(António Guerreiro, in Público, 21/07/2017)
Numa das suas edições da semana passada, o jornal francês Libération ocupou a primeira página com uma questão provocatória, colocada a propósito de um debate sobre o jornalismo que decorreu na cidade de Autun: Faut-il brûler les journalistes?, “é necessário queimar os jornalistas?”. E fazia um diagnóstico da situação, enumerando algumas razões fundamentais que levaram ao descrédito em que caiu uma profissão outrora respeitada, bem patente numa série de neologismos insultuosos que os franceses inventaram para nomear os jornalistas: merdias, journalops, presstiputes. E as figuras mediáticas que estão sempre na televisão, em debates e como comentadores, são chamados panélistes (porque integram “painéis”). Este ambiente onde se cultiva a suspeita e o desprezo pelo jornalismo e pelo sistema mediático, muito especialmente pela numerosa oligarquia que tem a seu cargo o comentário político e o editorialismo, está instalado em Portugal. A diferença em relação à França é que por cá os jornalistas não ousam colocar a questão publicamente e assimilaram com força de lei este mandamento: “Não farás auto-crítica: o jornalismo é ofício de auto-celebração”. É hoje bem visível que a insurreição contra o poder jornalístico, a que o Libération se referia, está bem activa em Portugal e não consiste apenas numa atitude arrogante das elites intelectuais. Mas a situação portuguesa tem as suas especificidade: sobre a ausência ou a rarefacção de alguns géneros jornalísticos tradicionais, ergueu-se a opinião e o comentário políticos, uma multidão de gente que transita da esfera política para o jornalismo e vice-versa, e começa o dia no jornal, passa à tarde pela rádio e está à noite na televisão. Este sistema conduz ao discurso histérico e à ausência de diversidade intelectual, muitas vezes confundido com a falta de pluralismo político, mas mais grave do que este porque está muito mais naturalizado e dissimulado. E é, além disso, responsável por uma esterilização da esfera pública mediática.
Antes de se ter generalizado a hostilidade em relação ao jornalismo enquanto ramo da indústria do entretenimento (na verdade esta sutura do jornalismo com o entretenimento, que precisa muito mais de “personagens” do que de ideias, é uma operação fatal), já se tinha dado um acentuado êxodo daqueles sem os quais os media ficam afastados de todo o debate intelectual.
A presença, hoje, nos jornais e na televisão, dos chamados intelectuais mediáticos esconde uma escandalosa rasura, na esfera mediática, do que se passa no campo do saber, das artes, das letras, das ciências. Em tempos, de que os mais novos certamente já não têm notícia, o poder jornalístico constituiu-se em luta contra o poder académico, cada um deles com as suas regras e reivindicando a prerrogativa da legitimação. Já vai longe essa inimizade pública: hoje, as duas esferas raramente se encontram.
E isso deve-se ao facto de também a Universidade se ter modificado substancialmente. Mas, sobrepondo-se a todas as alterações no próprio regime de socialização e circulação do saber (no fundo, aquele que tinha sido fundado pelo Iluminismo), está esta nova condição mediática que afasta o debate intelectual ou filtra apenas uma parcela ínfima dele. De um modo geral, foi toda a crítica cultural que desapareceu. Sob os seus escombros, ergueu-se a lógica “people” e “panéliste”, em cuja mobilização total participa alegremente o comentariado político como uma das belas-artes do tempo do jornalismo inócuo, estéril e histérico. O resultado está à vista: os media a funcionar no vazio, alimentando-se de si próprios.
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