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terça-feira, 28 de abril de 2020

Brasil: o egomaníaco e os seus ratos

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 27/04/2020)

Daniel Oliveira

Enquanto Donald Trump dá largas à sua incomensurável, imparável e atrevidíssima ignorância – que depois tentou disfarçar com “sarcasmo” –, o seu irmão mais pobre dedica-se a esquartejar o seu próprio governo no meio de uma pandemia. Eliane Brum, jornalista do El País Brasil, cujas colunas de opinião me ajudam sempre a compreender o que ali se passa, resume: “Jair Bolsonaro é um antipresidente. E a antipresidência é um conceito. Desde que assumiu ele faz oposição ao seu próprio Governo.”

Jair BolsonaroJair BolsonaroJOÉDSON ALVES

Num país onde já morreram mais de quatro mil pessoas e se aproxima dos 400 óbitos diários, sendo os desfavorecidos os mais atingidos, Bolsonaro fez campanha contra as indicações das autoridades de saúde para conter o vírus que só provoca uma “gripezinha” ou um “resfriadinho”, entrou em conflito com a maioria dos governadores e foi desmantelando o seu próprio executivo.

O primeiro passo foi a demissão do ministro da Saúde, gesto arrojado neste momento. O segundo, o confronto com o todo-poderoso Sérgio Moro, que também se demitiu.

A torre de Babel política construída em torno de Bolsonaro, composta por militares saudosista da ditadura, magistrados populistas que julgavam ter chegado a sua vez de ir ao pote do poder, fanáticos religiosos bem lançados no negócio milionário da salvação das almas, abutres neoliberais ansiosos por encontrar um Estado fraco para os debaixo e servil para os de cima, desesperados da direita tradicional dispostos a tudo para não serem levados na enxurrada e mais uns quantos lunáticos que acham que Olavo de Carvalho é um intelectual, está a ruir.

Com o ministro da Justiça e Segurança Pública, a gota de água terá sido a exoneração do diretor-geral da Polícia Federal, Maurício Valeixo. Segundo Moro, o Presidente queria manter-se informado das investigações da PF. Sobretudo por causa das tropelias dos seus filhos mas também de aliados. Com um toque politicamente irónico, Sérgio Moro até atirou uma pedrada à narrativa que ele próprio construiu, elogiando o governo de Dilma Rousseff por ter respeitado a autonomia da Polícia Federal. Estes momentos são especialmente interessantes, porque permitem que os seus atores, na reconstrução dos seus argumentos, denunciem as suas próprias mentiras. A guerra entre Bolsonaro e Moro ainda nos vai revelar muita coisa.

À hora a que escrevo, o Presidente parecia estar apenas interessado em salvar a família, colocando dois amigos no Ministério e à frente da Polícia Federal. E a troca de acusações entre Presidente e ex-ministro ia ao rubro, com Bolsonaro a dizer que Moro aceitaria não fazer ondas se ele o nomeasse para o Supremo Tribunal Federal (STF) e Moro a insinuar que o Presidente lhe ofereceu esse lugar para ele o deixar interferir nas investigações da Polícia Federal. Olhando para o caráter dos dois, qualquer das duas pode ser verdadeira. A lavagem de roupa suja vai ser linda de se ver.

APAGAR AS ESTRELAS

Sérgio MoroSérgio MoroJUAN CARLOS HIDALGO

Compreende-se a irritação de Sérgio Moro. Ele não podia permitir que o Presidente fizesse o que ele próprio fez como juiz da Lava-Jato: recolher informação junto do Ministério Público, indicar testemunhas, orientar a inclusão de provas ou sugerir mudanças no andamento da operação, numa descarada violação do seu dever de neutralidade – pela qual terá de se defender no Supremo para onde queria entrar. Esses são abusos que reservou para construir a sua carreira política e a que não deixou de recorrer para proteger o próprio Presidente, familiares e aliados. Acreditar que Moro se demitiu por não aceitar que se viole o princípio da independência de quem investiga implica apagar todo o seu currículo como magistrado e ministro.

Sérgio Moro usou Lula da Silva e a Lava-Jato para chegar à política e Jair Bolsonaro como rampa de lançamento para uma carreira no topo do Estado. Sabendo que a nomeação para o STF é hoje uma miragem (“seria como ganhar a lotaria”, disse Moro o ano passado) – quer porque já não tem a simpatia do Presidente, quer porque as provas da sua promiscuidade com o Ministério Público na Lava-Jato chamuscaram a sua credibilidade como magistrado –, é na sua carreira política que Moro continua a pensar: “sempre estarei à disposição do país”, disse. Um governo em frangalhos deixou de lhe ser útil.

Bolsonaro conhece bem as ambições de Moro e sabe que o seu justicialismo populista o transformava no ministro mais popular do seu governo. Muito mais popular do que ele. E perigoso quando o começou a desafiar. Também foi isso que o levou a afastar o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, a meio de uma pandemia – popularidade e desalinho. As discordâncias quanto à necessidade de medidas de confinamento mantêm-se com o seu sucessor, Nelson Teich. Mas, para além do novo ministro vir do mundo dos negócios, que Bolsonaro compreende melhor do que qualquer ideia de saúde pública, não o enfrenta publicamente nem tem, como tinha Mandetta, índices de popularidade mais altos do que o Presidente.

