Translate

sexta-feira, 3 de abril de 2020

A reacção da UE à crise é um desastre em curso

por estatuadesal

(Ricardo Paes Mamede, in Diário de Notícias, 30/03/2020)

Não venho falar da decisão de alguns países de proibirem a exportação de equipamentos essenciais para conter a propagação do vírus noutros Estados membros. Nem da gafe monumental da presidente do Banco Central Europeu. Nem do "discurso repugnante" do ministro das Finanças holandês. Nem da dificuldade em decidir em tempo útil sobre a emissão de dívida conjunta.

A incapacidade da UE para lidar com os impactos económicos do covid-19 está para lá da falta de qualidade dos líderes ou da enésima expressão dos egoísmos nacionais a que a UE nos habituou na última década. O problema europeu é bem mais profundo do que isto. E é um desastre em curso.

Existe um modo eficaz de lidar com os problemas económicos que estão a desenvolver-se a cada dia que passa: o financiamento directo pelo banco central dos esforços nacionais de combate à crise.

Ao nível teórico, a proposta é hoje pouco polémica. É defendida tanto por marxistas e keynesianos como por neoliberais (convencidos, erradamente, de que a proposta tem por autor Milton Friedman). O principal argumento contra a monetarização dos défices públicos são os riscos de inflação, mas esse cenário é hoje pouco provável, dado o colapso da procura e do investimento a nível internacional. Os argumentos decisivos para defender esta opção passam pela rapidez com que poderia ser accionada, pela capacidade ilimitada dos bancos centrais para emitirem moeda e pela relativa facilidade em desenhar a operação de modo a evitar possíveis efeitos perversos.

No entanto, não encontramos nos comunicados oficiais da zona euro qualquer referência a esta possibilidade. Não é por acaso. A ideia é tabu e está proibida pelos tratados.

Nos últimos dias as atenções têm estado centradas na eventual emissão de eurobonds, ou de coronabonds, ou de uma qualquer variante de partilha de riscos na emissão de dívida pública dos Estados membros da UE. O dramatismo em torno do tema é enorme e nele parece residir o futuro da integração europeia. Num momento destes seria, de facto, um péssimo sinal se os governos não se entendessem sobre uma forma tão óbvia de solidariedade. Mas, para lá do seu simbolismo, a emissão de dívida conjunta não chega para resolver os problemas actuais.

Importa reter uma noção elementar: a emissão de dívida conjunta não evita o aumento da dívida dos Estados. E o aumento da dívida pública é hoje uma questão central.

São inúmeros os apelos para que os governos não olhem a esforços no combate aos efeitos económicos da crise sanitária. O apelo é sensato: não é durante as crises que os Estados devem poupar. Mas há um problema: sem financiamento monetário dos défices, ou sem transferências financeiras a partir do exterior, tudo o que gastarmos hoje teremos de pagar amanhã. Quanto mais generosos forem os Estados na protecção das pessoas e das empresas afectadas pelas medidas de combate ao vírus, maior será a restrição orçamental com que terão de viver no futuro.

Os países do Sul da Europa - Portugal incluído - estavam já entre os mais frágeis antes do vírus, devido à sua estrutura produtiva e à sua elevada dívida externa. Agora junta-se a queda abrupta do sector do turismo de que tanto dependem (e que não será momentânea) e uma dívida pública ainda maior.

Seriam necessárias três condições para evitar o colapso das economias mais frágeis: uma resposta rápida das autoridades; um volume de apoios públicos suficientemente elevado para proteger o emprego e a actividade económica; e a garantia de que, passado o período de emergência, as economias em causa teriam condições para pagar as dívidas entretanto contraídas e para respeitar os compromissos internacionais, sem dificuldades de maior.

A cada dia que passa há centenas de empresários em Portugal que optam por declarar falência ou reduzir de forma drástica a sua capacidade produtiva. Milhares de trabalhadores ficam sem emprego e/ou vêem os seus rendimentos cair de forma abrupta. A urgência de uma intervenção rápida e decisiva é evidente.

Mas o problema da UE no atual contexto não é apenas a lentidão das decisões. Nem sequer as mensagens equívocas das lideranças. A questão central é a incapacidade das instituições e das regras europeias em impedir que o aumento das dívidas públicas devido ao covid-19 se torne um problema colossal no futuro próximo para as economias mais frágeis.

As medidas lançadas pelo BCE e a eventual criação de dívida conjunta dos Estados ajudam a conter os custos futuros do combate à crise. Mas, por si só, não asseguram que os países periféricos estarão em condições de pagar essa dívida, cumprindo as regras orçamentais em vigor. Não sem custos económicos, sociais e políticos elevados.

