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sexta-feira, 23 de agosto de 2019

O medo, pelo sim, pelo não

por estatuadesal

(Manuel Loff, in Público, 22/08/2019)

Manuel Loff

Era difícil de acreditar que esta legislatura, que começou de forma tão surpreendente e esperançosa, pudesse acabar assim, neste festival de demagogia e manipulação! Estes últimos meses de governo PS antes das eleições têm sido os que melhor demonstram como, no que diz respeito ao tratamento autoritário e classista que o Estado tem com quem trabalha e vive do seu salário, nada de verdadeiramente relevante mudou com a chegada de Costa ao poder e o fim do governo da direita com a troika – de facto, desde o cavaquismo.

A forma como este governo PS tratou professores, enfermeiros e, agora, motoristas, revela um perigosíssimo crescendo de autoritarismo. Cada batalha sucessivamente vencida contra cada um destes grupos profissionais deu alas a que o Governo fosse perdendo cada vez mais pudor e, na batalha seguinte, usasse ainda mais recursos do Estado cuja operacionalização é típica dos estados de exceção e objetivamente incompatível com a democracia.

Se não, vejamos. Em todos estes três casos, o Governo manipulou informação, exagerou as consequências das greves, ocupou o espaço noticioso para promover teorias da conspiração, e usou de uma intolerável arrogância, criminalizando os grevistas (recordam-se o que disse a ministra da Saúde?, ouviram o que os ministros do Ambiente e do Trabalho disseram dos motoristas que não cumpriam os serviços máximos?), transformando o exercício de direitos em ameaça social. Em todos os casos, o Governo e o PS acusaram os sindicalistas de “objetivos políticos” - os mesmíssimos que o Governo teve em cada uma das respostas aos movimentos grevistas.

Em todos os casos, o Governo (e os media que o acompanharam na histeria) atiraram-se à garganta de Mário Nogueira, da bastonária da Ordem dos Enfermeiros, de Pardal Henriques – três personagens totalmente diversas entre si, claro que sim, mas é tudo menos coincidência que as três tenham sido tratadas como inimigos a abater! E, não, não é verdade que aqui esteja em causa um “sindicalismo chantagista”, como já se escreveu, de gente que “desrespeita a tradição sindical portuguesa”.

Costa e os seus ministros estão tão preocupados em preservar o sindicalismo de classe da CGTP (tanto elogiaram a FECTRANS quanto diabolizaram a FENPROF) quanto eu quero que gente assim governe com maioria absoluta. A violação de direitos, liberdades e garantias básicas do movimento sindical e dos trabalhadores configura aquilo que, neste jornal, Ana Sá Lopes tão bem designou como “um thatcherismo de fachada socialista”, e é indigno não apenas de um governo que se diz “socialista”, mas pura e simplesmente de qualquer democrata.

No campo da separação de poderes, a Procuradoria deixou-se usar como braço judicial do Governo, produzindo perigosas interpretações (que agora só são isso, mas que poderão vir passar a ser letra de lei) do direito e da legalidade das próprias greves, da maximização de serviços mínimos, da intervenção do Estado, criando precedentes gravíssimos para o futuro. Em todos os casos, o Governo intimidou os contestários, dramatizou as consequências das greves para mobilizar a hostilidade social contra elas, recorreu descaradamente às forças de segurança e, neste último caso, às próprias Forças Armadas (o EMGFA recebeu instruções para preparar operação para atuar em “distúrbios civis, sabotagem, (…) ações hostis por parte dos grevistas”?!).

