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sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Uma eleição inconstitucional?

Posted: 14 Jan 2021 03:45 AM PST

 


«A primeira vez que li a notícia avançada pelo PÚBLICO, a 23 de Novembro, de que as cidadãs e os cidadãos que contraíssem covid-19 nos dez dias anteriores às eleições presidenciais seriam proibidos de votar fiquei estupefacto. Seria mesmo verdade que os preparativos para que um acto eleitoral seja seguro em pandemia incluíam proibir o exercício de um direito constitucional como é o direito ao voto? Certamente os actores políticos iriam reagir e encontrar uma solução que protegesse um direito constitucional tão fundamental. 

Parece que estava errado. A medida avançou e está em vigor. 

Em resposta a um email que enviei em finais de Dezembro à Comissão Nacional de Eleições a questionar sobre esta questão, recebi uma arrepiante confirmação: “caso fique infectado [com covid-19] e seja decretado confinamento após dia 14 de Janeiro, não poderá votar”. Por coincidência, com 22 anos, estas serão as primeiras eleições presidenciais em que irei poder participar – mas parece que há uma hipótese demasiado real de ver esse meu direito negado. É algo contraditório o constante apelo ao voto por parte de tantos políticos – especialmente o voto jovem – quando não têm problema algum em ver esse mesmo direito negado. 

Apesar da expectável onda de indignações nas redes sociais em finais de Novembro, a medida continua em vigor. Silenciosamente avança a preparação de uma medida de supressão do voto. Nas estimativas da altura do artigo deste jornal, mencionava-se que poderia afectar aproximadamente 50 mil pessoas. Na altura o número médio de casos eram cinco mil, não dez mil. Faça as contas. 

Em que país vivemos onde consideramos aceitável vedar a milhares e milhares de portugueses o direito ao voto, consagrado na Constituição? Que democracia é esta? Uma democracia fraca, possivelmente a mostrar sintomas de uma outra doença: os da apatia política. 

Lei Orgânica n.º3/2020 

Na resposta que recebi da CNE, fiquei a saber que esta medida só se tornou possível devido à aprovação em Assembleia da República da lei orgânica n.º 3/2020, que vem possibilitar o voto antecipado aos cidadãos e cidadãs que contraiam o coronavírus, mas apenas se o confinamento seja decretado até ao décimo dia antes das eleições. É também a lei que diz que se contrair o coronavírus depois de dia 14 de Janeiro, será proibido de votar. Lembre-se desta lei. Lembre-se ainda que foram os deputados e deputadas desta legislatura que consideraram a mesma razoável. 

Na minha pequena edição de bolso da Constituição da República Portuguesa, fui procurar como seria possível uma lei orgânica sobrepor-se à Constituição. Não sendo uma pessoa da área de Direito, questiono-me seriamente: como pode uma lei orgânica sobrepor-se à Constituição? Fui relembrado que o estado de emergência em que vivemos permite a suspensão de determinados direitos. Mas a medida em questão trata-se de um caso inaceitável de subversão do intuito deste (recorrente) estado de emergência. 

Lendo o ponto 6 do artigo 19.º da nossa Constituição, aprendemos que a “declaração do [...] estado de emergência é adequadamente fundamentada e contém a especificação dos direitos, liberdades e garantias cujo exercício fica suspenso”. Estará prevista nesta declaração de estado de emergência a suspensão de direito ao voto para alguns? Admito que não a li. Se constar lá, é inadmissível. Se não estiver, não tornará esta lei orgânica inconstitucional? 

Deixo a questão para os especialistas. Mas não me venham argumentar que suspender o direito ao voto a milhares de portugueses é proporcional, razoável ou qualquer adjectivo que escolham para florear a situação. É inaceitável. 

Um cenário surreal: candidatos impedidos de votar

Serão as primeiras eleições na história do país em que um candidato ou candidata a Presidente da República poderá ser impedido ou impedida de votar nas eleições a que se candidata. Isso mesmo. Nada nos garante que nenhum dos candidatos não se encontre nessa situação. Já imaginou o surreal que seria? Afinal de contas, não há uns mais do que outros, os candidatos e candidatas têm que obedecer à mesma lei que vigora como toda a gente. 