Tudo se resume ao ego de Bolsonaro. Nisso, a diferença entre ele e Trump é só a sofisticação política que se vive num e noutro país. Tudo foi resumido pelo próprio Bolsonaro: “De algumas pessoas do meu governo, algo subiu à cabeça delas. Estão se achando demais. Eram pessoas normais, mas, de repente, viraram estrelas, falam pelos cotovelos, têm provocações. A hora D não chegou ainda não. Vai chegar a hora deles, porque a minha caneta funciona." Só pode brilhar uma estrela no firmamento, mesmo que sem as outras ele nada consiga fazer. Porque ao contrário do poder que tem um objetivo, por mais sinistro que esse objetivo seja, a popularidade de Bolsonaro precisa apenas de conflito. É disso que ele vive. O que quer dizer que ele precisa de se opor ao poder, mesmo quando o tem. O populismo mantém-se, procurando sempre novos inimigos.

Como Trump, Bolsonaro não tem um projeto político, tem um projeto pessoal. Tudo gira em torno da suas necessidades narcísicas. Em Portugal, a um nível até mais patológico, por não estar associado a qualquer convicção prévia, o líder do Chega corresponde a este perfil e qualquer relevância política que ganhasse teria os mesmos resultados. Mas por estas figuras grotescas não terem outro projeto que não seja o seu próprio espelho não quer dizer que a sua chegada ao poder não corresponda a um projeto. A vários, aliás. Que as usam e manipulam, até começarem a ensombrar o monstro que ajudaram a construir e o monstro se transformar num problema para o seu futuro político. No caso do Brasil, o problema tornou-se demasiado claro com a pandemia, em que a incompetência se mede em mortes diárias. Não que a morte, num país onde a vida vale quase nada, os preocupe. Mas preocupa-os o que lhes pode sobrar quando descontados os fanáticos que seguirão o Presidente até ao precipício, que ainda são muitos.

O BARCO QUE SE AFUNDA

Foto GettyFoto GettyVICTOR MORIYAMA

O barco de Bolsonaro está a afundar-se e, como é costume nestes momentos, os ratos estão em fuga. As ambições de Sérgio Moro precisaram da investigação politicamente orientada a Lula, do impeachment ilegítimo e ilegal de Dilma e do caos institucional dos três anos seguintes que arrasou uma direita tradicional que dificilmente lhe daria lugar cimeiro. Mas os projetos políticos e pessoais de Moro dispensam um governo em frangalhos onde só Bolsonaro pode brilhar. Por isso e só por isso está de partida. Já aceitou desautorizações bem mais graves, já protegeu corruptos dentro do próprio governo, já aparou muitos golpes aos filhos e aliados do Presidente.

João Dória, governador do PSDB de São Paulo, precisou de Bolsonaro para se salvar da razia da direita tradicional – e por isso o apoiou –, mas o preço desse apoio não poderia ser um amontoado de cadáveres no estado mais afetado pelo coronavírus. Só o suicídio político poderia permitir que o governador do Estado onde se concentram 40% dos óbitos seguisse os delírios irresponsáveis de Bolsonaro, contrariando as indicações das autoridades de saúde e do então ministro da pasta. Foi o último político contra quem a tribo de loucos fanatizados que rodeia Bolsonaro ainda conseguiu dirigir as suas forças com eficácia.

O outrora poderoso ministro da Economia Paulo Guedes precisou de Bolsonaro, por perceber, como perceberam os “Chicago boys” que assessoraram Augusto Pinochet, que o instrumento natural para a imposição das receitas neoliberais é um governo autoritário. Mas perceberá que, perante uma pandemia desta natureza, os próximos meses dificilmente estarão de feição para os seus projetos e caberá à ala militar do governo liderar um programa de obras públicas. O Estado mínimo torna-se agora especialmente pornográfico. Um Estado mínimo que não era só dele, era também de Temer e dos seus aliados no governo nascido do golpe, que tiraram milhares de milhões à saúde e à educação. Está a ser pago agora.

Já os militares, sonham com a queda do seu joguete. Lá estará o vice Hamilton Mourão para, na sucessão de golpes constitucionais desde o impeachment de Dilma, devolver o poder do Brasil a quem a democracia arrancou.

Todos eles sabiam quem era o egomaníaco que puseram no Planalto. Qualquer demonstração de sobressalto ético, neste momento, é uma piada de mau gosto. Apenas percebem que o barco está a afundar-se e, como todos os ratos, correm para terra. Veremos qual deles usou melhor a tragédia do Brasil para garantir o seu futuro. Ou se não é o próprio Bolsonaro a trocar de novo as voltas a todos. Por mais inacreditável que seja, um terço dos brasileiros continua a apoiar Bolsonaro. Como diz o diretor do Brazil Institute da Universidade King's College, no Reino Unido, apesar do impacto negativo que a demissão de Sérgio Moro representa para o governo, “o bolsonarismo é uma força orgânica no país” que não pode ser subestimada.

No meio de tanta tragédia, resta a consolação de ver, no confinamento, a oposição social ganhar força, o que não deixa de ser irónico. Os “panelaços” contra Bolsonaro, em que o povo bate panelas e grita contra o Presidente, às janelas, e o manifesto dos filhos das empregadas domésticas obrigadas a ir para casa dos seus patrões, ainda antes do pico da epidemia ou de qualquer indicação de queda, são exemplos disso. Entretanto, a divisão na base de apoio do Presidente abre brechas e a direita brasileira prepara-se para a sua guerra fratricida. Ganhem ou percam os que agora abandonam o Presidente, eles não são nem arrependidos nem desiludidos. São o que sempre foram: oportunistas.

Um modelo que não nos serve

por estatuadesal

(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 24/04/2020)

Esta crise é uma tempestade perfeita para as economias periféricas do Sul da Europa. Para além de algumas delas se contarem entre os epicentros da epidemia, são economias altamente dependentes dos sectores do turismo, hotelaria, restauração, imobiliário e construção, que estão e vão continuar a ser afetados de forma especialmente intensa e duradoura pelas limitações adotadas em resposta à crise médico-sanitária e pelas alterações de padrões de consumo e estilo de vida que provavelmente se seguirão. São economias com tecidos produtivos muito pulverizados, com um peso das micro e pequenas empresas bastante superior à média europeia, e mercados de trabalho muito precarizados, com elevada prevalência de trabalhadores por conta própria e de modalidades atípicas e mais vulneráveis de contratação. Finalmente, têm muito pouca capacidade orçamental para responder à crise: em parte por desenho institucional, uma vez que não possuem soberania monetária; em parte por herança do passado, dado o fardo do endividamento que trazem da última crise.

