(José Pacheco Pereira, in Público, 15/07/2017)
Pacheco Pereira
Caro Pacheco Pereira,
Essa de dizeres que o "país está estagnado" é uma forma sibilina de dizer que só uma solução, "bloco central" pode ser fautora de mudanças de fundo. Na verdade, devias dizer que, no actual quadro económico-financeiro e tendo em conta a arquitectura jurídico-institucional do Euro e do quadro europeu, quaisquer mudanças de fundo tem que passar pela benção de Bruxelas e de Frankfurt. E por isso, qualquer governo, seja ele qual for, desde que não ponha em causa esse quadro, só pode "navegar à vista". Os portugueses já perceberam isso e preferem um governo que lute no quadro da nossa soberania limitada, do que um governo que se renda e seja conivente com os ocupantes. É por isso, sobretudo, que a Geringonça está e estará de pedra e cal, mais por isso do que pelo facto de os seus actores e encontrarem numa espécie de equilíbrio de Nash, que tu descreves, apesar de não nomeares o conceito.
Estátua de Sal, 15/07/2017)
Às vezes acontece que as coisas param, o que não é muito normal. Mas a verdade é que, no plano estritamente político, o país está parado, para não dizer estagnado. Esta linha flat não se estende para tudo, bem pelo contrário. No plano económico, social, cultural, e outros mesmos de intersecção entre a política e a sociedade, algumas coisas estão a mudar, mas a estagnação política reduz o ritmo de tudo. O que é que eu quero dizer quando afirmo que em matéria política tudo está parado? Que não estão em curso factores de mudança no plano político, nem no lado do Governo, nem da oposição, que permitam sair da estagnação. Podem acontecer amanhã — sei bem que a história faz-se por surpresas imprevisíveis —, mas não existem hoje.
Explico-me. Do lado do Governo, três partidos convergem numa solução política sui generis, mas muito estável. Há uma razão para essa estabilidade: o facto de esta aliança político-parlamentar-governativa ser vantajosa para todos os seus parceiros e nenhum achar que fora dela teria mais vantagens. Não há no PS, nem no BE, nem no PCP nenhum movimento interior que conteste a aliança actual. No PS, a oposição que veio do sector de António José Seguro está limitada a meia dúzia de vozes que se manifestam sempre que alguma coisa corre mal ao Governo e a António Costa, mas fala muito sozinha. Do lado do interior do PS está tudo morto, como, aliás, é normal que aconteça em partidos deste tipo quando estão no poder.
Do lado do BE não há nenhuma corrente significativa que ponha em causa a aliança parlamentar, nem sequer vozes isoladas que reflictam sobre o que ela significa para a esquerda radical. As que havia saíram pelo seu próprio pé do BE, umas desejando, numa altura em que isso não era muito previsível, uma maior aliança com o PS, o partido Livre; e outras, mais radicais e que se oporiam a estes acordos, para o MAS. Uma parte da dinâmica das tendências do BE é internacional e tem que ver com as correntes do trotsquismo, mas com o MAS tornou-se exterior.
No caso do PCP, ainda menos se vê qualquer oposição ao acordo, bem pelo contrário. Ocasionalmente a imprensa apresenta umas vozes como sendo mais críticas do acordo com o PS, particularmente nos meios sindicais, mas se há parte da constelação de organizações do PCP que beneficia com este acordo é o movimento sindical. Nenhum partido mais do que o PCP, nem sequer o próprio PS, beneficiou mais com este acordo, que travou a ofensiva anti-sindical que era uma das linhas de actuação mais consequente dos partidos da PAF, o PSD e o CDS. O PCP e a CGTP não conseguiram reverter nesta área muitos dos estragos causados pela governação pró-troika, a não ser nalguns aspectos da contratação colectiva, mas conseguiram um efeito de travagem e um tempo de respiração de que precisavam com urgência. Daí que a conflitualidade social seja hoje em grande parte simbólica, ou nas margens de negociação consentidas pelo acordo.
Não vale a pena, por isso, os comentadores ligados ao PSD e CDS e ao sector mediático da direita verem divisões e crises onde elas não existem, porque, por razões puramente racionais e de vantagem, ninguém quer romper o entendimento que permitiu a “geringonça”. Não há pois aqui factores de mudança, nem sequer de muita usura.
O mesmo acontece à direita, onde estava o CDS e que absorveu há muito a direcção do PSD. Nenhum dos partidos está em condições de criar dificuldades significativas ao Governo, como se viu nas recentes crises de Pedrógão e Tancos. A julgar pelos comentários, em particular do PSD, o Governo e a coligação no poder estariam nas vascas da agonia e o tombo do optimismo para o pessimismo seria adquirido, abrindo caminho para um “novo ciclo”. Na verdade, o Governo passou um mau bocado, mostrou fragilidades e uma atrapalhação inaceitável, mas mesmo assim não parece atingido na sua força política nem na sua popularidade.
Há razões para que isso seja assim, em particular o evidente aproveitamento político de uma tragédia, que funciona sempre ao contrário do pretendido. Percebe-se, e esta percepção é devastadora, que há um claro desejo de que as coisas corram mal para o Governo, até por impotência própria, e, se uma tragédia ajuda, ainda bem, venham mais tragédias. É tão evidente este desejo perverso, que qualquer debate racional é inútil para ter ganho de causa, e, por isso, mesmo onde o Governo falhou calamitosamente, a oposição não ganha um voto.
As pessoas atribuem responsabilidades ao Governo, mas não eximem dessas responsabilidades a oposição, em particular porque mal se saia da condução política imediata das crises e se queira passar para matérias mais estruturais, como tentou o CDS com a ideia do desprezo pelas áreas de soberania, imediatamente lhe cai em cima o desastre que foram estes últimos anos de degradação das Forças Armadas, de redução de meios, de medidas de política como a facilitação da plantação de eucaliptos, a politização da protecção civil e dos bombeiros. O CDS está reduzido a um partido tribunício, cujas causas “populares” soam a falso e as elitistas mobilizam muito pouca gente.
O PSD ficou congelado no tempo e, como qualquer coisa que está congelada, torna-se duro e hirto. Passos Coelho não consegue ocultar o seu desejo de que o Diabo nos visite, e seja o fogo, os ladrões de armas, seja lá o que for, pensa que pode beneficiar dessas circunstâncias. A gafe dos suicídios é psicologicamente reveladora dessa vontade e, em política, isso é autodestrutivo.
Porque é que o PSD, que sempre teve um potencial de conflitualidade interna considerável, não o afasta? Porque, como se viu nas recentes eleições internas, não há qualquer dinâmica de mudança no seu interior, mas apenas um entrincheirar de posições que é normal quando se perde o contacto com a realidade e se vive de uma ortodoxia póstuma. O núcleo de poder partidário à volta de Passos Coelho precisa desesperadamente dele, porque precisa desesperadamente do poder que o partido lhe dá, porque não tem recuo para a sociedade.
No PSD, há um fenómeno de oligarquização sem precedentes, logo uma dependência quase exclusiva do poder interno, por parte de gente que não tem qualquer obra pública, nem reconhecimento profissional, nem sequer é conhecida pelos militantes, quanto mais fora do partido. Por isso, o PSD não constitui qualquer risco para o Governo e não introduz qualquer factor de mudança no sistema político.
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