Aproveito ainda para relembrar que tanto Marcelo Rebelo de Sousa como Ana Gomes já tiveram contactos de risco. O actual Presidente e novamente candidato tem estado esta semana em isolamento e também Ana Gomes teve de se isolar em período de pré-campanha. Mesmo num cenário de confinamento absoluto, é expectável e compreensível que outros candidatos ou candidatas possa contrair covid-19. O mesmo se aplica a pessoas a trabalhar em cada candidatura, a quem seria particularmente injusto ver o seu direito ao voto negado. Injusto e desnecessário, porque este cenário poderia ser prevenido. Com preparação. 

Outro cenário que me causa uma certa apreensão são os eleitores infectados, eventuais casos pontuais, que decidam desobedecer às ordens de confinamento. O que impede isto de acontecer? Nenhum agente de autoridade está a vigiar quem coloca o pé fora de casa em quarentena (e bem). Não será certamente a mesa de voto a verificar quem deveria estar em isolamento profiláctico e quem não. 

Portanto, como se fiscaliza esta medida? Não se fiscaliza, como de costume neste país. 

Para além de inconstitucional, a medida é ineficaz no seu objectivo. Em nada impede um eleitor absolutamente determinado a votar (e capaz de ignorar o seu papel enquanto agente de saúde pública) de sair porta fora e deslocar-se à sua mesa de voto. Se os deputados e deputadas tivessem o mínimo de respeito pelo eleitorado, teriam pensado em soluções que evitassem de modo eficaz que as pessoas com teste positivo tivessem de se deslocar para votar. O extraordinário é que a operação foi pensada: é o voto porta-a-porta. Mas talvez por motivos logísticos ou outros inimagináveis consideraram que seria razoável limitar este método de voto para quem só souber que está infectado até dia 14 de Janeiro. 

Ao leitor em casa pergunto: se ficar infectado depois de dia 14 e antes das eleições, irá de bom grado aceitar que não poderá votar? 

Eu certamente não o aceitarei de bom grado – mas cumprirei por um sentido de responsabilidade, que acredito que qualquer pessoa deve ter. Seria incapaz de colocar a vida de outros em risco. Mas fá-lo-ei profundamente revoltado por ver um direito meu negado – por falta de preparação daqueles que tinham e têm a responsabilidade de o preparar e que tiveram dez meses para o fazer. 

Sentir-me-ei roubado.» 

Mateus Carvalho 

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

Não fechar as escolas, não abandonar parte do futuro


por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 14/01/2021)

Daniel Oliveira

Com o encerramento das escolas as perdas na aprendizagem são profundas e duradouras, com efeitos muito diferenciados numa sociedade tão desigual como a nossa. Os alunos não têm as mesmas condições em casa e os pais não têm o mesmo capital cultural. Fechar os alunos em casa é substituir o elevador social por uma escada de incêndio. É deixar para trás a escola pública. E é tornar o teletrabalho numa tortura. Espero que o Governo compense a decisão com medidas de segurança. Para que, daqui a 15 dias, não se tenha de recuar.

O confinamento que começa amanhã é, no essencial, igual ao de março. É impossível ter sido a favor daquele e contra este. O outro só se justificava pela impreparação de tudo, sobretudo do Serviço Nacional de Saúde, e o desconhecimento sobre o vírus. Alguém que um dia se dedique a ir buscar o que então se escreveu, os pré-anúncios de colapso do SNS com incomensuravelmente menos casos do que agora, poderá verificar como o tempo varre a histeria do dia a dia. Agora a situação é grave. Não apenas aqui, como sabemos. Sobre a decisão tomada no Natal, já disse o que tinha a dizer. Só não disse do sorriso amargo que me causa ver partidos e personalidades que defenderam a abertura no Natal (e alguns até na passagem de ano) passarem para o lado oposto e apontarem o dedo admoestador. É o habitual.