Nas últimas semanas, pelo menos dois exercícios de medição e comparação internacional da vulnerabilidade das economias à crise do coronavírus ilustram isto mesmo. Em março, a agência alemã Scope Ratings publicou uma matriz de vulnerabilidade económica e dos sistemas de saúde que considerava, na parte económica, o peso do turismo no produto, o peso do emprego temporário e em micro-empresas, o peso da produção industrial e o grau de participação em cadeias de valor globais. Sem surpresa, as quatro economias europeias que surgem como mais vulneráveis são, por esta ordem, a Itália, a Grécia, Espanha e Portugal.

Há pouco dias, a The Economist elaborou o seu próprio ranking de vulnerabilidade, construído através da agregação de cinco indicadores: peso do emprego em pequenas empresas; percentagem de empregos que se estima não poderem ser realizados a partir de casa; peso dos sectores do lazer e restauração; dimensão do estímulo económico anunciado em resposta à crise; e medidas de proteção do emprego. A Grécia surge em primeiro lugar, a Espanha em terceiro e a Itália em quinto. O artigo não disponibiliza o ranking integral, não permitindo localizar Portugal ou perceber quais sejam o segundo e quarto classificados, mas parece bastante provável que um destes últimos seja o nosso país: as vulnerabilidades destas economias, incluindo a portuguesa, são bastante robustas à escolha de diferentes indicadores.

No meio de todos estes fatores de vulnerabilidade, há aspetos estruturais com raízes históricas profundas e especialmente difíceis de alterar. Mas há muito que decorre diretamente de escolhas políticas concretas. A estratégia de transformação de Portugal numa “Flórida da Europa”, especializada na exploração do turismo de sol e mar e na atração de reformados dos outros países europeus, foi afirmada em diversas ocasiões neste século e inspirou as decisões de mais do que um governante. Uma das origens intelectuais desta ideia é um artigo de 2006 do economista norte-americano Olivier Blanchard, em que se defendia explicitamente o “modelo Flórida” e a desvalorização interna como saídas para as dificuldades criadas pelo euro.

Terá ficado entretanto claro que uma tal sobre-especialização em segmentos do sector dos serviços caracterizados por salários baixos, empregos precários e baixa produtividade assenta numa visão estática e estreita das vantagens comparativas da nossa economia e introduz tendências para a desindustrialização, para a formação de bolhas de especulação imobiliária e para a vulnerabilização acrescida de uma boa parte da sociedade. Se essa aposta já comportava aspetos preocupantes mesmo em tempos de relativa bonança, revela-se realmente problemática perante uma crise como aquela com que estamos confrontados. Subitamente, tornam-se evidentes as desvantagens da excessiva dependência da monocultura do turismo e a importância da indústria nacional, não só para a economia como até para a segurança e para a capacidade de resposta médico-sanitária do nosso país.

É certo que não é e nunca foi possível converter instantaneamente a economia portuguesa numa economia altamente produtiva, maioritariamente assente em indústrias de alta tecnologia, serviços avançados e empregos de qualidade. Mas um longo período de apostas em sentido contrário, nalguns casos diretamente, noutros como consequência da dinâmica “natural” do mercado único quando se abdica de grande parte dos instrumentos de política económica, nomeadamente de politica industrial, não deixa de ter uma quota-parte importante da responsabilidade por trazer-nos até aqui. Esta crise está a deixar claro que este é um modelo que não nos serve; a discussão que se segue é como encetar o caminho para um modelo diferente.

Portugal 2020, um povo pobre e aprisionado

por estatuadesal

(Vítor Lima, 21/04/2020)

