(Francisco Louçã, in Público, 03/07/2017)
Francisco Louçã
Tudo correu bem este ano ao governo de António Costa. Até agora. As contas em dia, um pequeno crescimento, alguma criação de emprego, até o Schauble está rendido: o governo arrasou onde a direita o desafiou. Não foi ousado, até foi ortodoxo, mas cumpriu as regras pelas quais o mediam na UE. A direita ficou constrangida, o diabo nunca mais aparece. Mas desengane-se quem afirmar que a escolha actual de Passos Coelho e de Assunção Cristas, de fugirem ao tema que os esmaga, a economia, é somente instinto de sobrevivência. É, mas é mais do que isso. Eles estão a tocar num ponto importante.
A ignição do inferno de Pedrógão Grande não é culpa do governo, assim como o assalto a Tancos não o é – na medida, e só na medida, em que possamos esquecer o tempo de inacção deste governo quanto à floresta ou mesmo quanto à segurança dos paióis, ou a forma como o anterior governo, sob a batuta de Passos e Cristas, cortou nesses investimentos, reduziu funcionários e afundou a soberania. Mas o governo Costa é quem está, e respondeu de forma desencontrada ao incêndio. Esse erro repetiu-se agora com Tancos.
O governo actuou rapidamente em Pedrógão para corrigir a flagrante impreparação e descoordenação da frente de combate nas horas iniciais. Foi na política que tropeçou: para comprometer Passos, aceitou a estranha comissão “técnica” nomeada pelo Parlamento, como se competisse a este órgão dirigir a investigação ou tivesse o necessário poder executivo para o fazer. Ou seja, Costa aceitou deixar passar o tempo, quando precisava de acção incisiva, e deixou que a manobra política fizesse a agenda, dando a entender que o governo descuida de saber já o que se passou – e portanto de corrigir as falhas. Foi um erro.
Pior do que um erro, só um segundo erro. Quanto se soube do assalto a Tancos, era preciso firmeza. E tivemos o contrário: o ministro foi à TV explicar três dias depois que não era o caso mais grave, que isto e aquilo. O roubo foi 4ªf passada e só nesta 2ªf o número dois do governo, Santos Silva, vem responder sobre o assunto e ainda de forma mais leve do que o caso exigia.
Entendamo-nos: o que o responsável máximo do governo devia ter feito logo era uma comunicação oficial explicando que há duas possibilidades que o governo tem de levar muito a sério – um roubo para os circuitos de venda de armas ou um roubo para as redes terroristas. Podendo além disso suspeitar-se de cumplicidade entre os militares, este é sempre um caso de Estado, é grave e exige todo o esforço de informação e de perseguição. O governante pode ser obrigado a cuidados especiais quanto ao que diz, para não prejudicar a investigação em curso, mas o que não pode é desvalorizar o assunto, ou deixar andar. Devia ter dirigido o debate sobre o assunto sem permitir qualquer dúvida. Tivesse-o feito e não havia espaço para jogo político; não o fazer é jogo político. Falar e actuar no tempo certo impediria a deriva demagógica e colocaria a questão onde tem de estar: entre o Estado e os bandidos. Isso tiraria do caminho o envergonhante jogo da direita mas, sobretudo, poria o governo no pé da sua responsabilidade.
Acontece ainda que há outro sinal preocupante. É Espanha. Portugal entrega aos seus parceiros militares a lista do material roubado, que é secreta, e vem publicada no dia seguinte no El Espanhol. Uma ministra portuguesa comenta o caso com o seu parceiro espanhol e uma versão da conversa vem escarrapachada no El Mundo, no dia seguinte. Uma vez é um deslize suspeito, duas vezes é uma operação.
Como se viu no caso “Sebastião Pereira”, o Partido Popular espanhol está muito preocupado com o exemplo do governo português e desembainhou a intriga. Já agora, convém-nos saber o que fazem os vizinhos.
Senhor primeiro-ministro, é tempo de o governo acordar.
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