A única vantagem de estarmos perante um segundo confinamento é o que aprendemos com o anterior. E uma das coisas que aprendemos é que o encerramento das escolas tem custos que perdurarão no tempo. Já me cansei de o escrever aqui e o meu colega de página, Luís Aguiar-Conraria, tem sido dos mais insistentes de todos os colunistas neste tema: as perdas na aprendizagem são profundas, demoram muito mais tempo a recuperar do que o tempo em que a escola está encerrada e, talvez o mais relevante, têm efeitos muitíssimo diferenciados entre alunos de famílias pobres e ricas. Os efeitos são determinantes numa sociedade tão desigual como a portuguesa.

Os alunos não têm as mesmas condições em casa. O mesmo espaço para estudar, a mesma ligação à Internet, computadores, quarto só para si. Nem sequer têm todos pequeno-almoço, para quem não saiba em que país vive. Mas, para o fosso que se cava, o mais importante nem é isso. É o capital cultural dos pais – dizem os estudos que o mais importante é o das mães. Uma criança ou adolescente que, estando em casa, é ajudada por pais que conseguem acompanhar o estudo, perde apenas um pouco do que o ensino presencial lhe dava. Uma criança ou adolescente que não tem isso perde quase tudo. Esta é, aliás, uma das razões porque sempre me opus aos trabalhos de casa – mas esse é outro debate ainda mais complicado. Fechar os alunos em casa é fechá-los na sua condição social. E substituir o elevador social, no pouco que a escola contribui para ele, por uma escada de incêndio.

Dirão: é só um mês e meio. Já foi um mês e meio no ano passado. Na realidade, juntando os dois confinamentos, seriam dois períodos destruídos. É muito. Para quem esteja no início da sua vida escolar, é determinante. E não vale a pena fazer comparações com países mais ricos e igualitários. O impacto não é o mesmo. A desigualdade não é a mesma. Mesmo que muitas pessoas, mas privilegiadas, teimem em ignorá-lo.

Mas fechar a escola também é fechar o maior radar para casos de violência, abuso, negligência e sofrimento extremo. Não só sobre menores, mas das suas famílias. É na escola, através do comportamento de crianças e jovens, que muitas vezes são detetados os problemas sociais e familiares graves. No anterior confinamento essas famílias ficaram isoladas do exterior. Sobre tudo isto, proponho que oiçam a entrevista que fiz, em abril do ano passado, com Ariana Cosme, doutorada em Ciências da Educação e professora na Faculdade de Psicologia do Porto, que trabalha em permanência com escolas TEIP e conhece, no terreno, as vítimas mais imediatas do primeiro confinamento.

Fechar as escolas é deixar para trás a escola pública, com menos condições do que as privadas para lidar com o ensino à distância. O efeito seria o que alguns até desejariam: a fuga para os colégios de alunos da classe média que ainda o pode fazer. Depois, lá viria o discurso que já se faz para o SNS: já que isto está tão mal, mais vale o Estado pagar aos privados para tratar do assunto. Ficando o público com as populações mais marginalizadas, em escolas de gueto. Essas, para quem o ensino à distância é uma miragem, o ensino privado nunca desejará.

Por fim, fechar as escolas é tornar o teletrabalho numa tortura. Mais uma vez, não será igual para todos. As famílias com casas maiores e vários computadores lá se safam. As outras voltam a viver um calvário que as esgota, com várias pessoas enfiadas na mesma sala, dificilmente com computadores suficientes para isso e sem tempo nem condições para estudar e trabalhar.

O resultado das escolas fechadas seria o que foi no ano passado: uma parte nada negligenciável de crianças e jovens privada de qualquer relação minimamente regular com o ensino formal. E uma boa parte dela sem qualquer apoio em casa que o compense.

Não sei se seria possível vacinar os professores na primeira fase. As vacinas são finitas e outros teriam de sair das prioridades. Não tenho dados que me permitam dizer se todos os que são considerados prioritários o são realmente. Sei que o Governo terá de reforçar a segurança dentro da escola. O que soube do que aconteceu no último desconfinamento não me pareceu animador. Mas parece que o grande problema é, antes de tudo, nas imediações das escolas, onde os jovens se juntam para conviver. A situação será, apesar de tudo, mais fácil de controlar. No meio do confinamento geral os ajuntamentos na rua são mais fáceis de impedir. Espero que o Governo compense esta decisão com medidas que não a tornem demasiado perigosa. Para que, daqui a 15 dias, não se tenha de recuar. Há vidas a proteger. Mas se nem tudo pode fechar, este é seguramente um dos casos. 