Perante isto, qualquer governo responsável tem de ponderar bem cada euro gasto para proteger o emprego e a capacidade produtiva. O resultado disto são intervenções nacionais tímidas, que alimentam o cepticismo já instalado entre os investidores privados.

Neste momento, o BCE deveria anunciar o financiamento monetário dos défices públicos decorrentes do combate ao vírus. Em alternativa, as autoridades europeias deveriam comprometer-se com: 1) o financiamento dos Estados nacionais a custos muito reduzidos (através da emissão de dívida conjunta ou de outras soluções possíveis); 2) a alteração das regras orçamentais que hoje obrigam os Estados a reduções aceleradas das dívidas públicas; 3) a emissão de dívida pelas próprias instituições europeias, transferindo os fundos assim obtidos em função das necessidades nacionais; e 4) o lançamento de um plano ambicioso de retoma económica após a emergência sanitária.

Nenhuma daquelas alternativas se afigura provável. Cada dia a mais sem decisões convincentes é mais um passo para o desastre.

Se é para enfiar dinheiro na TAP, que desta vez se renacionalize mesmo

Posted: 02 Apr 2020 03:49 AM PDT

«Mal tudo isto começou, a TAP mandou encerrar o seu call center. Fez bem, em nome da segurança dos trabalhadores. Mas não tratou de fazer, como tantas empresas e serviços com muito menos meios, a migração imediata para teletrabalho. Em plena crise, com milhares de passageiros a tentar regressar a casa e outros milhares a tentarem recuperar o dinheiro ou vouchers de viagens perdidas, a TAP ficou sem ligação telefónica para clientes.

A TAP vai colocar 90% dos seus trabalhadores em lay-off simplificado, um mecanismo criado para garantir o emprego e impedir despedimentos. Mas foi das primeiras empresas a dispensar pessoal, em plena crise, não renovando contratos e contrariando o espírito das medidas apresentadas pelo Estado. Ou seja, o abuso vem logo de uma empresa que tem o Estado como acionista. A administração preparava-se para distribuir prémios por administradores e trabalhadores de topo em ano de prejuízos colossais. Pelo menos isso teve a decência de suspender.

Não há forma de dizer isto com carinho: a Comissão Executiva liderada por Antonoaldo Neves e escolhida por David Neeleman é provavelmente a mais incompetente da história da companhia aérea. E se ela teve administrações incompetentes... Isso verifica-se na degradação da qualidade dos serviços, nos resultados comerciais e nos sucessivos danos reputacionais que os gestores foram provocando à empresa.

Um dia alguém contará a verdadeira história da privatização da companhia aérea portuguesa, feita na 25ª hora do governo de Passos Coelho a gente com má reputação no mercado. Assim como um dia se fará a história da tentativa de concessão dos transportes urbanos de Lisboa e do Porto. Não estamos a falar apenas de erros estratégicos por puro preconceito ideológico, como a privatização dos CTT, feita em bolsa e impedindo a existência de um acionista de referência. Nem o crime contra a soberania nacional, como as privatizações da REN e da ANA. Estamos a falar de histórias muito mal contadas que o jornalismo português ainda não se encarregou de vasculhar.

Mas não é apenas o governo de Passos Coelho que tem de nos dar explicações. A renacionalização parcial da TAP, feita pelo governo de António Costa, também foi uma farsa que ficou evidente aos primeiros desentendimentos entre o Estado e estes inenarráveis acionistas: o Estado mete dinheiro e não manda nada. Nem sequer é consultado. A renacionalização parcial da companhia aérea portuguesa nunca aconteceu. É uma fantasia. E confesso que cheguei, por uns dias, a acreditar nessa mentira.

Estou certo que, depois de todas as ajudas que dará como está a dar a outras empresas, o acionista Estado vai ser chamado a salvar a empresa nesta hora de crise profunda para todo o negócio aeroportuário. Todos os Estados vão, porque o discurso contra o Estado paternalista só serve para quando tudo está bem. É o discurso do adolescente, que quer uma liberdade radical para ir à festa mas dispensa-a na doença. Ainda vamos ver muitas coisas estranhas depois desta crise.