Se em dois dos casos, o Governo representava o Estado como empregador, no caso dos motoristas comportou-se sem isenção alguma e, muito mais grave, disponibilizou aos patrões toda a máquina coerciva do Estado (polícias, militares, procuradores). Negociar assim, é fácil – e assemelha-se muito a como, sob a ditadura salazarista, os patrões negociavam…

Como recorda o historiador Patrick Boucheron, “a melhor forma de fazer-se obedecer” é “fazer temer, em vez de convencer – sem fazer com que se compreenda nunca nada”. Foi assim mesmo que este governo se comportou face a três dos movimentos grevistas mais persistentes das últimas décadas: intimidou quem não desiste de lutar, instilou medo e ansiedade no conjunto da sociedade. Ter imposto esta lógica securitária a que, boquiabertos, assistimos nas últimas semanas, num país sem violência política contra o Estado, sem violência armada de tipo religioso e com dos mais baixos níveis de violência societal, parece coisa de assessores políticos sobreaquecidos que andam a aprender lições com Trump e Bolsonaro. Ou com Macron, um dos modelos de Costa.

(Outra) lição aprendida para outubro.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Serviços máximos: primeiro estranha-se, depois entranha-se

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 21/08/2019)

Daniel Oliveira

Como temia, a greve cirúrgica dos enfermeiros abriu a Caixa de Pandora. A exigência de fortes serviços mínimos, primeiro, e de uma requisição civil, depois, era inevitável. Antes de tudo, porque sendo uma greve por procuração, em que a esmagadora maioria trabalhava e pagava a outros para fazerem greve, ela nunca teria de chegar ao fim. Não tinha qualquer custo. Não era realmente uma greve. Depois, porque era, pela sua natureza cirúrgica e pelo alvo, uma greve desumana que nenhum Governo, por mais de esquerda que fosse, poderia tolerar que se eternizasse. Mas a verdade é que abriu um precedente. Os serviços mínimos deixaram de ser mínimos e a requisição civil, um gesto sempre extremo, não causaram qualquer indignação ou resistência. Ao isolar os enfermeiros do resto da sociedade, a bastonária enfraqueceu os instrumentos sindicais que, aliás, está legalmente impedida de utilizar.

Depois, veio a segunda greve dos motoristas de matérias perigosas. Fui, como sabem, crítico da liderança desta greve que tinha, à partida, reivindicações mais do que justas. O destino de uma greve por tempo indeterminado que acabou em sete dias veio confirmar a irresponsabilidade de quem levou os trabalhadores a um beco sem saída. Não chega agitar plenários e falar bem na televisão para ser um bom sindicalista. A qualidade da liderança de uma luta confirma-se na capacidade de chegar a um bom acordo. De ter uma estratégia. De ser realmente sindicalista. A verdade é que o Governo aproveitou a impopularidade da greve para ir um pouco mais longe. Os serviços mínimos já se aproximaram ainda mais dos máximos e a requisição civil, que deve ser o último recurso, foi usada ao fim de 19 horas de greve.

A greve na Ryanair não é por procuração, desumana, irresponsável ou por tempo indeterminado. Não há emergência energética ou questões humanas que justifiquem os serviços mínimos impostos. Há a sensação de que se pode

E agora, cereja em cima do bolo, vemos serviços mínimos a ser decretados em favor de uma companhia aérea multinacional low-cost, especialmente selvagem na relação com os trabalhadores e até com os países onde opera, por sinal. Esta não é uma greve por procuração, desumana, irresponsável ou por tempo indeterminado. É uma greve por cinco dias num sector que não põe, se falhar, os serviços fundamentais do país em perigo. Em que há concorrência em grande parte das rotas que os trabalhadores foram obrigados a continuar a garantir parcialmente, como as ligações de Lisboa com Londres, Paris ou Berlim. Passo a passo, banaliza-se a redução do direito à greve a um mero ato simbólico, funcionando o Governo como protetor dos interesses económicos das empresas em causa. Considerar que uma greve de cinco dias tem uma “duração relativamente longa” é transformar a greve num ornamento. Não há emergência energética ou questões humanas que justifiquem os serviços mínimos impostos à greve na Ryanair. Há a sensação de que se pode.

