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quinta-feira, 17 de junho de 2021

 

Desconfinar a democracia

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 17/06/2021)

Daniel Oliveira

O pingue-pongue entre Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa segue o guião de muitas polémicas mediáticas: jornalistas vão pressionando para respostas e contrarrespostas para alimentar uma novela, queixando-se, no fim, do triste espetáculo. Terá a única vantagem de ficarmos a saber que estão em desacordo, o que não tem nada de lamentável. Mas é insistir na política chiclet: mastiga durante uns dias e deita fora.

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Dar relevo ao facto de Marcelo ter dito que, “por definição, o Presidente nunca é desautorizado pelo primeiro-ministro, porque quem nomeia o primeiro-ministro é o Presidente, não é o primeiro-ministro que nomeia o Presidente” é alimentar a novela. Se o Presidente respondia a uma pergunta assim formulada pela jornalista (se tinha sido “desautorizado pelo primeiro-ministro”), faz uma correção factual de um erro da jornalista, não do primeiro-ministro. Mesmo que tenha segundas intenções, e com Marcelo tem quase sempre, não me parece que tenham grande profundidade política.

Aquilo a que dou mais relevância no que foi dito pelo Presidente são duas coisas que precisavam de ser ditas.

A primeira é a garantia de que, do que dele depender, as coisas não voltam atrás. O primeiro-ministro quis corrigir-lhe a pontaria, dizendo que ninguém pode garantir que o desconfinamento não recua. Só que, do Presidente da República só depende a declaração do Estado de Emergência. É uma bomba atómica que, perante as sucessivas renovações com debates burocráticos no Parlamento, se banalizou. É um favor que Marcelo faz à democracia tentar recuperar a sua excecionalidade. E isso passa por cumprir o que, no fundo, nos foi prometido: a vacinação serve para regressamos à normalidade. Mesmo continuando a exigir cautelas até chegarmos à imunidade de grupo - com a preocupante subida dos números em Lisboa e Vale do Tejo, por exemplo. A não ser, claro, que a vacina completa se revele ineficaz perante uma nova variante. Por agora, não está em cima da mesa.

É evidente que, para o Governo e para todas as autoridades, não contar com bomba atómica obriga a voltar a usar armamento convencional. Isso exige mais organização e é bom que o Governo e restantes serviços do Estado o saibam. Haverá sempre quem não se incomode com a eternização da excecionalidade constitucional. Só que ela também tem riscos, de outra natureza, que o olhar mais geral de um político não deve ignorar.

Este olhar geral leva-me à segunda afirmação do Presidente: que compreende a posição dos especialistas, que eles têm de ter um papel fundamental de alerta à população e às autoridades para o risco, mas que não governam o país. E seria melhor que os seus avisos fossem menos cacofónicos e que não se voltasse a instalar a ideia que a melhor forma de aconselhar um governo é fazer pressão na comunicação social, criando altos e baixos de ansiedade coletiva e banalizado o discurso do medo que, deviam saber, pode ter efeitos nas populações exatamente opostos aos pretendidos.

Os “especialistas”, diz um jornal, ficaram incomodados, porque, sendo isto verdade, também não é o Presidente que acompanha os doentes nos cuidados intensivos. Primeiro, os “especialistas” não são uma entidade uniforme, como costumam ser tratados pela comunicação social. Há-os para todos os gostos. Depois, sendo verdade que Presidente e Governo não têm contacto direto com o combate à doença, os especialistas nesta pandemia também não têm contacto direto com os problemas de saúde mental que se agravam, com os efeitos sociais do confinamento, com as falências e o drama do desemprego e com milhares de outras componentes desta crise. Nem direto nem, em muitos casos, aproximado. É natural, são especialistas. É por isso que devem ser ouvidos pelo poder político: dão-lhes parte da informação necessária para se tomarem decisões.

É por isto que não governam: não têm informação com a abrangência necessária para fazerem sínteses e tomarem decisões olhando para o problema no seu conjunto. Nem a autoridade, já agora. No fim, não serão avaliados pelos cidadãos por todas as consequências de decisões tomadas. Serão os políticos, como se vê na polémica dos e-mails na CML.

