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sexta-feira, 20 de novembro de 2020

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por estatuadesal

(David Dinis, in Expresso Diário, 19/11/2020)

Ao fim de duas semanas a ironizar no Twitter, Rui Rio foi à TVI para explicar o que aconteceu nos Açores, o que aconteceu com o Chega, o que aconteceu com o PSD ou mesmo com a direita. O exercício foi útil, embora ligeiramente confuso. Primeiro porque percebemos que Rui Rio responsabiliza o representante de Marcelo nos Açores pelo acordo. Segundo porque percebemos, em alternativa, que Rui Rio acha que o acordo foi bem feito - pelo que o subscreve na íntegra e sem pestanejar. Confuso? Se preferir a primeira versão, aconselho que entre no link acima. Se quiser perceber a segunda, é seguir por este texto, onde em apenas quatro frases conseguirá perceber melhor como Rui Rio o justifica.

“Estou de acordo, estou a dar a cara”
Depois de dizer que foi feita “uma barulheira” para “abafar a verdade”, depois de ter dito que “não há nenhum acordo nacional, tudo se passou na região autónoma”, e também que estava a “servir de advogado do PSD dos Açores”, Rui Rio acedeu que o novo presidente do Governo Regional, que por acaso foi vice-presidente da sua direção no PSD, teve a “cortesia” de o manter “informado” das negociações com André Ventura. E que o SMS de Ventura a negociar o comunicado final “foi mandado para mim” (para ele, Rui Rio). E , mais, que ele próprio concorda com todos e cada um dos pontos negociados - pelo que subscrevia o acordo. Ficou, assim, esclarecida a “barulheira”. Ou melhor, ainda não, porque é preciso entender com que pontos do acordo Rui Rio concorda. Siga para a frase seguinte.

“Há pessoas que podem estar com rendimento mínimo e que não trabalham porque não querem”
O líder do PSD explica assim porque aceita e subscreve a proposta do Chega para “reduzir a subsídio-dependência” nos Açores, sendo necessária por isso uma “maior fiscalização” do rendimento mínimo. E, disse ele, ficou convencido depois de, numa visita que fez a Rabo de Peixe, o concelho mais pobre do arquipélago, ouvir “um pescador” dizer que “as pessoas não querem vir ao mar”. Nos Açores, anote, 30% dos que têm direito a este apoio social têm menos de 18 anos. Muitos deles são mulheres. E ir ao mar, lembre-se, nem sempre tem “ir e voltar”.
A juntar a isto, Rui Rio diz concordar também com a exigência de Ventura de reduzir o número de deputados e de "combater a corrupção". Entendida a “barulheira”? Ainda não, é preciso perceber que tipo de partido entende Rui Rio que é o Chega. Siga para a frase seguinte.

Racista? Xenófobo? “O Chega é uma federação de descontentes”
“Existe pela negativa”, disse apenas Rui Rio, não entrando na discussão sobre as propostas de prisão perpétua, de castração química, as de confinar os ciganos, ou as (intermitentes) de proibir casamento entre homossexuais. “Não é bem um partido cimentado, o tempo vai obrigar o Chega a ser um partido pela positiva”. A convicção de Rui Rio de ontem é, porém, contrastante com o que o próprio Rui Rio assumia em junho, quando ainda exigia ao Chega que se moderasse: “Se o Chega continuar numa linha de demagogia, de populismo, da forma como tem ido, há aqui um problema, porque aí não é possível um entendimento com o PSD. Face ao que o Chega tem sido, descarto conversar”. Afinal, conversa. Entendida a “barulheira?” Talvez, mas ainda é preciso perceber o que mudou - se é que mudou - em Rui Rio, ou no Chega.

“Senão só o PS é que pode governar”
Durante a entrevista, os jornalistas da TVI confrontaram Rui Rio com as suas próprias palavras, ditas há dois anos num debate com Santana Lopes, onde afirmava que, se o PS vencesse eleições sem maioria, devia ser o PS a governar - “com acordos parlamentares”. Mas Rui Rio, que não se lembrava de ter dito isso, mudou de ideias. Seja para aplicar nos Açores (“ao fim de 24 anos de PS no poder? Não me peça tanto!”), seja para aplicar na Assembleia da República, depois das próximas legislativas (“o que defendo é que quem conseguir uma maioria parlamentar deve governar”). A razão, assumida pelo próprio: “Senão, só o PS é que pode governar”.