“Que força é essa?”

por estatuadesal

(Luís Aguiar-Conraria, in Público, 21/08/2019)

Os números da vergonha nacional

(A publicação deste texto é dedicada ao comentador de serviço deste blog, RFC, fã declarado do autor. Pela primeira vez a Estátua subscreve a prosa deste escrevente... )


Entre 2004 e 2017, o peso do rendimento do trabalho no rendimento total de Portugal caiu de 66 para 55%. Estes valores, publicados em Julho deste ano, são calculados pela Organização Internacional do Trabalho. Dos debates que li durante a semana de greve dos camionistas, percebi que muitos estão convencidos de que aquele facto é um resquício dos anos da troika. Infelizmente, não é. De 2004 a 2011, anos socialistas, digamos assim, o peso do rendimento do trabalho desceu de 66 para 60%. Durante o governo PSD caiu para 55%, valor que se manteve estável até 2017. (Não há ainda dados para 2018.)

A desvalorização do factor trabalho é, portanto, uma tendência longa. Tão longa que, segundo vários académicos, recua até aos anos 80 do século XX. Mas o que se passou em Portugal desde 2004 não tem paralelo noutras regiões comparáveis. Por exemplo, na Europa Ocidental, o rendimento do trabalho mantinha em 2017 os 62% de 2004. Se tomarmos os 28 países da União Europeia, a queda foi de 59 para 58%; em Espanha, de 63 para 61%.

Quer isto dizer que, para se perceber o motivo da quebra em Portugal, não basta ficarmo-nos por explicações comuns a todos os países, como a revolução das tecnologias de informação, a globalização, a automatização, etc. Tem de haver um motivo para que a diminuição seja tão acentuada em Portugal. Penso que a greve da semana passada nos dá pistas.

Como muitos frisaram, fazia parte do programa da troika a flexibilização do mercado laboral. Mas poucos se recordaram que esta é em Portugal uma tendência com várias décadas. Só os mais novos não se lembrarão da greve geral de 1988, que juntou a UGT e a CGTP pela primeira vez, contra a reforma laboral do Governo de Cavaco Silva. Até hoje, sucessivas revisões das leis laborais tiveram sempre o mesmo sentido, o da flexibilização. Nesse domínio, a troika nada trouxe de novo. A sua novidade é que queria, a par da liberalização no mercado de trabalho, um aumento da concorrência no mercado do produto. E este segundo ponto é o essencial.

O mercado livre funciona bem quando há concorrência: um trabalhador que não gosta de um trabalho pode mudar de emprego e um consumidor que é mal servido pode procurar quem melhor o sirva. Mas se poucas empresas dominam o mercado, o consumidor fica sujeito aos seus ditames. Aposto que o principal motivo pelo qual ainda não mudou o seu serviço por cabo é simples: sabe que também há muitas queixas sobre as duas ou três alternativas de que dispõe. Da mesma forma que estas empresas lhe fornecem um serviço caro e de má qualidade, as que controlam os mercados de trabalho impõem más condições laborais e salários artificialmente baixos.

Olhemos para o sector energético. À privatização do sector não correspondeu um aumento da concorrência. Pelo contrário, criaram-se grandes empresas com enorme poder de mercado. Já entre os transportadores de combustível há muito mais concorrência. O resultado é que as grandes empresas impõem condições leoninas e as transportadoras sujeitam-se. Quem não gostar é facilmente substituída por outra e não tem alternativas. Os motoristas destas transportadoras sofrem as consequências e têm contratos indignos.

Havendo empresas com grande peso no mercado, a melhor forma de garantir boas condições de trabalho é ter entidades reguladoras fortes e independentes, que obriguem as empresas monopolistas a comportar-se de forma concorrencial. Não havendo, aos trabalhadores resta uma única força negocial: o poder de fazer greve.