O Presidente fez bem em preparar o regresso à normalidade institucional. As bombas atómicas acabaram e quem tem a legitimidade, os instrumentos e olhar geral sobre a crise é que decide. A melhor síntese do desconfinamento da democracia.

 Passaporte para o atalho

Posted: 16 Jun 2021 03:49 AM PDT

 


«Apesar dos sustos e das variantes, o mundo rico prepara-se para integrar a covid na normalidade das nossas vidas como integramos tantos outros riscos. Mesmo sem o levantamento de patentes, o processo de vacinação avança e a imunidade de grupo está a poucos meses. Como parte do regresso à normalidade, vem aí o Certificado Digital Europeu. Só que, ao criar o passaporte verde, a Comissão Europeia não o regulou. Cada país faz o que entender, com os critérios e medidas que quiser.

Para além de muitas aberrações e de uma total imprevisibilidade, a pandemia passou a ser usada como instrumento de competição económica e arma política. E em vez do regresso de fronteiras com regras conhecidas, vivemos ao gosto da arbitrariedade. Schengen sobrevive para os que vêm de fora. Morreu para a liberdade de movimentos internos, serve como muralha para manter a muralha externa. E os que estão para lá dessa muralha foram os principais prejudicados pela defesa do negócio das farmacêuticas, que tenderá a piorar.

O Parlamento Europeu aprovou uma recomendação para a Comissão Europeia fazer o que se recusa, por preferir defender os interesses de um país produtor de vacinas: a suspensão temporária de patentes, que a lei internacional permite e que foi recomendada pela OMS, ONU, Médicos Sem Fronteiras, dezenas de especialistas e prémios Nobel. Os países ricos safaram-se sem este passo, à custa do resto do mundo. Os EUA têm mais de metade da população com pelo menos uma vacina, a Europa mais de um terço. Mas África está pouco acima dos 2%, com vários países próximos de zero. Não tendo garantido o levantamento da patente e as condições para uma vacinação global, o confortável condomínio terá de fechar ainda mais os portões, instalar câmaras e contratar vigilantes, em vez de cuidar do bairro. Este passaporte acabará por servir para isso.

Nada contra a sua existência. Quando viajamos de e para vários países é obrigatório um certificado de vacinação para a febre amarela, por exemplo. Mas isso só é aceitável quando todos se podem vacinar. E só não está a ser toda a gente vacinada porque se escolheu privilegiar o negócio de meia dúzia de multinacionais fortemente subsidiadas pelos Estados. Uma coisa é estar disponível para limitar liberdades em nome da saúde pública, outra é fazê-lo para proteger os lucros estratosféricos de acionistas a quem saiu, sem qualquer risco, a sorte grande.

Ouvi Marques Mendes defender um passaporte nacional, como existe em alguns países. Ele permitiria aos vacinados entrar em estabelecimentos (ou partes deles) vedados aos que não o estão. Apesar de não me agradar, poderia aceitar esta ideia quando a vacinação estiver terminada, se houver muitas pessoas a recusar a vacina, o que não é provável. Quem escolhe não participar no esforço coletivo porque quer entregar os riscos aos outros que lide com as suas escolhas. Mas, até a vacina ser um direito acessível a todos, isto é impensável. Para o que é relevante, que não pode ser tudo, há os testes.

É assustador percebermos até que ponto estamos disponíveis para viver em sociedades de castas sanitárias. As distopias estão, por estes tempos, mais perto do comentário político do que da ficção científica. Todos temos pressa de ver a economia a andar. Mas é bom ter cuidado e saber para onde nos levam os atalhos.»

quarta-feira, 16 de junho de 2021

 


O PR e a irreflexão de Marcelo

por estatuadesal

(Carlos Esperança, 15/06/2021)

O PR não governa, mas Marcelo, na sua obsessão mediática, tudo faz para fingir que as decisões boas são da sua autoria e as más do Governo.