Entendida a “barulheira?”. Agora sim. Só falta uma pequena correção: se a direita, sem o Chega, conseguisse uma maioria parlamentar, também poderia governar - mas aí de cabeça levantada e sem espaço para “barulheiras”. Mas para isso, claro, era preciso conseguir convencer os eleitores de que tinha projeto e equipa que o merecessem. Ou então levar a sério aquela outra frase de Rio Rio, dita também ontem na TVI, mas já sobre o próximo Orçamento: “Não quero chegar a primeiro-ministro de qualquer maneira”. Ainda bem que se nota.

É ou não “a economia, estúpido”?

por estatuadesal

(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 19/11/2020)

Alexandre Abreu

Existe uma tese há muito dominante na política norte-americana segundo a qual as pessoas votam de acordo com as suas vantagens económicas imediatas, independentemente de outras considerações. Se a economia e os rendimentos estiverem a crescer, os eleitores tenderão a votar em quem já esteja no poder ou, se estiverem no final de um ciclo de dois mandatos, em quem mais confiem que mantenha essa trajetória. Se a economia estiver em crise, tenderão a punir quem está no cargo.

Este tese ficou associada à frase “É a economia, estúpido”, introduzida pelo diretor de campanha de Bill Clinton nas eleições de 1992 contra George Bush (pai). Nessas eleições, que ocorreram logo após a recessão do início dos anos 1990, a campanha de Clinton organizou a sua mensagem em torno dos temas económicos e foi bem-sucedida a afastar Bush da presidência após o primeiro mandato. O sucesso foi generalizadamente interpretado como resultado dessa opção tática, insistentemente martelada por esse diretor de campanha.

No fundo, esta tese diz-nos que as opções do eleitorado decorrem fundamentalmente dos interesses materiais mais do que de outras questões ideológicas, mas enfatiza os interesses materiais de curtíssimo prazo: a tendência de evolução imediata, digamos assim, em detrimento por exemplo dos interesses mais estruturais de classe ou de pertença a um grupo socioprofissional específico. É portanto uma espécie de materialismo elementar em versão de curto prazo. Obviamente simplista, mas ao mesmo tempo plausível e certamente consistente com pelo menos alguns desenlaces eleitorais.

Em contrapartida, na discussão em torno do resultado das eleições norte-americanas de 2016, aliás como no debate em torno das explicações do resultado do referendo do Brexit, as análises afastaram-se bastante desta ideia. As tentativas de explicação organizaram-se pelo contrário em dois grandes pólos, nenhum dos quais deu grande importância à trajetória económica de curto prazo: de um lado, as explicações em torno da dimensão cultural (o ressentimento das classes populares, dos meios rurais e das pequenas comunidades face às elites culturais urbanas e à mudança social acelerada); do outro, as explicações económicas, que sublinharam a dimensão material mas de longo prazo (o declínio económico das regiões que apoiaram esta viragem reacionária, no contexto do neoliberalismo e globalização). É um debate que nunca foi categoricamente resolvido, precisamente porque as duas dimensões se articularam entre si, independentemente de qual tenha sido o primum movens. Em todo o caso, e significativamente, a questão da trajetória económica de curto prazo não teve um papel relevante na discussão.

Tudo isto traz-nos até às eleições de 2020 e à interpretação dos seus resultados à luz deste debate. Logo no dia 4 de novembro, um inquérito realizado à boca da urna pareceu apontar para o regresso da “economia, estúpido”: quando questionados acerca de qual a questão que havia sido mais determinante para o seu voto, uma maioria relativa dos eleitores norte-americanos inquiridos (35%) referiu a economia, seguida a alguma distância pela desigualdade racial (20%) e pela pandemia de coronavírus (17%). E isso parecia favorecer Donald Trump: após um longuíssimo período de estagnação (praticamente desde os anos ’70), o rendimento mediano real (ajustado à inflação) dos agregados familiares norte-americanos cresceu significativamente durante a presidência Trump, melhorando a situação económica da maioria, pelo menos até à pandemia e recessão de 2020.