Imaginemos, por momentos, que a greve tinha sido bem-sucedida. A melhoria das condições laborais traduzir-se-ia num aumento de custos para todas as empresas transportadoras. A palavra-chave é “todas”. Como a subida de custos era para todas, as grandes empresas petrolíferas não teriam hipótese de evitar que as transportadoras aumentassem os preços. No fim, o encargo com o aumento da remuneração do trabalho recairia em grande medida sobre as grandes empresas monopolistas e rentistas.

O que se passou foi o oposto. O Governo pela forma quer como definiu os serviços mínimos quer como se precipitou para a requisição civil esvaziou completamente a greve. Uma picada de mosquito incomodou mais do que esta greve. Greves dos transportes públicos, professores, funcionários das escolas, médicos, estivadores tiveram efeitos muito mais disruptivos do que esta, que nem se sentiu. Pior ainda, este governo deu armas aos próximos para fazerem exactamente o mesmo. Como disse António Costa, “no limite, pode não haver diferença entre os serviços mínimos e os normais”.

Provavelmente, o leitor está contente com o facto de as suas deslocações não terem sido afectadas pela greve. Mas acho que faz mal. Cada vez mais estudos, para vários países, mostram que as empresas usam o seu poder no mercado de trabalho para manter salários artificialmente baixos. É, aliás, uma das melhores explicações, se não mesmo a melhor, para que aumentos de salário mínimo não tenham tido efeitos perversos no emprego.

Quero com isto dizer que o que se passa no sector dos transportes de combustíveis é uma caricatura do mercado laboral no resto do país. Um mercado laboral extremamente flexível controlado por empresas, ou associações de empresas, que conseguem impor as suas condições. Os sindicatos tradicionais falharam. Vê-se isso quando se olha para a evolução dos rendimentos do trabalho na economia nacional. Os novos sindicatos correspondem a uma tentativa dos trabalhadores de se reorganizar e aumentar a eficácia das suas formas de luta, reforçando a sua capacidade reivindicativa.

Acabo como comecei. Em 13 anos, o peso do rendimento dos trabalhadores na economia nacional caiu 17%. Ao mesmo tempo que se flexibilizava o mercado de trabalho, permitia-se que a falta de concorrência entre empresas fosse a regra em vários sectores, criando uma economia rentista e deixando os trabalhadores à sua mercê.

Depois de termos visto o governo socialista, suportado por toda a esquerda parlamentar, capitular no combate às rendas excessivas — dizendo que há ganhos excessivos para a EDP e renováveis mas que não os vai cortar —, vemo-lo a colocar-se contra os trabalhadores e usando a força repressiva do Estado para alistar trabalhadores à causa dos empregadores, recorrendo a leis pré-constitucionais mais adequadas a situações de emergência. Fê-lo para que a greve perdesse todo e qualquer efeito, desarmando assim os motoristas.

Depois de décadas de deterioração das condições laborais, não é de esperar que a tendência se inverta.

Professor da Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Museu Salazar: a democracia recorda a ditadura, não a normaliza

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 20/08/2019)

Daniel Oliveira

Foi no final do mês passado que Jair Bolsonaro, irritado por o presidente da Ordem dos Advogados Brasileiros não ter permitido a escuta a um advogado de um criminoso, decidiu exibir de novo até onde pode ir a sua baixeza. Referindo-se ao pai de Filipe Santa Cruz, disse que um dia explicaria como ele desapareceu. O pai do advogado foi um resistente à ditadura e é sabido que foi assassinado pelos militares. Desmentido um facto histórico confirmado pelo seu próprio Governo, o Presidente quis esgravatar na ferida do filho e defender a versão dos torturadores que admira, dizendo que a foi a própria organização do pai de Santa Cruz que o assassinou. Não foi só sadismo. Bolsonaro sabe que ir reescrevendo o passado é a base para legitimar todos os seus abusos presentes e futuros. Desta vez, até o seu apoiante João Doria, governador de São Paulo eleito pelo PSDB e também ele filho de alguém que se opôs ao regime, reagiu com incómodo. “Não vou assumir a defesa de alguém que diz que o Brasil não teve ditadura”, afirmou numa entrevista recente. Estranha declaração, vinda de quem assumiu essa defesa, apoiando Bolsonaro na segunda volta mesmo depois de ele, em pleno congresso, ter dedicado o seu voto no impeachment de Dilma ao torturador Brilhante Ustra. Aliás, mesmo depois deste novo episódio, Doria não retirou o apoio ao saudosista da ditadura militar.