Descoroçoado com o estado da sua direita, enquanto a fascista sobe, sabe que é ele a única oposição credível, que se esforça por manter, enquanto não aparece um líder a galvanizar as hostes que deram maiorias a Cavaco e levaram Passos Coelho a S. Bento.

Marcelo sabe de tudo, comenta tudo, e está simultaneamente na rádio, nos jornais, nas televisões e redes sociais, num excesso alheio às prerrogativas da função e aos estragos que faz entre banhos de multidão, da Guiné à Madeira, de Belém ao resto do Mundo.

Que diga da seleção de futebol, onde não joga, “nós somos os melhores do mundo”, não prejudica ninguém, mas que afirme perentório que, “comigo o país não volta atrás, no confinamento”, insistindo “comigo nunca mais”, revela uma insensatez, que nenhum virologista subscreve, e obriga António Costa a prevenir o país contra os riscos que ainda corre.

O narcisista Marcelo, sem competência para avaliar a pandemia, não se conformou com a sensatez do PM, sobre quem recaem todas as responsabilidades, e não hesitou, ele que não comenta assuntos internos no estrangeiro, a advertir, autoritário, a partir da Hungria, onde se deslocou em viagem de lazer, “Por definição, o Presidente nunca é desautorizado pelo primeiro-ministro. Quem nomeia o primeiro-ministro é o Presidente, não é o primeiro-ministro que nomeia o Presidente”, num exagero de quem dá posse a quem depende da AR.

Não sei se Marcelo, de quem há muito se espera a encomenda de vichyssoise para o PM, tem consciência de que a pressa de levar a direita ao poder pode comprometer o futuro do país, mas é tempo de ser avaliado com isenção na pertinaz intromissão nas funções do Executivo.

Não falta quem atire setas ao Governo nos arraiais da direita antidemocrática.

As pessoas que odeiam Abril

Posted: 15 Jun 2021 03:43 AM PDT



 

«Tem sido tema de debate as celebrações dos 50 anos do 25 de Abril, que agora conheceram o seu comissário. À direita, houve grande alarido pela escolha de Pedro Adão e Silva. Parece-me muito pouco interessante discutir os detalhes das comemorações, assim como a escolha que foi feita. Muito mais profundo é o debate acerca da reacção.

Na verdade, desde que a Iniciativa Liberal e o Chega ganharam representação parlamentar, as celebrações anuais do 25 de Abril têm sido objecto de ataque, seja à festa em si, seja à relevância da Revolução como evento benéfico para Portugal.

A Iniciativa Liberal expressa, essencialmente, o seu fascínio pelo 25 de Novembro, não aceitando dissociar a democracia que temos dessa data posterior. Já o Chega vai mais longe e diz que a República que emergiu do 25 de Abril (e do 25 de Novembro) é uma República podre e corrupta, e que temos que avançar para uma nova era.

No PSD e no CDS, que são partidos da fundação da democracia, as críticas tendem a não ser tão explícitas, embora existam há muito (só vocalizadas na autonomia madeirense, por Alberto João Jardim). Na prática, à medida que o tempo passa, fica cada vez mais fácil, para aqueles que nunca gostaram do 25 de Abril, criticá-lo.

É fundamental entender que o 25 de Abril não foi uma transição pacífica de um modelo político para outro. O 25 de Abril foi uma revolução, foi um golpe de Estado, um golpe militar praticado por jovens capitães (não por Marechais instalados) que, só depois, obteve alargadíssimo apoio popular. Isso significa que o 25 de Abril foi a vitória de muitos, mas a derrota de outros.

Acontece que esses que perderam ainda existem, têm descendentes e nem sequer são poucos. Se somarmos todos os que estavam bem instalados no regime ditatorial (seja em funções públicas – de PIDE a parlamentares, passando por magistrados – seja nas grandes empresas amigas do regime), os que tinham vastas propriedades em território nacional, ou nos territórios ultramarinos, e todas as pessoas que perderam as suas posses, e até o seu país, com a descolonização, vamos apanhar muitíssimos perdedores de Abril.