Ventura é pechisbeque político

Posted: 13 Jan 2021 03:55 AM PST



 

«O nosso Trump de bolso, André Ventura, é dado como habilidoso da política. Mas tal aura deve-se mais a basbaques que não param de lhe dar estatuto que (pelo menos ainda) não alcançou que à inexistente qualidade intrínseca da peça. 

Não tenho dúvida que o saudosismo do Estado Novo tem mercado eleitoral. Quer nas muito conservadoras elites do salazarismo, perdedoras no regime democrático, que dantes votavam no CDS. Quer (paradoxalmente) nos filhos das classes mais deserdadas do Estado Novo não apreciadoras de modernices – a falta de mundo e de escolaridade foi em todos os tempos e locais grande fonte de ilusões de superioridade nacionalista. Sucede em todas as democracias que destronaram ditaduras: há uma porção de pessoas que endeusam uma suposta era gloriosa passada. E é conhecida e estudada a propensão para o pensamento simplista, para a recusa da ambiguidade num mundo complexo, para as soluções fáceis de diabolizar um inimigo imaginário. 

No entanto também não tenho dúvidas que Ventura e o Chega são produtos políticos de qualidade duvidosa – e nem sequer só moralmente. São ambos pechisbeque político. Ventura é pouco mais que um imitador de Trump, ávido de atenção mediática como fim último da política, com tiradas cada vez mais indecorosas, e pretendendo criar uma realidade alternativa onde vivem encapsulados os seus indefetíveis. Sucede que Trump não foi excessivamente bem-sucedido – ganhou uma primeira eleição por uma conjunção de acasos infelizes e perdeu estrondosamente a segunda, com sucessão interminável de revezes e incompetências no entremeio. 

Ventura nesta campanha presidencial tem seguido o guião de Trump. No primeiro debate, com João Ferreira, interrompeu permanentemente e impediu que qualquer conversa existisse. Veio ainda reclamar que quer os votos bem contados – levantando, tal como Trump, espantalhos mentirosos sobre a fiabilidade dos resultados eleitorais. A falta de originalidade é gritante. 

Não é novo. Já há muito seguia os estratagemas trumpistas. A procura de polémicas com celebridades ou personagens do entretenimento e cultura, de forma a ganhar visibilidade. Já andou em despiques públicos com Filomena Cautela, Agir, José Castelo Branco. Tudo é uma encenação para enganar tolos com papas e bolos. Ventura até fala de si na terceira pessoa, assumindo implicitamente uma persona criada para o mercado político dos mais incautos. 

Há nisto uma vantagem para quem se lhe opõe: pode-se prever o que copiará a seguir. Além disso, Trump gerou uma quantidade avassaladora de anticorpos na sociedade americana que terminou com a derrota. Os anticorpos também se criam a cada encenação e palavra de Ventura, sempre ali ao nível do esgoto. As hostes democratas devem perceber isso e usar e agitar os ditos anticorpos. Votar contra a extrema-direita rasteira é um incentivo para muitos. 

Os temas de Ventura também vão de encontro aos fantasmas dos eleitores mais preconceituosos, em vez de falarem da realidade. Há esse perigo mortal, segundo as mulheres do Chega, que são as feministas. Nem se entende como as feministas não estão nas listas de organizações terroristas de todo o mundo. Por outro lado, o discurso securitário e punitivo é ridículo num dos países mais seguros e pacíficos do mundo – a nossa nódoa criminal é precisamente na violência doméstica. 

O RSI é uma prestação com valores irrisórios, tanto de dotação global como dos recebimentos individuais. Os poucos milhões que os ciganos recebem não valem mais que cinco minutos de atenção, sobretudo tendo em conta as grandes clientelas sanguessugas de impostos, algumas aliadas de Ventura. Mesmo os que consideram que os ciganos se excluem, ou se arrepiem com o tratamento dado às mulheres na comunidade (aqui incluo-me), terão de concordar que a forma de dar oportunidades às novas gerações é educá-las e não estigmatizar. 