Antes do 25 de Abril, Portugal era uma periferia pobre da Europa. Hoje, continua a ser.
Antes, a pide zelava pela boa ordem na rua e a censura, nas cabeças. Hoje, o regime sabe onde estamos, com quem falamos e o que gastamos através de tecnologias, tão silenciosas como o coronavírus.
Antes, havia uma assembleia nacional com três grupos com algumas diferenças – os fiéis do Caetano, a “ala liberal” e os ultras, adeptos da manutenção das colónias como dádiva divina. Hoje, é a homogeneidade política que irmana os artistas da AR, um género de palafreneiros do século XXI que tratam o capital, com o mesmo obediente desvelo como, há quinhentos anos, se tratavam os cavalos dos senhores.
Ao fundo da rua, confinado, um povo manso, desorganizado, sofredor, calado, resignado, excepto quando emigra. Até quando?
Antes, nos festivais da Eurovisão o país era referido carinhosamente, pelos apresentadores, por “le petit Portugal” um adjetivo que não era aplicado à Dinamarca ou à Bélgica, países bem mais pequenos; e que, com a Espanha, em complot ibérico, trocavam votos, um no outro, com a plateia a rir.
Portugal significava emigração e guerras coloniais. E, nos últimos anos do regime, foi encetado um processo de criação de grupos económicos, com ligações a empresas estrangeiras, dotadas de know-how e, com o desenvolvimento de um sistema financeiro baseado na especulação; todo esse projeto industrial e financeiro viria a ruir ainda em 1973, com a reabertura do Suez e o encerramento da Bolsa.
Politicamente, o regime, em 1969, promoveu um circense número de eleição de deputados, com candidaturas de oposição, procurando que, entre aquela, Mário Soares sobressaísse como a figura de uma mansa oposição legalizada (ele até aceitou não referir a guerra colonial durante a campanha); e que isolasse os mais radicais, dando assim, um sinal de abertura para o exterior. Esse projeto falhou e o regime endureceu, colocando a pide em trabalhos redobrados na repressão; até porque haviam surgido grupos capazes de proceder a mediáticos atos de sabotagem.
As ligações com Espanha não eram preponderantes, como hoje, mantendo-se a centenária preferência pela Inglaterra, porquanto “de Espanha, nem bom vento, nem bom casamento”; no entanto, Franco, nos anos 60 através de uma tecnocracia com raiz na Opus Dei, ultrapassou os níveis de vida vigentes num Portugal, atolado na guerra colonial.
Em dezenas de anos de omnipresente beatice católica e baixo nível educacional gerara-se uma forte emigração clandestina, em grande parte proveniente do campo e que se fixou, sobretudo em França. Eles, na construção civil e elas, como porteiras ou nas limpezas. O “bairro” de barracas em Champigny, povoado por portugueses, ficou na memória de quem o viu.
A guerra colonial era contestada por minorias e aceite, com condescendência pela maioria; os soldados tinham uma oportunidade de amealhar algum dinheiro para o casamento, no regresso da guerra; e, entre os mais instruídos, só uma minoria se decidiu pela fuga. Tudo, num contexto global dominante, de consideração das colónias como território pátrio.
A pide não foi justiçada, Caetano e Tomás foram conduzidos para o Brasil e não houve Nuremberga para julgar o regime ditatorial mais duradouro da Europa; houve sim, uma imensa lavandaria, uma imensa reciclagem que conduziu a “isto” – o regime atual.
Houve fugas de capital (que continuam… agora incluídas em estatísticas), nacionalizações de empresas falidas, recapitalizadas pela carga fiscal e pela perda de poder de compra que se seguiu à “normalização" do 25 de novembro. Seguiram-se após 1985, as privatizações inseridas em redes transnacionais ou em alguns dos grupos empresariais sobrantes; estes que, entretanto, se ancoraram no comércio a retalho ou como beneficiários de parcerias público-privadas, sem desdenharem o maná dos fundos comunitários. Da banca de raiz nacional sobrou a majestática CGD; e das burlas BPN ou BES ficaram os prejuízos.

Os estados-nação surgiram no século XVII como delimitações criadas por capitalistas nacionais em feroz concorrência face ao exterior. Hoje, em Portugal, quase não existem capitalistas de origem, com dimensão para atuar, num quadro global ou sequer, europeu.

Existe, sobretudo, um espaço desconexo, atravessado pelas redes das multinacionais interessadas na posição geográfica ou, no (baixo) preço do trabalho. Um espaço parasitado por uma classe política de baixo quilate cultural e ético, integrada em redes mafiosas ou do capital financeiro. Um espaço habitado por dez milhões de seres humanos, pobres, enjaulados, mansos e, para mais, sem futebol, há várias semanas...

Ninguém sabe

por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 25/04/2020)

Miguel Sousa Tavares

1 Em 2008 e nos anos que se seguiram, tivemos todos de tirar um curso apressado de finanças públicas, gestão de défice, de dívida, mercados, austeridade. Desta vez, estamos em aulas intensivas de epidemiologia, infecciologia, saúde pública, matemática aplicada ou gestão hospitalar. De manhã à noite, ouvimos e lemos todos os especialistas de todas as áreas envolvidas, de todos os países, de todos os hospitais, de todas as Universidades, médicos, técnicos, cientistas, investigadores, e, em relação às questões essenciais, quase tudo permanece por esclarecer: é melhor a estratégia de contenção inicial à viva força ou a rápida obtenção da imunidade de grupo, através da contaminação livre de grande parte da população? Que medicamentos, dos existentes, são, de facto, eficazes, e em que fase, para conter a progressão da doença? Quanto tempo dura a fase de contágio? Os ditos recuperados podem voltar a ficar infectados?

Nunca tantos procuraram tanto e souberam tão pouco. E foi citando Churchill, após a Inglaterra ter ganho a primeira batalha contra a Alemanha, a meio da II Guerra, que Bill Gates — talvez o ser mais inteligente e mais útil do planeta (e que previu e avisou contra uma pandemia assim, em 2015) — resumiu acertadamente a situação em que estamos: “Ainda não é o princípio do fim, mas talvez o fim do princípio.” Para Bill Gates, há uma má e uma boa perspectiva. A má é que o Monstro só será dominado quando estiver disponível para a maior parte da Humanidade uma vacina eficaz, e isso não acontecerá tão cedo; a boa é que, depois disso, o mundo evoluirá para melhor, haverá melhores instituições internacionais, melhor espírito de cooperação e maiores avanços científicos partilhados.

