(Por José Goulão, in Facebook, 18/08/2017)
O vento sopra em todo o país, mas as chamas, tal como em 1975, poupam as zonas onde prevalecem grandes interesses económicos tendencialmente sem pátria.
O terrorismo tem mil caras. Lançar o terror contra pessoas comuns e quase sempre indefesas, ou atemorizar populações e devastar países usando os cidadãos apavorados como reféns são práticas que preenchem os nossos dias num mundo que, pela mão de dementes usando o poder acumulado por conglomerados do dinheiro, caminha para inimagináveis patamares de destruição.
Portugal tem tido a sorte de ser poupado pelo terrorismo, diz-se e repete-se, por vezes com inflexões de um misticismo bolorento próprio de pátrias «escolhidas» para auferir das mercês do sobrenatural. Uma interpretação com curtos horizontes e vistas estreitas, características cultivadas por uma comunicação social habilmente arrastada para realidades paralelas e que reduz o terrorismo dos nossos dias ao estereótipo do muçulmano fanático imolando-se com explosivos à cintura, ou atropelando a eito, não se esquecendo de deixar o cartão de identidade, intacto, num local de crime reduzido a destroços humanos e amontoados de escombros.
Assim sendo, deixa de ser terrorismo, por exemplo, o que a NATO fez na Líbia, o que Israel pratica em Gaza, os massacres que as milícias nazis integradas no exército nacional da Ucrânia «democratizada» cometeram, por exemplo, na cidade de Odessa.
Olhando em redor, porém, é imperativo que cada um de nós estilhace a dependência em relação a um conceito de terrorismo que corresponde a uma ínfima parte da gravidade do fenómeno global. Só assim alongaremos os horizontes e alargaremos as vistas que permitirão reflectir a sério, e profundamente, sobre a realidade que devasta Portugal e que, com uma irresponsabilidade e uma inevitabilidade próprias de uma cultura tecnocrática e desumana, chegou a ser conhecida como «a época dos incêndios».
Se quisermos reflectir livre e abertamente sobre o maior número possível de aspectos da situação com que nos confrontamos é imprescindível associar o poder destruidor e aterrador dos incêndios deste ano ao quadro político-social que vivemos em Portugal; e também à memória que em muitos ainda estará viva e que outros poderão consultar junto dos mais velhos ou das fontes de uma época que dista 42 anos. Chamaram-lhe o «Verão quente de 1975».
Pois nesse «Verão quente», assim baptizado não por causa do terrorismo incendiário mas de uma instabilidade política inerente às situações revolucionárias e também organizada, em grande parte, por conspiradores externos, internos e todos os outros manobradores integráveis no diversificado círculo dos contrarrevolucionários, multiplicaram-se as práticas terroristas.
Houve os assassínios políticos puros e duros, os assaltos às sedes dos partidos de esquerda, quase sempre culminados com incêndios, a intimidação e perseguição de democratas em regiões onde o salazarismo campeava como se nada tivesse acontecido, forçando a restauração de situações de clandestinidade; e houve os incêndios: no Alentejo, ferindo a Reforma Agrária, que depois viria a ser assaltada e liquidada em nome da «normalidade», da «estabilidade», enfim, da «democracia do arco da governação»; e que deflagraram também em muitas outras regiões do país onde não ameaçavam os grandes interesses económicos estabelecidos – desde logo protegidos pela contrarrevolução – caracterizadas por populações economicamente mais débeis, socialmente vulneráveis, presas fáceis das mensagens contra a «indisciplina», a «balbúrdia» e todos os outros nefastos efeitos atribuídos à revolução.
Hoje os tempos são outros, mas quem dispuser de olhos para ver não terá dificuldade em encontrar pontos de contacto. A própria comunicação social, no seu afã recadeiro de apontar culpados e responsáveis pelas causas e consequências da interminável vaga de incêndios, abre interessantes pistas de análise e, por certo involuntariamente, ajuda a estabelecer diferenças gritantes entre a tragédia deste ano e as rotineiras «épocas de incêndios».
Sem precisar de evocar essas discrepâncias, é evidente que o actual governo português, pesem embora as suas subserviências, que são também fontes das suas fragilidades, não goza das simpatias dos interesses que gerem a União Europeia, a NATO, enfim das gentes que dirigem o mundo. Tal como em 1975, mesmo que as semelhanças sejam pouco mais que imperceptíveis.
Porém, nunca como agora, nos tempos da «estabilidade», um governo foi atado ao pelourinho dos responsáveis pela vaga estival de incêndios, tanto pela oposição como pela comunicação social. São conjecturas, especulações, exigências de demissões, acusações levianas de incompetência, sucessivas adivinhações sobre «remodelações ministeriais», aproveitamentos necrófilos das vítimas, mentiras sobre suicídios e outras desgraças – o quadro é tão conhecido que não vale a pena prosseguir com a enumeração das malfeitorias.
As atrocidades políticas chegam ao ponto de responsabilizar o governo por insuficiências do SIRESP e da PT, entidades privadas que se guiam pelo lucro e não pelos interesses humanos, quando o verdadeiro pecado do executivo, nesta matéria, é sujeitar-se a mendigar investimentos a sociopatas, pondo liminarmente de lado o dever de colocar tais entidades ao serviço dos portugueses e às ordens do Estado Português, porque manipulam interesses estratégicos dos cidadãos nacionais, prejudicando-os.