Todas as crises, mesmo as mais dramáticas, são uma oportunidade. E não têm de ser uma oportunidade apenas para os oportunistas. Podem ser para o Estado. Quando for chamado a injetar dinheiro na empresa, onde suspeito que o senhor Neeleman e os seus parceiros não vão querer enfiar um cêntimo, o Estado deve aproveitar para recuperar a maioria ou totalidade do capital e o controlo real da empresa. Gastando o mesmíssimo dinheiro que, de qualquer das formas, vai ter de desembolsar. Até porque, nos próximos anos de chumbo, vamos precisar de algumas empresas estratégicas. E podem esquecer as sacrossantas interdições europeias ao apoio público a empresas nacionais. Com o que aí vem, nenhum dos gigantes europeus o vai dispensar. Isto, se não formos todos suicidas. Ou se não voltar a vigorar a regra comunitária de que todos os Estados são iguais mas uns são mais iguais do que outros.»

Daniel Oliveira

A interrupção segue dentro de momentos

Ricardo Marques

Ricardo Marques

Jornalista

03 ABRIL 2020

Partilhar

Facebook
Twitter
Email
Facebook

Já houve um tempo em que o país parava, ao domingo à noite, para ouvir o professor Marcelo na televisão. Havia de tudo e para todos: grandes revelações, pequenas indiscrições e as inevitáveis notas. Aqueles minutos, que duraram anos, tornaram-se um ritual e uma instituição nacional.

Marcelo Rebelo de Sousa tornou-se Presidente da República.

O país está parado e, por estes dias, qualquer dia é tão domingo como um domingo qualquer.

Ontem, depois de dar avaliação positiva ao esforço dos portugueses no combate ao coronavírus nas duas últimas semanas, o Presidente da República confirmou o que já toda a gente sabia: o estado de emergência é para continuar durante mais duas semanas - e tudo o que já está parado mais parado vai ficar.

Há demasiado em jogo neste momento. Apesar dos sinais positivos que os números vão dando, é importante perceber que nada mudou e que qualquer mudança nos hábitos de cada um pode ter consequências dramáticas na vida de todos.

De acordo com os últimos dados oficiais (que serão revistos dentro de poucas horas), Portugal tinha 9034 casos de infecção com o novo coronavírus. Há 1042 pessoas internadas e outras 240 pessoas encontram-se em unidades de cuidados intensivos. Duzentas e nove pessoas já morreram com covid-19. E 68 pessoas recuperaram. Esta é a realidade por cá.

Abril vai ser um mês difícil. Marcelo Rebelo de Sousa admitiu que o número de infectados pode ultrapassar as 20 mil pessoas. “Vai custar”, disse, “vai ser o maior desafio dos últimos 45 anos”. Depois pediu a todos os portugueses que aceitem e cumpram as regras. “É uma mudança radical na nossa vida, e vai ser por mais umas semanas. Mas isso significa que serão salvas milhares de vidas.”

Esta é a equação mais simples da pandemia: zero movimento mais zero contacto é igual a um número muito alto de vidas salvas.

Antes do discurso presidencial, e já depois de o Parlamento aprovar o estado de emergência 2.0 (pode ler aqui o relato da manhã na Assembleia) o primeiro-ministro tinha avisado que ainda não chegou a hora de “aligeirar as medidas”. Pelo contrário.

Após o Conselho de Ministros, António Costa enumerou as regras, apertadas, para as próximas duas semanas - em particular para o fim de semana da Páscoa. Ajuntamentos proibidos, deslocações entre concelhos largamente proibidas, aeroportos fechados, indultos para presos e malha apertada para os despedimentos. E uma série de outras medidas - desde penas mais pesadas para quem desrespeitar as restrições a documentos que tem de ter consigo se for trabalhar - que pode encontrar neste artigo.

Com o número de casos a aumentar em ambiente prisional, a possibilidade de libertar alguns reclusos vai mesmo avançar. Quatro medidas excepcionais para evitar uma situação explosiva.

As decisões sobre o terceiro período escolar só vão ser tomadas na próxima semana e anunciadas no dia 9 de abril. Os miúdos, parece, estão bem.

Nos Açores, o Governo regional decidiu proibir a circulação entre concelhos na ilha de São Miguel. A medida está em vigor desde as zero horas de hoje.

Até pode ser verdade que nenhum homem é uma ilha. Mas às vezes parece.

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Coronavírus: a opção limite... quem salvar e quem deixar morrer

Martim Silva

Martim Silva

Diretor-Adjunto

02 ABRIL 2020

Partilhar

Facebook
Twitter
Email
Facebook

Bom dia (ou boa tarde, se já almoçou)
Esta é a sua newsletter exclusiva com as últimas novidades, sugestões de leituras e informação úteis, que lhe enviamos sempre que a situação o justifique.