Por muito que Ventura se esforce, e os trolls das redes sociais se multipliquem em insultos e contas falsas, a realidade impõe-se sempre à narrativa política fantasiosa. Não convence ninguém que vivemos numa crise de segurança pública pela inexistência de prisão perpétua (ou de cortar mãos a ladrões, inovação saudita recente de Ventura), os resultados das eleições são fraudulentos ou que pagamos muitos impostos por causa dos ciganos. Os problemas reais – os hospitais e centros de saúde, o emprego e o desemprego, transportes públicos, escolas – têm a mania irritante de se sobreporem às ameaças imaginárias. 

Ventura imita igualmente Trump na opacidade. O financiamento do Chega, em alguma parte já revelado em reportagens de Miguel Carvalho para a Visão, coloca o partido na mão de meia dúzia de empresários ricos. Não admira. Ventura passou rapidamente de antissistema para desejoso de ter tachos num eventual governo de direita. Não quer destruir nenhum sistema – quer que os seus o explorem. 

Inevitavelmente, este caldo apela a pessoas de fraca qualidade. Ou, na novilíngua de Ventura, de ‘pessoas de bem’. A mim essas ‘pessoas de bem’ do Chega costumam enviar-me mensagens com abundantes e carinhosos emojis em forma de fezes, a cada vez que critico o seu deus. Há semanas, uma encantadora senhora ‘de bem’ apoiante do Chega, certamente muito católica, desejou-me que morresse. 

Dentro do Chega, e segundo as reportagens que Pedro Coelho tem feito para a SIC, toda a gente se grava (e se denuncia mutuamente à comunicação social), os ódios são florescentes, já houve purgas e leis da rolha à boa maneira estalinista. O grande amigo de Ventura, Luc Mombito, envia mensagens insultuosas e sexualizadas a uma menor, de seguida justificando-se com o racismo que o tem como alvo – apesar de fazer parte do partido que diz não existir racismo em Portugal. 

Não fora o perigo real de abandalhamento e desgaste das instituições democráticas, até seria (em teoria, volto a ressalvar) divertido vermos tal grupo de deploráveis e impreparados num governo. Porque os produtos políticos tóxicos como o Chega (e o movimento trumpista) têm em si a génese da sua destruição. O ódio e o ressentimento que cultivam para os alvos de fora inevitavelmente contaminam o interior. Quando se cultiva ódio, o ódio espalha-se por todo o lado e vira-se contra os criadores. Vimos tal qual na permanente guerrilha dentro da Administração Trump. E a realidade alternativa que criam, para alienar eleitores, às tantas explode-lhes nas mãos. Para Ventura, como para Trump, o espalhafato mediático será uma maldição.» 

Maria João Marques 

Eleições presidenciais e masoquismo

por estatuadesal

(Carlos Esperança, 13/01/2021)

Repetirei até à exaustão que Marcelo é um democrata, que fez um logo caminho desde a sua juventude, e que, por ele ou com ele, não haverá outra ditadura. Vacinou-o a longa e próxima convivência com os próceres da ditadura fascista.

A comparação com o antecessor, a inteligência, cultura e simpatia, e a capacidade ímpar de se insinuar na opinião pública amoleceu aos adversários a autocrítica, e embotou-lhes o discernimento.

Marcelo é o candidato da direita democrática, aliás, mais à direita do que, por exemplo, Ursula Von der Leyen ou Angela Merkel. Seria injusto julgá-lo pelas cartas a Marcelo Caetano, mas é preocupante que se esqueça o papel maquiavélico na eleição de Cavaco Silva para líder do PSD, de onde saiu para PM, e, depois, na preparação da candidatura do mesmo salazarista para PR, na vivenda de alguém, hoje pouco recomendável.