2 Certas coisas, porém, nunca mudarão e, se calhar, como dizia o Príncipe de Salina, até é bom que assim seja. Por exemplo: no meio deste sufoco do coronavírus, até quase me passava despercebido o 150º aniversário do nascimento de um dos maiores malfeitores políticos da História: Vladimir Ilitch Ulianov, de seu nome. Não fosse a notícia de que Putin tinha aberto uma excepção ao estado de emergência em vigor na Rússia para autorizar os nostálgicos do PCUS a desfilarem na Praça Vermelha perante a mais célebre múmia conservada até aos nossos dias, a seguir à de Tutankhamon, e eu nem tinha dado por nada. Mas a data não escapou, claro, ao nosso PCP: Jerónimo de Sousa gravou um vídeo a proclamar a eterna lealdade dos comunistas portugueses a Lenine, essa “bússola para a orientação da nossa actividade”. 150 anos depois, e nada mudou. Mesmo no meio de uma catástrofe de saúde pública e de uma correspondente catástrofe económica, com as empresas paradas e fechadas por falta de procura e de mercado consumidor, a bússola leninista que orienta Jerónimo de Sousa em qualquer momento ou circunstância diz-lhe que não há nada de novo aqui: é uma ofensiva do “grande patronato, com toda a espécie de arbitrariedades, que tem de ser contrariada com opções que evitem o agravamento da exploração e do empobrecimento”. Venham daí as opções, caro Jerónimo de Sousa! Na certeza, porém, de que, não havendo almoços grátis e não nascendo o dinheiro debaixo da mesa, alguém terá de pagar a conta, no final. Seria interessante que explicasse quem pagará e como. Da mesma maneira que já vi dito que todo este dinheiro que o Estado agora terá de pedir emprestado jamais será pago. E eu pergunto: e, se assim é, quem é o que o vai emprestar?

3 Não é só o PCP que acha que não há razão alguma para pensar diferente do que sempre fez. A Ryanair, por exemplo, diz que se a obrigarem a voar com os aviões preenchidos só a 66%, o seu negócio não é rentável. A rentabilidade do negócio depende de aviões sempre a rebentar pelas costuras, tripulações sempre a voar no limite das horas, passageiros tratados como gado, prioridade de atendimento e tempos de espera mínimo nos aeroportos, e taxas mais baratas em troca da frequência dos voos. Em contrapartida, esta e as outras low cost proporcionam a milhões de passageiros a possibilidade, que de outra forma não teriam, de viajar a custos acessíveis. O seu negócio é a quantidade e não a qualidade. Mas os custos indirectos que acarretam, e que nunca são falados, são imensos: não apenas a poluição que acrescentam, mas também os novos aeroportos, como o do Montijo, que se tornam necessários por sua causa, ou a massificação turística das cidades para que contribuem decisivamente e que é um excelente negócio para a hotelaria e uma péssima existência para os habitantes locais.

Entre um mundo governado por um cientista ou por um estadista, eu prefiro sem hesitar o do estadista. Porque não basta salvar a espécie humana, é preciso que, no final, ela se mantenha humana nos seus valores

A questão que se vai pôr já de seguida, e a uma escala global, é que tipo de recuperação económica queremos e vamos ter. Empresas e empresários como a Ryanair e Paul Ryan vão defender e pressionar para que se regresse imediatamente ao business as usual, garantindo, e talvez com razão, que essa é a forma de assegurar uma recuperação rápida. Porém, há uma grande diferença: agora sabemos. Agora, ninguém pode dizer que não sabe, que não viu, que não aprendeu nada. Acreditar que podemos continuar a ter 14 milhões de pessoas em 230 mil voos nos céus todos os dias, que podemos continuar despreocupadamente a queimar recursos naturais que sabemos ser finitos e a envenenar o ar que respiramos, que podemos continuar indiferentes à sorte de milhões de pessoas que ainda morrem de fome no mundo enquanto tantos vivem no luxo e no desperdício, é acreditar que, depois disto passar, tudo ficará apenas como um susto e não como uma lição.

Talvez ingenuamente, eu acredito que desta vez vamos — as pessoas comuns, os consumidores comuns — querer ter uma palavra a dizer. Que não vamos ser carne para canhão, destinatários obedientes e amorfos de escolhas e gostos que outros fizeram em nosso nome e de que nos convenceram que não poderíamos absolutamente prescindir. Que vamos querer menos e que menos pode ser melhor. Que vamos querer estar mais bem informados, reflectir mais, olhar com olhos de ver, e que, uma vez que já aprendemos que por mais urgente que tudo seja, o tempo pode sempre ser suspenso, vamos ter menos pressa e mais tempo.

4 E ainda vamos ter saudades de Angela Merkel. Ela evoluiu muito desde 2008 e, agora, liberta daquele seu sinistro doutor Schäuble — que fazia lembrar o general Millán-Astray, do “Viva la muerte!” — Merkel tornou-se simultaneamente mais humana e mais inteligente. E, logo, mais estadista — talvez o único estadista de uma Europa voluntariamente pequena. No Bundestag, na véspera do Conselho Europeu, ao mesmo tempo que fazia o seu discurso “sangue, suor e lágrimas” aos alemães, dizia-lhes também que esta era a hora de “mostrar quem somos e quem queremos ser na Europa”. Mas não chegou para convencer os que acham que a Europa só lhes interessa como mercado único e território de caça fiscal: Holanda, Finlândia, Áustria e Suécia. Pessoalmente, tenho pena pela Suécia, que é um grande país, de notável gente. Os outros não interessam para nada: a minha ideia de Europa passava bem sem eles.

5 Regresso ao princípio: ninguém sabe. Ninguém sabe como isto acaba e nem sequer se acaba bem. Sendo que há diversas formas de acabar mal e acabar bem. A solução está na mão dos investigadores e dos cientistas, de quem todos esperamos a tão ansiada vacina. Mas isso não quer dizer, ao contrário do que já vi escrito, que a crise devesse ser gerida por cientistas e não por políticos. É justamente o contrário: não há crise mais política do que esta, em todos os aspectos que comporta. E, se dúvidas eu tivesse, elas desfizeram-se ao ler aqui, na semana passada, a entrevista à cientista Maria Manuel Mota, Prémio Pessoa, Prémio Pasteur, comendadora do Infante D. Henrique, etc. Diz ela que este é “um vírus bonzinho” porque só mata velhos e portanto a solução é trancar os velhos a sete chaves, proibi-los de ver os filhos e os netos, de sair à rua, de ter vida enquanto não houver vacina. O contrário, sustenta, daquilo que defendeu Angela Merkel, para quem não se pode libertar os jovens e os adultos e prender os velhos.