A discussão das causas, da sustentabilidade e da responsabilidade da administração Trump nesta evolução é complexa e não pode ser feita em poucas linhas. Entre outros aspetos, deve ter-se em conta que este aumento dos rendimentos, muito associado à redução do desemprego para mínimos históricos, antecede a chegada ao poder de Trump (remontando a 2014) e que foi propulsionada pelos défices orçamentais incorridos nos últimos anos apesar da economia estar em expansão (considerados insustentáveis pela maioria dos analistas e seguramente tendentes a aprofundar a desigualdade). Em todo o caso, podemos perguntar-nos: se a economia foi a questão mais determinante no momento do voto, se (pelo menos até à pandemia) a economia vinha evoluindo favoravelmente e se a maioria do eleitorado considerava Trump responsável por essa evolução, então porque é que Trump não ganhou?

Na realidade, Trump perdeu as eleições apesar da “economia, estúpido”: por causa da sua incompetência na gestão da crise pandémica, das suas responsabilidades na intensificação das tensões raciais e dos seus traços de caráter repulsivos. Na mesma sondagem realizada em Setembro em que uma ligeira maioria dos inquiridos norte-americanos afirmava confiar mais em Trump do que em Biden quanto à “economia e emprego”, a confiança em Biden excedia a confiança em Trump relativamente a todos os outros temas.

A resposta “economia” como tema decisivo na sondagem à boca da urna padece daquilo que em jargão económica é conhecido como endogeneidade. Isto é, em grande medida não antecedeu em termos causais o voto em Trump, mas resultou deste: era a escolha de tema que decorria logicamente de uma preferência eleitoral por Trump, dado que as outras opções, como a pandemia ou as tensões raciais, eram obviamente desfavoráveis a Trump. E isto independentemente de quais tenham sido os motivos mais profundos dessa escolha eleitoral, das ‘culture wars’ às questões económicas de curto e longo prazo.

A economia, e especificamente os interesses materiais individuais e imediatos, é certamente um determinante fundamental das escolhas políticas. Mas os analistas e estrategas políticos que adotem uma visão demasiado simplista destas determinações estarão eles próprios a ser “estúpidos”.

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

A culpa da extrema-direita não é da esquerda. É dos convertidos e facilitadores de direita

Posted: 18 Nov 2020 03:49 AM PST

«Parece um conto surrealista mas não é: apesar da derrota, em 2020 Trump teve mais dez milhões de votos que em 2016. Quatro anos de miserável, incompetente, boçal, esquizofrénica presidência Trump depois, dez milhões de pessoas gostaram tanto do que viram que correram a votar. Foi a prestação de Trump como Presidente que lhes ganhou o voto.

Acrescente-se aos recém-convertidos a base eleitoral republicana que permaneceu leal ao Presidente, não renegando adoração com os escândalos e subterrâneos morais em que Trump a cada semana se enredava. E concluímos: os eleitores de Trump votam na peça porque a apreciam. Gostam do conteúdo e deliram com o estilo.

Nos últimos quatro anos garantiram-nos que as direitas de índole trumpista eram culpa dos tresloucados desvarios da esquerda, da corrupção, das feministas e dos gays com a mania de sair da casca, de Hillary Clinton que era tão, mas tão corrupta que obrigou os pobres dos eleitores a votar num Presidente que encheu a administração de lealistas, incluindo filha e genro, e aproveitou o cargo para gerar clientela aos seus hotéis e resorts. Ora, é falso: votam na direita populista-reacionária porque gostam deste produto político. A nova direita não é uma reação à esquerda, é um movimento revolucionário por direito próprio.

E, como ficou escancarado com a não aceitação da derrota de Trump, nem valorizam a democracia. Preferem um líder autoritário defendendo os interesses exclusivos dos seus indefetíveis. Não se incomodam se for corrupto, desde que entregue resultados impondo os seus valores. O que lhes repugna é a convivência democrata, aceitar a decisão das maiorias e negociar consensos.