Os eleitores que se dizem de esquerda, com candidatos para todas as sensibilidades, não podem capitular na coerência, ética e dignidade, votando num adversário. Quanto maior for a percentagem de votos que lhe for atribuída, pior será o seu mandato. O objetivo de Marcelo é deixar a direita no poder, ainda que seja uma direita pior do que a dele.

Basta ver a forma como está a comportar-se em campanha, para prever como decorrerá o segundo mandato. A erosão da esquerda, ainda não visível nas sondagens, já começou e o ideário de um PR beato e de direita, incapaz de se conter no estrito cumprimento das suas funções, há de conduzir o País numa viragem tão grande que pode não ter regresso.

Quem, sendo de esquerda, vota num candidato de direita, não tem força anímica para se opor ao regresso da extrema-direita. Marcelo nunca será um perigo para a democracia, mas será o obreiro do caminho que a porá em perigo.

É de temer a vocação suicida de grande parte do eleitorado que se reclama de esquerda, incapaz de ver no propagandista de si próprio, num comunicador de eleição, ungido dos média, o coveiro da esquerda.

Parece ser a vocação suicida, a que despreza as medidas sanitárias quanto à pandemia, a mesma que conduz ao voto no candidato alheio e artista em propaganda. 

O debate Vitinho, ou o problema da seca

bate Vitinho, ou o problema da seca

por estatuadesal

(Pedro Santos Guerreiro, in Expresso Diário, 13/01/2021)

Pedro Santos Guerreiro

As próximas eleições podem resultar num grave problema de abstenção, enfraquecendo a democracia e fortalecendo candidatos radicais. Como se combate a abstenção com um debate tão maçador como o que pôs (mas nem opôs) os sete candidatos à Presidência? Neste teste, negativaram todos. Numa campanha quase sem campanha, pior que o desperdício de combate político é o tédio. Este tédio. Este bocejo. Se anda tudo a dormir, ninguém acorda.

Há vários tipos de seca: a permanente, a sazonal, a variável e a dos debates eleitorais a sete. Talvez o frio de rachar em estúdio tenha atrofiado os candidatos, mas a questão não está na baixa temperatura, está na ameaça de uma abstenção que seja tão assustadora nas eleições que relegue a possível subida do Chega para escândalo secundário. Até porque debate não houve nenhum. Houve duas horas de Vitinho, de cantiga de adormecer para irmos para a cama cedo.

Não é uma questão menor. Vitorino Silva foi o único a falar nisso, quando colocou a questão de legitimidade do voto se as eleições tiverem menos de 50% de participação, como é por exemplo obrigatório nos referendos para que sejam vinculativos. Há anos que politólogos colocam precisamente a questão da legitimidade do resultado de umas eleições se a abstenção ultrapassar os 50%. Tipicamente, essas análises referem-se a legislativas. Mas abstenção já foi superior a 50% nas duas últimas presidenciais (51,3% em 2016 e 53,5% em 2011). Com um país em confinamento e sem campanha que se veja, o alarme é se o risco de uma abstenção recorde não alarmar ninguém. Com tudo o que isso implica, do ponto de vista da legitimidade democrática mas também do enviesamento dos resultados, pois os partidos mais radicais tendem a ser favorecidos, por terem um eleitorado naturalmente mais mobilizado.

Não foi neste debate a sete que houve mobilização. Ou esclarecimento. Ou o que quer que fosse. O debate foi um enorme bocejo. E em grande parte por causa de Marcelo.

QUANDO MARCELO DESPREZA

O único momento em que houve provocação foi na ronda sobre a relação que deve existir entre um Presidente e um governo, se deve apoiá-lo por vocação ou criticá-lo por impulso. Nessa ronda, todos criticaram Marcelo por ter andado ao colo com o governo. Pela busca de popularidade, pelo afastamento da procuradora-geral da República e do presidente do Tribunal de Contas e por não ter imposto acordo escrito aos parceiros do governo (Mayan), por se reunir com o diretor da PSP durante o caso SEF (Marisa), por precisar de Costa e se embalarem um ao outro (Vitorino), por ser o candidato do PS, salvar a face a Centeno no caso CGD, permitir a lei das expropriações, permitir quatro mil taxas, defender o ex-ministro da Defesa no caso Tancos e não derrubar o governo nos incêndios de 2017 (Ventura), por não ter uma palavra para os trabalhadores da refinaria de Matosinhos mostrando ter os afetos “mal distribuídos” e desproteger os jovens na entrada no mercado de trabalho (João Ferreira), por não usar as Forças Armadas no combate à pandemia, representar a estabilidade do bloco central de interesses e estar pronto para trazer de volta a sua direita num segundo mandato (Ana Gomes). E a que acusações respondeu Marcelo, a quem foi dado um tempo “generoso” de resposta? A nenhuma. Despachou a resposta em dois minutos. Ignorou os candidatos e falou “aos portugueses”, que “percebem”, que “estabilidade está ligada a compromissos”.