É raro concordarmos ou discordarmos absolutamente de alguém. As concordâncias e as discordâncias estão hierarquizadas e é essa hierarquia que determina o apoio ou a oposição que lhe fazemos. Há assuntos essenciais que tornam impossível esse apoio. O que leva alguém que viu o seu pai ser afastado do congresso pela ditadura apoiar quem faz do apoio a essa ditadura um elemento central do seu discurso? Esse facto não ser determinante nas suas opções políticas. E é quando o discurso sobre o passado deixa de ser politicamente relevante que esse passado se pode repetir. Está a acontecer no Brasil.

A memória da nossa ditadura não é o único elemento que trava o crescimento da extrema-direita. Nem será o mais relevante. Mas conta. Tendo em conta que a ditadura brasileira terminou bem depois da nossa, seria natural que isso pesasse no Brasil. Ou que o VOX tivesse dificuldade em chegar ao Parlamento espanhol. A diferença? Brasil e Espanha tiveram transições, enquanto nós tivemos uma revolução. Mais do que isso: nós construímos um corte simbólico entre a ditadura e a democracia. Uma fronteira clara. Mesmo alguns países que não passaram por mudanças revolucionárias de regime tiveram a preocupação de acertar contas com o seu passado e construir um imaginário democrático que torna intolerável o elogio à ditadura que derrubaram. É o caso da Argentina e até do Chile.

A democracia não sobrevive quando se instala a ideia de que entre ela e a ditadura há apenas divergências de opinião. A democracia não trata os seus inimigos da mesma forma que trata os seus aliados. Ela tem os seus códigos, os seus rituais, a sua iconografia e o seu discurso oficial. Que podem integrar os que não se reveem nela, mas não lhes dão dignidade simbólica. A tolerância democrática acaba onde começa a sua destruição.

Salazar deve ser estudado e revisitado. Mas um museu sobre o ditador não pode servir para celebrar, branquear e normalizar a ditadura. Quem o permitir, sem qualquer proposta científica associada, é cúmplice de um processo de esquecimento que tornará mais fácil o regresso de um qualquer tirano. A tolerância democrática acaba onde começa a sua destruição

Não há temas e personagens tabu em democracia. O Estado Novo e Salazar fazem parte da nossa História. Devem ser estudados e revisitados. É fundamental que o sejam. Com toda a sua complexidade e as suas contradições. A democracia não lida com o passado através da propaganda, mas através da História, mesmo que ela não seja, nunca é, politicamente neutra. Por isso, não me oponho à existência de um museu sobre Salazar. Faltam museus sobre a nossa história contemporânea. Mas um museu dedicado a alguém que oprimiu um povo, que o obrigou a viver durante meio século na mais vil das misérias, que mandou prender, torturar e assassinar opositores e que impediu a expressão livre e democrática da vontade dos cidadãos não pode servir para celebrar, branquear e normalizar a ditadura. Não é preciso qualquer tipo de censura, basta entregar os aspetos científicos desse museu a historiadores da época reconhecidos pelos seus pares. Os factos falarão por si. Há muito que o município de Santa Comba Dão sonha com um Museu Salazar. Sou sensível às preocupações de atratividade económica e turística do concelho, mas há valores mais importantes a defender.