Foi uma descoberta que fiz desde 2016. Pessoas que considerava politicamente próximas de mim afinal deleitadas com um racista, boçal, misógino, com passado financeiro sinuoso. Almas que ingenuamente reputara de liberais de súbito apreciando um isolacionista e protecionista com discursos nacionalistas e ataques vis à liberdade de imprensa.

E as numerosas acusações de apalpões, assédios e violação? Davam os possíveis crimes como ‘questões da vida privada’ (obrigada pela posição política de considerarem mulheres objetos a serem apalpados a gosto) e, na verdade, mostravam-se deliciados com os abusos de Trump. Finalmente, um político punha as mulheres no seu lugar. (A misoginia de Trump tem um apelo tão grande que até os homens negros e latinos votaram com expressividade em Trump em 2020.)

Cidadãos deveras escandalizados com abusos autoritários e mentiras de Sócrates, porém sorridentes e babados com as falsidades compulsivas de Trump e a essência de animal feroz que não permitia escrutínio ao seu poder, que tentava ilimitado. Ateus de sempre, possuidores em tempos de pouco subtil escárnio pelo catolicismo, transformados em defensores da cristandade (daquela que nada tem que ver com fé, mas sim com clubismo cultural divisivo).

Nem só em Portugal esta mudança ocorreu. Anne Applebaum escreveu um livro este ano, O Crepúsculo da Democracia, contando a sua experiência com numerosos ex-amigos que saíram da direita democrática para abraçarem a extrema-direita, desde celebridades como a apresentadora da Fox News Laura Ingraham até jornalistas ou intelectuais, com influência mas menos conhecidos. Na versão inglesa tem o subtítulo O Falhanço da Política e [sintomaticamente] a Separação de Amigos.

Applebaum recorrentemente conta festas ou reuniões acontecidas nos anos 1990 ou no início dos 2000, frequentadas pelas pessoas da então a direita. E termina comentando que muitos desses participantes já não falam entre si. Atravessam a rua se avistam ao longe algum dos antigos amigos, para não se cruzarem. Os centristas e os extremistas já não se toleram mutuamente.

Parece a história da minha vida nos últimos anos, perplexa e horrorizada assistindo a quem tinha escrito blogues comigo ou tido almoços prazenteiros de discussão política, pessoas que me convidaram para projetos procurando uma direita aberta, cosmopolita e moderna, afinal defenderem – com gosto e convicção – ideias atentatórias da democracia e da dignidade da maioria dos seres humanos (entre os quais eu, por ser mulher).

Este movimento de radicalização existiu na direita em porções significativas, e não foi culpa da esquerda. Ainda não passou tempo suficiente para conseguirmos perceber de onde vieram as deslocações tectónicas. Alguns serão somente oportunistas. No PSD, a maioria estará nessa prateleira. Por alguma razão obscura, vinda da bolha em que os partidos tendem a viver e os afasta da realidade do eleitorado, convenceram-se que o país quer o regresso a uma moral salazarista, de gente séria, austera, deixando os vícios e os excessos para os degenerados ricos das grandes cidades.

Contudo, para muitos, o meu palpite vai na linha de não ter havido mudança. Simplesmente estão confiantes, nestes últimos anos, da admissibilidade de demonstrarem as suas ideias sem filtros.

Por outro lado, o espaço político da extrema-direita não engloba só o Chega. Inclui os que a promovem e os que não se lhe opõem. Há muitos adeptos da tal nova direita e confessos admiradores de Trump na IL. No CDS, Nuno Melo aspira a ser um herdeiro conservador-populista se a estrela de Ventura se apagar. No PSD, tantos admiram pouco secretamente Ventura. Todos, com ímpetos suicidários, têm-se esforçado por promover a extrema-direita. De tão enlevados com as novas/bafientas ideias, nem percebem que promover um concorrente que com eles dividirá um número finito de eleitores lhes retirará votos e deputados.

