gente agarra-se seja ao que for e que isso passa, principalmente, por acreditar na mensagem que está a ser subliminarmente transmitida: vem aí um bom governo, para muitos apesar de Bolsonaro – que, afinal, só teve 1/3 dos votos dos eleitores…

O perigo

Ladrões de Bicicletas


Posted: 08 Nov 2018 05:59 PM PST

Enquanto o presidente Bolsonaro promete eternas juras à Constituição, o seu filho propõe um diploma que combata a ideia do Comunismo.
A sua ideia não é combater as organizações comunistas, fragilizadas, mas aproveitar o anticomunismo enraizado para combater todas as organizações sociais que ponham em causa a opinião dominante, tidas na sua ideia como comunistas. Em Portugal, tivémos um vislumbre pesado dessa ditadura em que o conceito comunismo abarcava toda a oposição e os valores do anticomunismo foram erguidos durante 48 anos de empobrecimento político, social e económico e de desigualdades sociais.
Mas as novas (velhas) experiências também acontecem deste lado do oceano. A par de uma homenagem do socialista Macron ao marechal colaboracionista dos nazis Pétain (perigosa mesmo que seja para cativar a base social da Frente Nacional) e depois de sucessivas iniciativas da Comissão Europeia, o Senado francês acaba de rejeitar mais um diploma relacionado com as falsas notícias, que apareceu sem qualquer debate sério e tido por políticos e jornalistas como mais perigoso que eficaz.
O seu texto permitiria...
..."a pedido do Ministério Público, de todo o candidato, de todo o partido ou agrupamento político ou de toda a pessoa tendo interesse em agir", "fazer cessar" a difusão das "alegações ou imputações inexactas ou enganosas de um facto de natureza a alterar a sinceridade do escrutínio futuro" e de "difundidas de maneira deliberada, artificial ou automática e massiva através de um serviço de comunicação ao público em linha". Ver aqui (é possível que o seu conteúdo esteja impedido a não assinantes).
Aqui, o fenómeno de alargamento da frente de combate não é feito em nome do anticomunismo. Mas em prol da defesa da democracia e da transparência de informação, quando na verdade tudo pode servir para conseguir o seu contrário, ou seja, minar os opositores que tragam informações incómodas. Aliás, nada de novo.
Convém sublinhar que a guerra fria não foi nada disso - fria. Muito pelo contrário. Tratou-se de um período da Historia mundial que está longe de poder ser caracterizado pelas histórias dos filmes a preto e branco, baseados em romances de espionagem. Foram verdadeiros combates sem luvas brancas.
Saído da segunda guerra mundial e do seu papel na derrota do nazismo, o movimento comunista internacional atingiu uma tal projecção nos países ocidentais, que partidos comunistas foram os mais votados em França e na Itália, durante quase uma década. A participação comunista nos principais governos europeus era inquestionável e imparável.
As democracias ocidentais viriam então a perder a tranquilidade do rotativismo eleitoral e a assumir então traços proto-ditatoriais ou simplesmente de lutadores da rua. Os ministros comunistas foram expulsos do governo, reprimiram-se movimentos sociais e lutas laborais. Em França, um ministro socialista, assustado, chegou a enviar tanques contra uma greve de mineiros, como forma de lhes partir a espinha, o que veio a acontecer. Houve confrontos violentos em Itália, com dezenas de mortos. Em todo o mundo, leis facilitaram o despedimento de comunistas do funcionalismo público, a apreensão de passaportes, a caça às bruxas em diversas actividades, apreensões de material e arquivos em sedes de partidos, até chegar à prisão em massa de comunistas pelo mundo fora, inclusivamente em França, quando em 1952 foram presos o director do órgão central do PCF e o próprio secretário-geral do PC Francês, Jacques Duclos, deputado na Nação, juntamente com dois pombos - oferta de um camarada, possivelmente para um petisco - os quais integraram a acusação judicial paranóica, talvez como fazendo parte de um destacamento de pombos-correio enviados de Moscovo.
Esse movimento do pêndulo político fortaleceu-se com a proclamação da República Popular da China (1949), a guerra civil na Coreia que terminou com a entrada dos fuzileiros norte-americanos e de tropas chinesas, a explosão das guerras de insurreição comunista na Ásia que foram afogadas em sangue (caso da Indónesia, Birmânia, Malásia) e o surgimento na Ásia e na África de um poderoso movimento de libertação nacional das colónias ocidentais que se estenderia anos anos 60 e 70, e que teria um contrapeso nas tomadas de força pelos países ocidentais no Médio Oriente.
O movimento anticomunista, por seu lado, partiu da reviravolta feita, logo no pós-guerra, na política externa norte-americana, após a morte de Roosevelt - que, pouco antes de morrer, pretendia retirar as tropas norte-americanas da Europa - e com a sua substituição por Truman. O anticomunismo surgiu em reacção a essa enorme inferno vermelho que percorria os países ocidentais.
Os traços dessa política anticomunista - alimentados pela denúncia pública do que se passara na URSS estalinista até 1953, com a intervenção do Pacto de Varsóvia na Hungria de 1956 - afastaram muito da base social de apoio comunista e projectaram-se, eles sim, pelo mundo durante várias décadas. Tanto na política como na teoria económica. E ainda hoje estão bem presentes, ainda que subliminares, nas políticas liberais - contra o colectivismo de um Estado Social e o papel dos sindicatos como defensores de interesses lobbistas - que as nossas instituições multilaterais tentam impor ao mundo, mesmo quando o movimento comunista deixou de ser a força que era nos anos 50 do século passado e em que a própria social-democracia europeia se afoga.
Tempos, pois, perigosamente interessantes, embora com muitos laivos de déjà vu.