Entre um mundo governado por um cientista ou por um estadista, eu prefiro sem hesitar o do estadista. Porque não basta salvar a espécie humana, é preciso que, no final, ela se mantenha humana nos seus valores.

6 E, já agora, seria bom deixar de usar a horrível palavra idoso, que rima com ranhoso, sidoso, leproso, tuberculoso e outros estados a evitar. Eu sei que faz parte do novo léxico politicamente correcto que obriga a dizer recluso em lugar de preso, toxicodependente em lugar de viciado em drogas ou drogado, invisual em lugar de cego, arguido em lugar de réu, e que, no limite, levava a ex-Presidente do Brasil, Dilma Rousseff, a exigir ser tratada por “senhora Presidenta”, ou levou o partido espanhol de extrema-esquerda Unidos Podemos a mudar o nome para Unidas Podemos. Mas nem por isso deixa de ser ridículo, apenas o é mais: alguém diz “o meu idoso” em vez de “o meu velho”, quando se quer referir carinhosamente ao pai? Já imaginaram o que faríamos à literatura se aplicássemos a ditadura do idoso a alguns casos célebres: “O Velho Que Lia Romances de Amor”, de Luis Sepúlveda, de que aqui falei a semana passada, passaria a “O idoso que lia romances de amor”; “O Velho e o Mar”, de Hemingway", passaria a “O idoso e o mar”; “Os Velhos Marinheiros”, de Jorge Amado, seriam “Os idosos marinheiros”, e até o nosso ‘velho do Restelo’ acabaria transformado no ‘idoso do Restelo’. Isto, para não rematar dizendo que “idosos são os trapos”. Tenham lá mais respeito pelos velhos!

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

A vacina é um mau negócio?

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso, 25/04/2020)

Uma reportagem do “Financial Times” desta semana apresenta declarações surpreendentes de alguns dos responsáveis das maiores empresas da indústria farmacêutica. Em resumo, põem em cima da mesa uma chantagem: precisamos de milhares de milhões de dólares nas nossas contas antes de começarmos a produzir qualquer vacina. E acrescentam um apelo, que os governos se entendam para tomar conta da distribuição mundial da vacina, quando ela existir. Esta curiosa combinação de capitalismo ganancioso e de socialismo planificador é o retrato da pandemia.

ELES QUEREM LUCROS

Começo pela ganância, afinal ela vem sempre primeiro. David Loew, vice-presidente da Sanofi Pasteur, quer rios de dinheiro antes mesmo da certeza de que uma vacina resulte: “Se a indústria não souber como vai estar o mercado daqui a 18 meses, não pode pagar todos os custos.” A preocupação com o mercado, explica Loew, é que se poderia repetir o que se passou com o ébola ou com a gripe de 2009, passado o susto a procura decresce. Ou seja, se os curamos, os doentes passam a ser um problema, não compram mais medicamentos. Christophe Weber, executivo da japonesa Takeda, explica que “o meu medo é que, depois da epidemia, toda a gente se desinteresse”. Yusuf Hamied, diretor da Cipla, grande produtor farmacêutico na Índia, reforça que “não podemos assumir todos os custos”, lembrando que, em 2009, estava a produzir um antiviral cuja procura caiu depois do susto da gripe. David Ricks, presidente da Eli Lilly, e também da Federação Internacional de Produtores Farmacêuticos, apela ao apoio dos governos, explicando com candura que “não deve haver quem obtenha vantagens, concordo a 100%. Mas os investidores dão-nos capital e esperam um lucro”.

O coro de dirigentes da Big Pharma descreve o seu receio. De facto, eles demonstram que a indústria privada é incompetente para conduzir a investigação científica de base. Sem o aguilhão do lucro fácil, os seus laboratórios resumem-se ao mercado imediato e não investem no que demora e mobiliza recursos para medicamentos cuja rentabilidade futura é desconhecida. E o mercado exclui: quando o Brasil e a África do Sul lutaram contra as multinacionais farmacêuticas para disporem de tratamentos para o VIH a preço comportável, foi só quando ameaçaram produzir genéricos sem autorização que as empresas aceitaram negociar. Considerando estas estratégias de lucro, percebe-se porque é que, apesar de a classe dos coronavírus ser conhecida há décadas, estamos ainda desprotegidos perante os seus riscos. O mesmo critério se aplicou a outras doenças: como o ébola ficou no Sul do planeta e não ameaçou os países do Norte, as pesquisas para o tratamento foram desvalorizadas. Assim, se não são laboratórios universitários e públicos a assumir a linha da frente da investigação científica, o mundo fica mais vulnerável.

O PÚBLICO É A NOSSA SALVAÇÃO

E é aqui que entra a versão socialista e planificadora das grandes farmacêuticas, pedem que os governos se entendam e dirijam a distribuição da futura vacina. Têm razão. No mesmo sentido, Seth Berkley, presidente da Gavi, um fundo internacional para as vacinas, diz que “precisamos de um acordo sobre o acesso e produção dado o risco, para comprar grandes quantidades a preços baratos para distribuir nos países com baixo rendimento”. Ou que, “se não houver solidariedade mundial, a pandemia afetará mais algumas regiões e levará a migração”. Severin Schwan, presidente da Roche, suíça, pede um acordo entre os governos para gerir a distribuição de medicamentos.

Considerando o que a Casa Branca já tentou fazer, apropriando-se de carregamentos em aeroportos internacionais e tentando adquirir o exclusivo de remédios preparados em empresas estrangeiras, a disputa pelo stock da futura vacina é um perigo. Só o evitamos se umas Nações Unidas dirigirem a sua distribuição. Não é fácil, mas se não for assim já sabemos quem serão os sacrificados. A ordem mundial do caos é a maior ameaça contra os pobres do Norte do planeta e contra todo o seu Sul.