Neste momento vejo a direita em muito maus lençóis – moralmente e eleitoralmente. Mas só tem de se queixar de si própria. Por não ter tido líderes que conseguiram construir uma plataforma progressista e reformista de direita, optando ideologicamente por um regresso à moral e ordem social passadas, não terem entranhado a democracia. Podem gritar com a esquerda quanto quiserem: os pecados continuam próprios e de criação exclusiva da direita.

Como se resolve este imbróglio ideológico e moral da direita? Não sei. Desde logo porque a direita que se opõe à deriva extremista é reduzida. Tendo a pensar que somente com consequências muito dramáticas desta radicalização à direita, em algum país, se mudará a maré. Escalada de terrorismo, ditadura declarada, atropelos aos direitos humanos. E, por cá, se ficarem eleitoralmente em cacos o partido de extrema-direita e os partidos facilitadores. Para que renasça outra direita diferente.»

Maria João Marques

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Quem tem amigos “pretos” não pode ser racista?

por estatuadesal

(Pedro Tadeu, in Diário de Notícias, 18/11/2020)

A maneira mais fácil e, ao mesmo tempo, mais pateta de tentar apresentar credenciais antirracistas é dizer ao interlocutor, peito inchado a simular brio, cara frontal a dramatizar orgulho, esta banalidade disparatada: "eu até tenho amigos pretos!".

Tal frase normalmente fecha uma conversa onde o proclamador da camaradagem inter-racial na vida privada lista uma série de razões de queixa sobre a convivência social que se vê obrigado a manter com pessoas de ascendência africana: "abusadores", "ignorantes", "preguiçosos", "estúpidos", "barulhentos", "desrespeitosos", "macacos", "selvagens" e outras finezas semelhantes, ou bem piores, preenchem o prelúdio, o andamento, a melodia, o ritmo e a harmonia de um concerto de insultos que termina, em apoteose, num último compasso, com uma hipócrita ode à amizade entre raças.

Normalmente o branco que proclama a quem o quiser ouvir a amizade pessoal com negros é um racista, um horrível racista, um perigoso racista. Porquê?...

Em primeiro lugar, porque a própria ideia de classificar o círculo de amizades pessoal por raças é uma atitude racista.

Não passa pela cabeça de um branco português dizer "eu até tenho amigos brancos", pois não encontra nesse facto nada de "anormal" a registar, não encontra qualquer diferenciação entre si próprio e os outros brancos que justifique assinalar publicamente tal ocorrência.

Quando um branco começa a dizer que até (e esta palavra "até" sublinha a singularidade do facto) tem amigos de outras raças está a discriminar, está a separar um agregado em particular da unidade grupal que constituem todos os seus amigos, está a diferenciar esse conjunto de indivíduos não por serem melhores ou piores amigos, não por serem constantes ou ausentes do quotidiano desse círculo de camaradagem, não por serem de maior ou menor confiança. Eles são catalogados e separados do grupo de amigos do branco português apenas por terem uma cor de pele diferente. Isto é puro racismo.

Esta discriminação também abrange outros tipos de preconceitos étnicos bem como atitudes homofóbicas, xenófobas e, mesmo, políticas.

A declaração "eu até tenho amigos gays" é frequentemente ouvida sair da boca de homofóbicos. "Eu dou-me bem com ciganos" ou "nada tenho contra os judeus" são braços da mesma raiz de ódio e preconceito.

Até antirracistas e antixenófobos alimentam-se da mesma planta moral dos racistas para resolver debates políticos anticomunistas quando disparam o fatal "eu até tenho amigos comunistas", "tu és um comunista diferente dos outros" ou, pior, "o meu pai até foi comunista, mas...". Farto-me de ouvir isto...

Há neste tipo de frases um inevitável tom condescendente e paternalista, uma assunção de superioridade assassina do equilíbrio da relação entre os interlocutores destes diálogos.

A declaração de amizade que o racista branco concede a alguns negros tem subjacente um suposto ato de generosidade do primeiro para com o segundo: o branco racista tem amigos negros apesar dos defeitos que aponta à generalidade da "raça".