Há muitos portugueses que ficaram pior depois desse dia. É entre essas pessoas que mais encontramos aqueles que nunca gostaram da data, nunca a celebraram, mas foram mantendo o seu ressentimento mais escondido. À medida que o tempo passa, e o “ar do regime” vai mudando, esses ressabiamentos ficam mais livres para emergir.

De facto, é nestes últimos tempos que temos visto muita gente ligada aos perdedores de Abril a aproveitarem tudo para minimizar os ganhos da Revolução, argumentando que a Revolução conduziu a um regime democrático, mas corrupto e pobre, ou tentando suavizar o fascismo com narrativas de que, afinal, o fascismo nem era assim tão mau, que até alfabetizou as crianças e fez o PIB convergir com a Europa.

O 25 de Abril fez-se para acabar com a guerra colonial (a morte de muitos jovens e o sofrimento vão de muitas famílias) e implantar uma democracia liberal, e teve o apoio popular imediato porque o regime estava podre, pobre e era imbecil.

Aliás, comparando a evolução do desenvolvimento humano de Portugal, durante a ditadura e em democracia, torna-se cristalino o quanto a ditadura foi má para a esmagadora maioria dos portugueses, e a democracia benéfica para a maioria, nomeadamente para os mais pobres e para uma classe média que, entretanto, se formou.

Mas há aqueles que tinham beneficiado mais se o regime tivesse continuado ditatorial e tivesse havido uma transição gradual para um regime de democracia musculada (que muito agradaria aos que odeiam Abril).

Se é verdade que muitos donos de grandes empresas do Estado Novo recuperaram o seu poder a partir dos anos 80/90 (a tempo de perpetuarem a nossa fragilidade económica – veja-se o caso de Ricardo Salgado e da família Espírito Santo), outros há que não conseguiram tal recuperação, pelo que estariam melhor se nunca tivesse existido o 25 de Abril.

Quando se pretende celebrar os 50 anos do 25 de Abril, obviamente, está-se a celebrar o regime que existe, o Portugal que existe, a democracia que existe e, sim, os que venceram com Abril (que são a grande maioria dos portugueses). Não é, portanto, de espantar que os que perderam não sejam grandes fãs da festa.»

Gabriel Leite Mota 

terça-feira, 15 de junho de 2021


Quinze teses sobre o partido-movimento

por estatuadesal

(Boaventura Sousa Santos, in Outras Palavras, 14/06/2021)

Garotas chilenas executam, no final de 2019, a coreografia El violador eres tu. Ela espalhou-se pelo mundo, recriada em centenas de cidades.O feminismo, principalmente o muito jovem, foi parte essencial da insurreição chilena que levou à convocação de uma Convenção Constituinte, cujos trabalhos começam nas próximas semanas

1. Não há cidadãos despolitizados; há cidadãos que não se deixam politizar pelas formas dominantes de politização, sejam elas partidos ou movimentos da sociedade civil organizada.

Os cidadãos e as cidadãs não estão fartos da política, mas sim desta política; a esmagadora maioria dos cidadãos não se mobiliza politicamente nem sai à rua para se manifestar, mas está cheia de raiva em casa e simpatiza com quem se manifesta; em geral, não tem condições para aderir a partidos ou participar em movimentos ou interesse em o fazer, mas quando vem para a rua só surpreende as elites políticas que perderam o contacto com “as bases”.

2. Não há democracia sem partidos, mas há partidos sem democracia.

Uma das antinomias da democracia liberal do nosso tempo reside em ela assentar cada vez mais nos partidos como forma exclusiva de agência política, ao mesmo tempo que os partidos são internamente cada vez menos democráticos. Tal como a democracia liberal, a forma partido-tradicional esgotou o seu tempo histórico. Os sistemas políticos democráticos do futuro têm de combinar a democracia representativa com a democracia participativa a todos os níveis de governação. A participação cidadã tem de ser multiforme e multicanais. Os próprios partidos devem ser internamente constituídos por mecanismos de democracia participativa.