O Chico afinal não vem

Era hoje que se entregava o Prémio Camões a Chico Buarque. Já nem sei se pela sua obra literária, que revelou o grande romancista, se pela poesia e pela música, que nos ensinam a viver desde há tanto tempo. Mas a pandemia fechou o Atlântico e a hora não está para a festa que seria esse reconhecimento da grande cultura popular; até fica adiada a bofetada de luva branca em Jair Bolsonaro e no seu discurso de ódio. Será depois. E se esta tarde ouviremos a ‘Grândola’ nas janelas, sugiro-lhe que também nos lembremos desse ‘Tanto Mar’ que nos juntou, bem como da curiosa história das duas versões, a de 1975, que foi proibida no Brasil da ditadura e divulgada em Portugal, a da festa, e a de 1978, a da desilusão depois da festa. Repare no essencial, o que o tempo não altera: há sempre um cheiro de alecrim e uma primavera em algum canto do nosso jardim. Navegar, navegar.

Sei que estás em festa, pá,
Fico contente,
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim.

Eu queria estar na festa, pá,
Com a tua gente,
E colher pessoalmente
Uma flor do teu jardim.

Sei que há léguas a nos separar,
Tanto mar, tanto mar.
Sei também quanto é preciso, pá,
Navegar, navegar.
(...)
(1975)

Foi bonita a festa, pá,
Fiquei contente,
Ainda guardo renitente
Um velho cravo para mim.

Já murcharam tua festa, pá,
Mas certamente
Esqueceram uma semente
Em algum canto de jardim.

Sei que há léguas a nos separar,
Tanto mar, tanto mar.
Sei também quanto é preciso, pá,
Navegar, navegar.
(...)
(1978)

2021 começa a desenhar-se, e é feio

Ainda nos vamos arrepender de ter tolerado, alguns com bonomia, a alegoria da ‘guerra’ para descrever a resposta à covid-19. Estava-se a ver que a imagética guerreira se iria espalhar sem amanhã, os governantes adoram imaginar-se como Churchill de charuto ou como Eisenhower na sala dos mapas, com tanques miniatura à voz dos chefes (Schwarzkopf na “Tempestade do Deserto” é um mito mais infeliz, melhor ficar com Eisenhower). O problema é que uma guerra que não é guerra conforta governantes que se pensam como um comando militar, permitindo a ideia de que viveremos em exceção permanente. Não faltarão ministros inebriados pelo silêncio no espaço público ou pela vontade de calar oposições. Há um Orbán escondido em cada esquina do poder.

No entanto, o pior dos efeitos do simulacro guerreiro é que banaliza as ameaças. A maior de todas é Donald Trump, sobretudo se for reeleito no outono, o que parece possível, e o seu foco é o Pacífico. Já se notou, ao longo dos últimos quatro anos, que a grande mutação geoestratégica foi a vertiginosa aceleração da disputa entre os EUA e a China, mas 2021 será pior do que já vimos, e por duas razões.

A primeira é que a pandemia pode estar a ser o Momento Chernobyl dos Estados Unidos. A força de Washington como poder hegemónico baseia-se no seu poder económico e tecnológico (a maior concentração de capital), monetário (80% das transferências nas cadeias produtivas e dois terços das emissões de títulos são em dólares), militar (800 bases no estrangeiro) e até cultural (a língua e a comunicação). Este poder estabelece uma rede de alianças. Manda, mas tem-se desgastado militarmente (o fracasso no Afeganistão, no Iraque, na Somália), tecnologicamente (a derrota no 5G) e economicamente (o crescimento da China), mas sobretudo politicamente. O isolacionismo de Trump assusta os seus subordinados e o seu negacionismo, primeiro, e a irresponsabilidade perante a covid, depois, demonstram que não é um líder. Mais fraco é mais ameaçador.

A segunda mudança é a emergência da China como potência mundial, usando o tempo contra o rival. Estabelece redes (cem países têm dívidas à China, mais do que ao FMI). Exibe a sua capacidade (4 mil milhões de máscaras produzidas em cinco semanas) e oferece cooperação onde a Casa Branca mostra desprezo. Não tem uma moeda dominante, mas tem poder financeiro. E tem Trump do outro lado, a certeza da incerteza. Em 2021, estes colossos estão a acelerar um contra o outro, e isso é uma ameaça belicosa. Se há risco de guerra, para já económica, é aí que desponta.

Duas ou três coisas que sei sobre a crise covid-19

Posted: 27 Apr 2020 03:08 AM PDT

«Quando andei no liceu, há muitos anos, tive um saudoso professor de filosofia que gostava de nos alertar para o sentido da vida com a seguinte frase: “A vida é uma fome!” Claro que só muito posteriormente, com os desenvolvimentos da biologia molecular, pude apreciar o real alcance daquela afirmação (que, na época, se cingia ao campo da psicologia). Trata-se de um enunciado de enorme lucidez.

Biologia...

De facto, os constituintes de tudo o que é vivo e do que à sua volta gravita são moléculas (e seus agregados). Por este motivo, a base de toda a vida encontra-se imersa no domínio quântico. Isto significa que, em termos clássicos, nunca conseguiremos entender cabalmente o seu âmago.

A metáfora “a vida é uma fome” ajuda-nos a compreender o que se passa. Traduz simplesmente que a nível das moléculas a regra do jogo é “comer” outras, isto é, captá-las e assimilá-las. Continuamente. Moléculas da vida existem desde há milhares de milhões de anos – ou seja, têm experimentado “comer” outras de todas as maneiras possíveis.