Este desprezo é tático, não é soberba. Marcelo sabe que qualquer resposta amplificaria a crítica e potenciaria a polémica. Não passou cartão a ninguém. “Prometi [estabilidade] há cinco anos e cumpri. Ninguém foi defraudado”, porque toda a gente sabia no que estava a votar. E depois listou as crises, para mostrar quão difícil era a obra: a bancária, a saída dos défices excessivos, os fogos, os sindicatos radicais, a pandemia, a crise económica… “tudo isso recomendava um presidente que não fosse de fação mas que aproximasse (…), o PR não cria crises onde já há crises, não cria vazios onde não há alternativas.” Debate encerrado.

Marcelo foi o vencedor da época de debates porque adotou uma estratégia certa para cada um deles. Neste, a estratégia era ser superior aos outros, não lhes responder, mostrar-se como sendo o único presidencial.

A NOTÍCIA: ELEIÇÕES MANTÊM-SE

O resto não teve lume nem faúlha. O país está muito habituado a eleições antecipadas mas não a eleições adiadas. Vamos manter a data das eleições, mesmo em confinamento? A notícia veio daí. Sim porque tem de ser, sim porque nenhum partido defende uma revisão constitucional à pressa, sim mesmo que seja mau para todas as candidaturas, sim mesmo sabendo que a abstenção deverá subir, sim mesmo se adaptar agora a campanha é sabê-la prejudicada à partida. Ninguém destoou. Só houve quem debatesse… com o governo: fê-lo André Ventura (“o governo não preparou devidamente a eleição”) e Tiago Mayan Gonçalves (“a incapacidade de previsão deste governo trouxe-nos a um ponto de não retorno, agora vamos ter de fazer as eleições nas condições que temos”), enquanto Ana Gomes responsabilizou o Parlamento (“não legislou a tempo e horas para permitir o voto por correspondência por emigrantes”).

O debate prosseguiria com participação de privados na saúde. Eis como: João Ferreira ataca empresas privadas, Mayan Gonçalves ataca toda a esquerda, Ana Gomes ataca Marcelo, Marcelo defende-se, Marisa atacou o governo de direita PSD/CDS, Ventura ataca Ana Gomes e concorda com Vitorino Silva, que este diz que “se eu estivesse a morrer não ia escolher um médico do público ou do privado, eu queria era ser salvo”. E foi isto. Ah: e todos defenderam melhores condições salariais para profissionais de saúde e mais investimento para o SNS.

No fim ainda se falou de crescimento económico, mas tirando as visões ideológicas Estado contra privados, ou direita contra esquerda, ou liberais contra os que os chamam neoliberais, pouco a reter e nada a derreter.

Um debate a sete ou é tudo à molhada ou é tudo com as barbas de molho. O receio do arruaceiro Ventura é tão grande que não houve sequer diálogo, quanto mais debate, houve sete entrevistas paralelas. O problema não está só no formato, está nos candidatos. Numa eleição como esta, quase sem ações de campanha, os debates televisivos são os palcos principais.

Aqui, os candidatos não foram todos iguais mas nenhum foi diferente da mediania e da repetição. Suponho que as audiências foram caindo ao longo das duas horas. Receio que a queda continue até uma taxa de abstenção enorme. Não percebo como ninguém está aflito com isso. Mas, na verdade, a resposta até depende de si. Interesse-se, desconfine-se, pegue na esferográfica e vá votar.