3. Ser de esquerda é um ponto de chegada e não um ponto de partida e, portanto, prova-se nos fatos.

A esquerda tem de voltar às suas origens, aos grupos sociais excluídos, que ela esqueceu há muito tempo. A esquerda deixou de falar ou de saber falar com as periferias, com os mais excluídos. Quem fala hoje com as periferias e com os mais excluídos são as igrejas evangélicas pentecostais ou os agitadores fascistas. Hoje, o ativismo de esquerda parece limitar-se a participar numa reunião do partido para fazer (quase sempre ouvir quem faz) uma análise de conjuntura. Os partidos de esquerda, tal como existem hoje, não são capazes de falar com as vozes silenciadas das periferias em termos que estas entendam. Para mudar isso, a esquerda, ou melhor, as esquerdas devem ser reinventadas.

4. Não há democracia, há democratização.

A responsabilidade da esquerda reside em que só ela serve genuinamente a democracia. Não a limita ao espaço-tempo da cidadania (democracia liberal). Pelo contrário, luta por ela no espaço da família, da comunidade, da produção, das relações sociais, da escola, das relações com a natureza e das relações internacionais. Cada espaço-tempo convoca um tipo específico de democracia. Só democratizando todos os espaços-tempo é que se consegue democratizar o espaço-tempo da cidadania e da democracia liberal representativa.

5. O partido-movimento é o partido que contém em si o seu contrário.

Para ser um pilar fundamental da democracia representativa, o partido-movimento deve ser construído por processos não representativos e antes participativos e deliberativos. Nisto consiste a passagem da forma partido-tradicional para a forma partido-movimento. Consiste em aplicar à vida interna dos partidos a mesma ideia de complementaridade entre democracia participativa/deliberativa e democracia representativa que deve orientar a gestão do sistema político em geral. A participação/deliberação respeita a todos os domínios do partido-movimento, da organização interna à definição do programa político, da escolha de candidatos às eleições à aprovação de linhas de ação na conjuntura.

6. Ser membro da classe política é algo sempre transitório.

Tal qualidade não deve permitir que se ganhe mais do que o salário médio do país; os membros eleitos para os parlamentos não inventam temas ou posições, veiculam os que provêm das discussões nas estruturas de base; a política partidária tem de ter rostos, mas não é feita de rostos; o ideal é que haja mandatos coletivos que permitam a rotação regular de representantes durante a mesma legislatura; a transparência e a prestação de contas têm de ser totais; o partido é um serviço dos cidadãos para os cidadãos e por isso deve ser financiado por estes e não por empresas interessadas em capturar o Estado e esvaziar a democracia.

7. O partido-movimento é uma contra-corrente contra dois fundamentalismos.

Os partidos convencionais sofrem de um fundamentalismo anti-movimento social. Consideram que têm o monopólio da representação política e que esse monopólio é legítimo, precisamente porque os movimentos sociais não são representativos. Por sua vez, muitos movimentos sofrem de um fundamentalismo anti-partido. Consideram que qualquer colaboração ou articulação com os partidos compromete a sua autonomia e diversidade e acaba sempre em tentativa de cooptação.

Enquanto a democracia representativa estiver monopolizada por partidos anti-movimento e a democracia participativa por movimentos sociais, ou associações anti-partido, não será possível qualquer articulação entre democracia representativa e participativa com prejuízo para ambas. É preciso vencer esses dois fundamentalismos.

8. O partido-movimento combina a ação institucional com a ação extra-institucional.

Os partidos tradicionais privilegiam a ação institucional, dentro dos quadros legais e com mobilização das instituições, tais como, o parlamento, os tribunais, a administração pública. Pelo contrário, os movimentos sociais, embora utilizem também a ação institucional, recorrem muitas vezes à ação direta, aos protestos e manifestações nas ruas e nas praças, aos sit-ins, à divulgação de agendas por via da arte (o artivismo). Em face disto, a complementaridade não é fácil e tem de ser pacientemente construída.