Muita coisa explica a facilidade com que a extrema-direita está a minar as democracias. A memória tem a sua relevância. Foi a falta de memória que não matou, à nascença, a candidatura de Bolsonaro depois de ele ter dedicado o seu voto ao pior torturador da história recente do Brasil. É a falta de memória que permite convencer milhões de pessoas de que uma ditadura não foi uma ditadura. Os regimes mais abjetos têm a capacidade de regenerarem a sua imagem se a democracia não os impedir de o fazer. Se não garantir, através do Estado, a sua superioridade simbólica. Se deixar que o passado seja branqueado e os criminosos sejam normalizados enquanto estadistas que apenas cometeram uns excessos.

O Museu Salazar em Santa Comba Dão, feito para celebrar e não para estudar, é um atentado à democracia. E uma nova investida depois de, em 2008, os deputados da Comissão de Assuntos Constitucionais terem aprovado por unanimidade um relatório onde se dizia que “a Assembleia da República deve condenar politicamente qualquer propósito de criação de um Museu Salazar e apelar a todas as entidades, e nomeadamente ao Governo e às autarquias locais, para que recusem qualquer apoio, direto ou indireto, a semelhante iniciativa”.

Quem permitir este museu sem qualquer proposta científica associada é cúmplice de um processo de esquecimento que tornará mais fácil o regresso de um qualquer tirano. Isto inclui o PS, se não se demarcar da ação oportunista do seu autarca Leonel Gouveia, e o Governo, se não fizer tudo o que estiver ao seu alcance para impedir este insulto ao regime democrático. A democracia não se defende sozinha. Como bem temos aprendido com o que se passa noutros países.

E depois da greve?

Posted: 20 Aug 2019 03:39 AM PDT

«A greve dos motoristas chegou ontem ao fim, na sequência de um pré-acordo assinado entre a associação patronal e a Fectrans e da reabertura de negociações com o Sindicato dos Motoristas de Matérias Perigosas. São boas notícias, se esse processo possibilitar um acordo que respeite os direitos até agora negados aos trabalhadores.

É verdade que esta greve, como todas, afetou a vida do país. Mas esse é o seu papel, e o seu poder: dar visibilidade a profissões e abusos que de outra forma não seriam vistos, ouvidos ou reconhecidos. São justas as reivindicações dos motoristas - horários seguros ou salários justos e pagos por inteiro, sem esquemas dos patrões para fugir à Segurança Social - e hoje sabemos que os graves problemas laborais, e mesmo ilegalidades, por eles denunciadas são do conhecimento governamental há anos.

Esteve mal o Governo quando definiu serviços mínimos que não o eram, e na forma desproporcionada como geriu a requisição civil. A pensar nas eleições, o Governo do PS aplicou uma visão restritiva do direito à greve e uma interpretação absurda da lei do trabalho.

Esteve mal, em particular, António Costa, que ontem escolheu agradecer em primeiríssimo lugar, não à larga maioria dos motoristas que exerceram o seu direito respeitando serviços mínimos excessivos, mas aos militares chamados a intervir na requisição civil. Não está em causa o desempenho destas forças, mas o sinal político dado pelas palavras do primeiro-ministro e o precedente que abre a porta a que no futuro se esvaziem formas semelhantes de luta através da imposição de serviços máximos.

Mas mal esteve também o porta-voz do Sindicato dos Motoristas de Matérias Perigosas, quando isolou a greve daqueles trabalhadores, tornando o processo e os objetivos negociais incompreensíveis aos olhos das pessoas. Ambições profissionais e políticas de Pardal Henriques terão prejudicado a condução de uma luta que é justa.

Agora, resta esperar uma real disponibilidade para a negociação, de todas as partes, e em particular do mediador, a quem se exige imparcialidade. O Governo é responsável por assegurar soluções negociadas que corrijam injustiças há muito diagnosticadas e por garantir a eficácia de medidas de fiscalização num setor onde ficaram evidentes os sistemáticos abusos patronais.»

Mariana Mortágua