Deixem-me hoje, que esta pandemia já se arrasta, começar por abordar aqui um ponto diferente. Mal a crise começou, uma das coisas que começou a ser explicada era como a estratégia de supressão, mais agressiva, visava impedir o caos nos sistemas de saúde, com um número de infectados e mortos absurdos num curto espaço de tempo. Isto por contraposição à chamada estratégia de mitigação, que o Reino Unido aplicou e a Suécia segue, que visa permitir mais rapidamente a chegada ao ponto de imunidade colectiva - tendo como contraponto uma maior exposição inicial à doença.

Em suma, a questão de fundo era saber do quanto estávamos dispostos a abdicar (permitindo a paralisação das economias) para proteger o melhor possível os mais frágeis da nossa sociedade, como os idosos.

A opção da sociedade foi clara. E ainda bem. Mas com o avolumar do problema a questão mantém-se, ainda que de outra forma.

Chamo a atenção para dois artigos:
Este, no The Guardian, fala por exemplo da dramática opção de se poder retirar ventiladores aqueles que mais hipóteses têm de morrer... para os dar a quem ainda se poderá salvar.
Imaginam equação mais dramática?

Este outro do Expresso vai no mesmo sentido. É um artigo sobre Ramalho Eanes, antigo Presidente da República e ainda hoje uma das referências maiores do nosso país:
Ramalho Eanes e o apelo aos “velhos” como ele: “Se necessário, oferecemos o ventilador ao homem que tem mulher e filhos”

Siga tudo AQUI e AQUI para acompanhar os diretos do Expresso com tudo o que se passa cá dentro e lá fora
NOTÍCIAS A RETER
Tudo o que muda no estado de emergência
: despedimentos, greves, requisição, escolas e confinamento
O Parlamento já aprovou a continuação do estado de emergência
A gripezinha que já não é gripezinha, o apelo de Itália à Alemanha e uma notícia “de partir o coração”: covid-19, um balanço internacional
Regulador de energia anuncia redução extraordinária da fatura da luz
DADOS E GRÁFICOS

Coronavírus no mundo em cinco gráficos e um mapa (com Portugal a afastar-se dos piores cenários)

Os Estados Unidos já são destacadamente o país com mais casos confirmados de Covid-19, com 217 mil casos. A Europa tem mais de 512 mil casos e é atualmente a região mais afetada pelo surto. Há 935 mil casos confirmados a nível global. Itália, o país europeu mais afetado, tem mais de 110 mil casos e mais de 13 mil mortes (11,9%), seguida de Espanha também com 110 mil infetados e mais de 10 mil mortes (9,1%).
Segundo o último relatório da DGS, Portugal vai desacelerando a curva de crescimento. Há 9034 casos registados em Portugal. O número de mortes subiu globalmente para 48 mil. Portugal registou o 209.º óbito de um caso positivo.

Em Portugal os números sobem todos os dias e somos o 16º país com mais infetados no mundo, sendo o 15º em número de mortes registadas. Há atualmente 9034 casos confirmados, mais 783 do que ontem. 68 pessoas já recuperaram e 209 faleceram.
O Norte do país continua a ser a região de maior incidência, 5338 casos, segue-se Lisboa, com 2207, e a Região Centro, com 1161. As ilhas também já reportaram casos positivos: 57 nos Açores e 48 na Madeira.

O Expresso continua a trabalhar mantendo a redação a funcionar mas adaptada às novas circunstâncias e a maioria dos conteúdos publicados online sobre o coronavírus são de livre acesso. E considere apoiar o nosso jornalismo tornando-se nosso assinante.

LINKS ÚTEIS
Além de todo o acompanhamento noticioso que pode fazer no Expresso, deixo-lhe aqui alguns links úteis:
Guia para tirar as dúvidas sobre o novo coronavírus
Conselhos da Ordem dos Psicólogos - ajuda para não sentir-se zangado
Linha SNS24 – Serviço online do SNS
SNS - Área do Cidadão do Portal SNS
Direção-Geral da Saúde – Atualiação permanente das últimas informações oficiais
Organização Mundial da SaúdeRelatórios de acompanhamento ao Covid-19
ECDC - Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças
Voltamos sempre que necessário com tudo o que precisa saber sobre este surto epidemiológico. Até lá acompanhe as últimas informações em www.expresso.pt.
Sugerimos também que partilhe esta newsletter com os seus contactos para que a possam subscrever e assim manterem-se atualizados.

Os corvos que para aí andam

Posted: 01 Apr 2020 03:54 AM PDT

«Pelo mundo inteiro, milhões de cidadãos vivem confinados. Os pássaros de Hitchcock tornaram-se realidade. Os corvos, que aparecem por todo o lado, têm agora o nome de um vírus; os outros corvos a que o filme alude, e que são hoje os do neofascismo, aguardam a sua vez.