Não podemos generalizar as condições de ação colectiva: há condições políticas em que as classes que estão no poder são muito repressivas, muito monolíticas; há outras em que são mais abertas, menos monolíticas, e há muita competição entre elas. Quanto mais competição entre elites, mais brechas se abrem para que por elas entrem o movimento popular e a democracia participativa. O importante é identificar as oportunidades e não as desperdiçar. São muitas vezes desperdiçadas por razões de sectarismos, dogmatismos, carreirismos.

A prática dos movimentos tem frequentemente de oscilar entre o legal e o ilegal. Em alguns contextos, a criminalização da contestação social está reduzindo a possibilidade tanto da luta institucional como da luta extra-institucional legal. Nesses contextos, a ação coletiva pacífica pode ter de enfrentar as consequências da ilegalidade. Sabemos que classes dominantes sempre usaram a legalidade e a ilegalidade segundo as suas conveniências. Não ser classe dominante reside precisamente em ter de contar com as consequências da dialética entre legalidade e ilegalidade e proteger-se na medida do possível.

9. A revolução da informação e as redes sociais não constituem, em si, um instrumento incondicionalmente favorável ao desenvolvimento da democracia participativa.

Pelo contrário, podem contribuir para manipular a tal ponto a opinião pública que o processo democrático pode ser fatalmente desfigurado. O exercício da democracia participativa necessita hoje, mais do que nunca, de reuniões presenciais e discussões face a face. A tradição das células partidárias, dos círculos de cidadãos, dos círculos de cultura, das comunidades eclesiais de base tem de ser reinventada. Não há democracia participativa sem interação de proximidade.

10. O partido-movimento assenta na pluralidade despolarizada e no reconhecimento das competências específicas.

A pluralidade despolarizada é aquela que permite distinguir entre o que separa e o que une as organizações e promover as articulações entre estas com base no que as une, sem perder a identidade do que as separa. O que as separa apenas fica em suspenso por razões pragmáticas.

O partido-movimento tem de saber combinar questões generalistas com questões setoriais. Os partidos tendem a homogeneizar as suas bases sociais e a centrar-se nas questões que as abrangem a todas ou a largos setores delas. Pelo contrário, os movimentos sociais tendem a concentrar-se em temas mais específicos, tais como o direito à habitação, a imigração, a violência policial, a diversidade cultural, a diferença sexual, o território, a economia popular, etc. Trabalham com linguagens e conceitos distintos dos que são usados pelos partidos.

Os partidos podem sustentar uma agenda política com mais permanência que os movimentos. O problema de muitos movimentos sociais reside na natureza da sua irrupção social e mediática. Em determinado momento têm uma atividade enorme, estão todos os dias na imprensa, e no mês seguinte já estão ausentes ou entram em refluxo com as pessoas deixando de ir às reuniões ou às assembleias. A sustentabilidade da mobilização é um problema muito sério porque, para que se consiga uma certa continuidade na participação política, é preciso haver articulação política mais ampla que envolva partidos. Por sua vez, os partidos estão sujeitos a transformar a continuidade da presença pública na condição para a sobrevivência de quadros burocráticos.

11. O partido-movimento prospera numa luta constante contra a inércia.

Podem gerar-se duas inércias: por um lado, a inércia e o refluxo dos movimentos sociais que não se conseguem multiplicar e densificar a luta e, por outro, os partidos que não mudam em nada as suas políticas ficam sujeitos à estagnação burocrática. Superar estas inércias é o maior desafio para a construção do partido-movimento.