No meio da altercação passa de fininho o facto mais repugnante das manobras: foi a actual oposição quem entregou esses serviços fundamentais a entidades que nem querem ouvir falar em pessoas e nos inconvenientes que provocam ao bem-estar do mercado.
Indo por este caminho, porém, perder-nos-íamos em atalhos da política de bordel e nunca chegaríamos ao patamar de reflexões que a situação dos incêndios em Portugal exige.
O princípio da abordagem é tão óbvio que a comunicação social foge dele como o diabo da cruz: o fogo que alastra em Portugal, sem descanso, resulta da acumulação de incêndios isolados provocados por fenómenos naturais ou pela demência de pirómanos? Ou é uma vaga terrorista organizada para devastar o país, delapidar o que resta da sua riqueza natural e impedir o governo de governar até que mãos salvadoras venham encarreirar a pátria nos trilhos de onde jamais deveria ter saído?
Estamos, obviamente, a lidar, com uma teoria da conspiração.
Assim era também o argumento fatal em 1975, como muitos se recordarão. No entanto, na sombra, organizações terroristas como o ELP («Exército de Libertação de Portugal«) e o MDLP («Movimento Democrático de Libertação de Portugal»), dirigidas por mãos experientes como as do marechal Spínola e de profissionais do terror instalados em embaixadas estrangeiras – de países da NATO, naturalmente – conduziam a vaga de incêndios e outras acções terroristas contra Portugal e os portugueses. O objectivo era virar as populações indefesas contra a «balbúrdia» criada pelo movimento transformador, abrindo as portas à contrarrevolução, à «estabilidade». E conseguiram-no.
Quando se saúda que Portugal tem estado imune ao terrorismo costuma acrescentar-se que o mesmo acontece em relação a organizações fascistas, por sinal numa Europa onde elas se desenvolvem a ritmo veloz. Será?
Ora vivendo nós em macro estado policial formado pela União Europeia e a NATO, onde as organizações internas e externas para devassa secreta da vida dos cidadãos se atropelam, ao que parece para detectar as intenções ínfimas de um qualquer muçulmano, não haverá meios para investigar a possibilidade de existir um ataque terrorista sistematizado contra Portugal através desta espécie de fogo inquisitorial? Ou será porque não querem? Ou será porque tal hipótese nem sequer passou por cabeças tão informadas sobre as vocações conspirativas de cada qual?
Ou porque entendem que é suficiente resumir os autos aos interrogatórios de dezenas de incendiários já detidos, como se o banal executante do crime soubesse dizer alguma coisa sobre os chefes terroristas supremos? Se acham que investigar assunto tão corriqueiro é enfadonho, ao menos ouçam os bombeiros.
Até à vista desarmada – sem necessitar da espionagem por satélites ou da caça aos telefones e e-mails de cada um de nós – se percebe que nem tudo é aleatório no quadro de incêndios em Portugal. O vento sopra em todo o país, mas as chamas, tal como em 1975, poupam as zonas onde prevalecem grandes interesses económicos tendencialmente sem pátria.
As vítimas da catástrofe são pequenos e médios proprietários fundiários, normalmente esquecidos pelos governos e indefesos perante as calamidades; o terror ataca pequenas aldeias que até os mapas oficiais olvidam, ou então preciosidades do património humano, histórico e natural que é de todos, como no caso da Gardunha e suas aldeias, onde chegou a hora do ataque das chamas.
Tanto como destruir, o efeito procurado é o de aterrorizar. Não é difícil perceber que o fogo, entendido como a soma de todos os incêndios, escolhe áreas a consumir, combustíveis e rotas que não são apenas as ditadas pelos ventos. Ao menos a grande parte do Alentejo flagelada em 1975 tem sido agora poupada, provavelmente porque os ventos, tal como os tempos, também mudaram.
Se pedirem a cada uma das pessoas directamente prejudicadas pela calamidade que cite responsáveis pela tragédia, certo será, mesmo sem qualquer sondagem, que o governo ficará com as orelhas a arder. As pessoas sentem, mas também ouvem e assimilam, sobretudo o que via TV’s, rádios e jornais as ajuda a identificar os alvos mais fáceis para descarregar a raiva do desespero.
O ELP e o MDLP já lá vão, sendo certo que as suas mentalidades não se desvaneceram, tudo tem o seu aggiornamento.
Ignorar, para os devidos efeitos, que a vaga de incêndios em curso em Portugal, pelas suas características, regiões de acção e contumácia, pode ser uma operação de terrorismo organizado é um crime contra o país e todos os portugueses. Uma hipótese como essa não pode ser descartada.
Por isso, é dever de todos os cidadãos interrogar-se, reflectir e exigir respostas das autoridades competentes sobre quem tira proveito dos dois crimes: o dos incêndios e o do laxismo no apuramento de uma eventual componente terrorista.
Uma coisa parece óbvia e pode servir como ponto de partida para uma investigação que se pretende indispensável: ninguém, desde o Presidente da República ao mais comum dos cidadãos, pode garantir que o ataque incendiário em curso contra Portugal não é uma operação terrorista.