Esta é a mesma caridade classista das senhoras de sociedade que dizem às outras que se dão com "gente do povo", que frisam o gosto em lidar com "pessoas simples" e que concluem encontrar ali a "autenticidade" em falta nos círculos da alta burguesia.

Esta é a parte mais horrível do racismo, pois está diretamente ligada ao alimento geracional da estratificação social em exploradores e explorados, é um dos pilares do edifício da injustiça social.

Este racismo do branco português é aliás ridículo e um tiro no pé. Se for para os Estados Unidos da América, o branco português deixa de ser branco, passa a ser classificado como hispânico ou latino e está sujeito a ouvir da boca de um americano branco a frase assassina: "eu até tenho amigos latinos." De condição de explorador passa, num instante, à condição de explorado.

Finalmente, o racismo escondido atrás da frase "eu até tenho amigos pretos" é perigoso porque tenta ilibar o racista do seu racismo: mais do que desculpabilizar, procura-se justificar, racionalizar, defender. O autor desta frase, subliminarmente, afirma nada ter contra as pessoas com a pele de cor negra e, por nada ter contra elas, a sua argumentação e os insultos que profere não podem ser racistas e, por isso, são racionalizações, análises e pensamentos razoáveis, justos e objetivos.

A frase "eu até tenho amigos pretos" é um instrumento de propaganda racista construída para convencer pessoas não racistas a apoiar ideias racistas. Isto é perigoso.

Quando, numa entrevista na TVI, Miguel Sousa Tavares perguntou a André Ventura se ele tinha "algum amigo preto", o candidato presidencial, em vez de responder que não aceitava classificar as amizades pessoais por raças ou de protestar pela utilização da palavra "preto", respondeu que sim, que tinha vários e que até trabalhava com um.

A minha primeira reação foi lembrar-me de um quadro do humorista Dave Chapelle sobre um negro cego que se julgava branco, era racista, lutava pela supremacia branca e acabou líder do Ku Klux Klan. Quando, finalmente, percebeu que era negro, conformou-se, mas pediu o divórcio da mulher com quem esteve casado 19 anos "por ela ser uma amante de pretos".

A minha segunda reação foi que, pelas razões atrás expostas, a resposta dada à pergunta do jornalista demonstrou o racismo, talvez inconsciente, mas claramente assinalável, da forma de pensar de André Ventura e isto é mais importante e mais relevante registar do que discutir os méritos ou deméritos da entrevista de Miguel Sousa Tavares, como estou a ver por aí.

Já agora, deixo duas perguntas.

Primeira pergunta: Será que para não ser racista tenho de ter amigos negros, índios, asiáticos, mestiços e sei lá que mais?

Segunda pergunta: Porque é que nunca ouvi uma pessoa de pele negra dizer "eu até tenho amigos brancos"?...

Como se chega ao poder

Como se chega ao poder

Posted: 17 Nov 2020 06:56 AM PST

«"Não me sinto vocacionado para condicionar o meu projeto político de governação do Açores com aproximação ao populismo". A declaração foi proferida por José Manuel Bolieiro, em entrevista à RTP, na sexta-feira anterior às eleições regionais açorianas.

Eis a prova de que em política a verdade de hoje deixa de ser no dia seguinte. Com a tomada de posse do Parlamento dos Açores, o dia de ontem fica marcado pelo início de uma nova era na democracia portuguesa. Desta assembleia sairá um governo apoiado pelo Chega - o tal partido populista de que Bolieiro não equacionava aproximar-se.

Os sociais-democratas tinham demasiada sede de alcançar o poder, e o acordo nos Açores serve de ensaio aos anseios de Rui Rio: o líder do PSD nunca escondeu disponibilidade para um acordo com o Chega, desde que André Ventura se moderasse. E aí temos Ventura a desdobrar-se em entrevistas, a tentar mostrar não ser o demónio como o pintam. No entanto, sem fugir muito da matriz, sob pena do seu eleitorado - o que pretende ver os ciganos daqui para fora, os imigrantes na terra deles, os pretos em África, os pedófilos castrados - deixar de se rever em si.»