Trabalhando com experiências concretas, nota-se que os partidos, ao ter vocação de poder, costumam lidar bem com a questão dos desequilíbrios dentro do espaço público. Mas porque competem pelo poder, não querem transformá-lo, querem tomá-lo. Os movimentos sociais, ao contrário, sabem que as formas de opressão tanto vêm do Estado, como de atores econômicos e sociais muito fortes. Em algumas situações, a distinção entre a opressão pública e a opressão privada não é demasiado importante. Os sindicatos, por exemplo, têm uma experiência notável de luta contra atores privados: os patrões e as empresas. Tanto os movimentos sociais como os sindicatos estão hoje marcados por uma experiência muito negativa: os partidos de esquerda nunca descumpriram tanto as suas promessas eleitorais quando chegaram ao poder como ultimamente. Esse descumprimento faz com que a deslegitimação dos partidos seja cada vez maior em mais países. Essa perda do controle da agenda política somente pode ser recuperada por meio dos movimentos sociais enquanto articulados nos novos partidos-movimentos.

12. A educação política popular é a chave para sustentar o partido-movimento.

As diferenças entre partidos e movimentos são ultrapassáveis. Para isso é necessário promover o interconhecimento por via de novas formas de educação política popular: rodas de conversas, ecologias de saberes, oficinas da Universidade Popular dos Movimentos Sociais; discussão de possíveis práticas de articulação entre partidos e movimentos: orçamentos participativos, plebiscitos ou consultas populares, conselhos sociais ou de gestão de políticas públicas. Até agora as experiências são sobretudo de escala local. Há que desenvolver a complementaridade em nível nacional e global.

13. O partido-movimento vai para além da articulação entre partido e movimento social.

Depois de mais de quarenta anos de capitalismo neoliberal, de colonialismo e de patriarcado sempre renovados, de concentração escandalosa da riqueza e de destruição da natureza, as classes populares, o povo trabalhador, quando explode ou irrompe de indignação, tende a fazê-lo fora dos partidos e dos movimentos sociais. Uns e outros tendem a ficar surpreendidos e a ir atrás da mobilização. Para além de partidos e movimentos, há que contar com os movimentos espontâneos, com as presenças coletivas nas praças públicas. O partido-movimento tem de estar atento a estas irrupções e ser solidário com elas sem tentar dirigi-las ou cooptá-las.

14. Vivemos um período de lutas defensivas. Compete ao partido-movimento travá-las, não perdendo de vista as lutas ofensivas.

A ideologia de que não há alternativa ao capitalismo – que, de fato, é uma tríade: capitalismo, colonialismo (racismo) e patriarcado (sexismo) – acabou por ser interiorizada por muito do pensamento de esquerda. O neoliberalismo conseguiu combinar o fim supostamente tranquilo da história com a ideia da crise permanente (por exemplo, a crise financeira). Por esta razão, vivemos hoje sob o domínio do curto prazo. É preciso atender às suas exigências porque quem está com fome ou é vítima de violência doméstica não pode esperar pelo socialismo para comer ou ser libertada.

Mas não se pode perder de vista o debate civilizatório que põe a questão das lutas de médio prazo e ofensivas. A pandemia, ao mesmo tempo que tornou o curto prazo em urgência máxima, criou a oportunidade para pensar que há alternativas de vida e que se não queremos entrar num período de pandemia intermitente temos de atender aos avisos que a natureza nos está a dar. Se não alterarmos os nossos modos de produzir, de consumir e de viver, caminharemos para um inferno pandêmico.

15. Só o partido-movimento pode defender a democracia liberal como ponto de partida e não como ponto de chegada.

Num momento em que os fascistas estão cada vez mais perto do poder, quando não estão já no poder, uma das lutas defensivas mais importantes é defender a democracia. A democracia liberal é de baixa intensidade porque é pouca. Aceita ser uma ilha relativamente democrática num arquipélago de despotismos sociais, econômicos e culturais. Hoje em dia, a democracia liberal é boa como ponto de partida, mas não como ponto de chegada. O ponto de chegada é uma profunda articulação entre a democracia liberal, representativa e a democracia participativa, deliberativa. Neste momento de lutas defensivas é importante defender a democracia liberal, representativa para neutralizar os fascistas e para a partir dela radicalizar a democratização da sociedade e da política. Só o partido-movimento pode travar esta luta.