Na macabra contabilidade dos número de mortes, anunciada como as cotações na bolsa que as acompanha na queda, o medo vira terror em noticiários sensacionalistas. Na rua onde estou confinado, a vizinha da casa da frente — de onde me chega o som em contínuo da televisão —, com a terrível idade da população em alto risco, como somos lembrados constantemente, alerta-me: “Vizinho, veja a televisão, que medo, é terrível!” Medo do vírus, mas cada vez mais de um futuro de miséria, na maior recessão desde a que devastou os anos 1930.

Na Europa, os governos procuram canalizar o medo para impor medidas de emergência no combate à pandemia e fazem apelos à “união da nação”. Herdeiros do estado-providência, muitos governos, socialistas e do centro, tomam medidas para garantir os salários aos confinados, e salvar as empresas. A gripe espanhola já foi há 100 anos, e a peste negra pertence aos livros de História. As referências usadas são as da guerra e os discursos inspirados nos líderes que a venceram. Metáfora perigosa.

É bom lembrar que a extrema-direita, na Europa, renasceu da propagação do medo contra os muçulmanos e os migrantes, facilitada pela chamada guerra contra o terrorismo, da “guerra de civilizações”, do nós e eles que todas as guerras criam.

A extrema-direita tentou, sem sucesso, transformar a luta contra a pandemia numa cruzada racista, como Salvini que afirmou que o vírus tinha sido introduzido por migrantes africanos, e Trump que arengou contra o “vírus chinês” e tomou medidas de exceção contra os migrantes.

O estado de emergência tornou a extrema-direita na oposição inaudível, mas os seus líderes esperam que as medidas que limitam as liberdades habituem os cidadãos à ideia de que a autocracia é o sistema que melhor os protege. Exacerbando um discurso securitário à base de catastrofismo e teorias da conspiração, acreditam que o exemplo chinês lhes pode ser favorável.

O poder chinês, que começou por esconder a existência do novo coronavírus, impôs medidas de controlo dos cidadãos, acedendo aos seus telemóveis e vigiando, através de câmaras de reconhecimento facial, as suas deslocações, como já vinha fazendo.

O autocrata Orbán, na Hungria, mostra bem como a extrema-direita pensa aproveitar-se da crise, procura impor o estado de emergência por tempo ilimitado e penas pesadas a jornalistas.

As posições obscurantistas de Trump e de Bolsonaro, tentando negar a evidência científica, não são um exemplo que ajude a extrema-direita europeia. Se Trump decidiu, em ano eleitoral, assumir a posição de Presidente de Guerra, ambos, em declarações e atitudes criminosas, desvalorizam a pandemia e o número de mortos para salvar as bolsas e os seus interesses.

Para derrotar o vírus em democracia, para vencer a paralisia que o terror cria, é indispensável ter confiança nos cidadãos, garantir uma informação rigorosa e mostrar que a pandemia pode ser vencida. As medidas de exceção devem ser transitórias e sempre aplicadas no respeito pelo Estado de direito e pela liberdade de informação.

Da acção da União Europeia dependerá, em boa medida, o resultado deste teste dificílimo que enfrentam as democracias liberais.

A União Europeia, depois de todas as hesitações iniciais, tem tomado medidas sem precedentes para proteger o sistema financeiro e o mercado único. Medidas insuficientes, uma vez que é preciso mutualizar a divida e criar um mega-fundo europeu para proteger todos os europeus, sem exceção e socorrer os países mais carenciados. A Alemanha e os seus preconceituosos aliados têm de assumir que é a hora da Europa. Como declarou Jacques Delors, a falta de solidariedade é um perigo mortal.

Mais, a União Europeia tem sido negligente no domínio da ajuda humanitária, o que é incompreensível, dado que esse foi um domínio privilegiado da sua ação internacional. É inadmissível que os apelos de Itália tenham ficado sem resposta. Perante as insuficiências da União Europeia surgem a China e mesmo a Rússia, com operações de socorro humanitário.

Os neofascistas esperam que a crise reforce o nacionalismo, o “salve-se quem puder”, que as fronteiras que hoje se fecham não voltem a abrir. Desejam também que se prove a inutilidade da União Europeia e das organizações mundiais para nos proteger.

Mas outro destino é possível. Desta pandemia pode sair uma Europa mais democrática e fraterna, liberta do dogma do neoliberalismo, mais determinada e eficaz na defesa da vida na casa comum que é a Terra. Em suma, que a comunidade das Nações democráticas da Europa volte a ser uma esperança para o Mundo.»

Álvaro Vasconcelos