Quando uma maneira de “comer” resulta, elas repetem-na, continuamente, sucessivamente, até que, por sua vez, sejam comidas (assimiladas) por outras. E assim por diante… A vida procura inerentemente “sobreviver”. Experimentando novos caminhos sempre que as condições se alteram. Para conseguir sobreviver. É amoral. A moral é uma invenção dos seres humanos.

O vírus da covid-19 é um agregado molecular que encontrou um modo de se proteger e manter a coerência. Multiplica-se tirando partido da estrutura e funcionamento das células humanas. A propagação é feita aparentemente através de gotículas de líquidos orgânicos. O vírus espalha-se, portanto, não por efeito de agentes atmosféricos mas pelas movimentações e contactos das pessoas que o transportam.

Ecologia…

A pandemia resulta do excesso louco e insalubre de contactos próximos, frequentes, a qualquer distância, em toda a parte. É uma doença da globalização selvagem que afogou o mundo durante as últimas décadas apoiando-se na propaganda perversa e enganosa do “low-cost” e das experiências únicas e exóticas. Mas fica uma grande questão: quantos contactos próximos devemos ter?

Uma coisa é certa, não podemos confiar na publicidade massiva, que excita os sentidos amarfanhados pelas rotinas e pelas dificuldades diárias, de modo quase pornográfico, que só serve os interesses da acumulação, por meio de taxas de intermediação em tudo o que se move neste planeta, de mais e mais capital financeiro. O resultado está bem à vista. O medo de contágio instalou-se entre nós.

Há dois mil anos atrás, a quase totalidade da população deslocava-se a pé: percorria cerca de cinco quilómetros numa hora. Curiosamente, esta era a dimensão dos aglomerados urbanos antigos, das vilas ou dos centros das cidades de que tanto gostamos. Mas hoje o avião permite que nos desloquemos cerca de mil quilómetros durante a mesma hora.

Mudamos de país, de regras, de culturas, de hábitos ancestrais, quase que num abrir e fechar de olhos, sem tempo para nos adaptarmos, sem paciência para aprendermos a conviver com os outros que visitamos. Para rapidamente regressar a casa e depois continuarmos a fazer mais do mesmo. Quem lucra com isto? O intermediário facilitador desta dança zombie – a finança internacional.

Economia…

Claro que este “aspirador” financeiro sistémico provoca necessariamente uma escassez de recursos no outro extremo, nas finanças locais, nos orçamentos das nações soberanas que assim se viram obrigadas a desinvestir em tudo o que releva dessa soberania: protecção civil, justiça, saúde, educação… porque os sectores que propiciam a nova “promiscuidade social” (inteligente expressão que ouvi a um amigo) à distância, esses não podem sofrer beliscadura.

Estamos a viver uma época de enorme desajuste entre as mudanças tecnológicas e a mudança social. A capacidade material de transformação da realidade tornou-se incomensurável em relação à capacidade de adaptação e aprendizagem imaterial, cultural, institucional, disponível. Há que dominar este desajuste, tomando decisões corajosas com vista ao futuro.

A situação de medo colectivo em que vivemos é insustentável. Todos os países ligados electronicamente, em simultâneo, observando as faces amedrontadas dos outros. Não admira que a quarentena geral seja uma pobre medida de resolução do problema. A quarentena é eficaz para os infectados! A prioridade terá que ser a sua sinalização para que sejam tratados. Isolem-se em alternativa as populações umas das outras e retrocederemos à idade da pedra!

A razão deste grave entorse civilizacional tem que ver com a sobrevivência no imediato dos serviços de saúde nacionais. Ninguém quer o colapso dos sistemas de saúde nacionais por esse mundo fora. Seria um descalabro, não haveria sequer cuidados nos sectores privados capazes de atender às doenças dos muito mais ricos, que assim nem teriam para onde ir em tratamento.

E o futuro…

Julgando que tudo se acalmará em breve (virá uma vacina!), já se fazem contas aos montantes que foram despendidos à pressa para salvar os sistemas de saúde, valores esses que virão a ser pagos com juros nos anos próximos pelos suspeitos do costume – os contribuintes. Assim se retomará a acumulação de capital financeiro, temporariamente perturbada.

Chegados aqui, vemos com clareza onde a máquina da “globalização” gripou. Que fazer? Eis outra grande questão. Vemos que o caminho passa por revalorizar o ser humano, repor-lhe a dignidade de cidadão, empoderá-lo para que fique ciente dos seus deveres, desmascarar os falsos gurus, obrigar os governos a investir naquilo que é o mais importante – e que tem sido desvalorizado sistematicamente por estar ligado à “cultura”.

Teremos de começar hoje mesmo a construir as novas instituições que farão a humanidade evoluir, aproveitando a profunda transformação no domínio da comunicação que estamos a viver.»

João Caraça

Os novos sonhos e o elogio da “estupidez absoluta”

Curto

Germano Oliveira

Germano Oliveira

Editor online

28 ABRIL 2020

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“Hoje sonhei com a discoteca, estávamos lá todos, pós-pandemia, e havia menos gente que o normal mas tudo tranquilo. Vou ficar deprimida o dia todo”: a discoteca tem nome mas é um detalhe e por isso fica incógnito; a mensagem tem autora, o nome dela já não é um detalhe porque é nome de uma amiga mas a privacidade é um direito; a depressão dela deve-se a saudade, é feita dos nomes dos amigos todos que lhe fazem falta; é no “havia menos gente” que está o pormenor psicológico - até os nossos sonhos do futuro já são feitos de menos pessoas. “O medo e a ansiedade foram úteis para cumprir o isolamento e vão ser bloqueadores na hora de voltar a sair. (...) A ideia de que daqui a uns tempos tudo será igual ao que era é falsa”, está aqui no Expresso.
O país começa a preparar-se para voltar lentamente à rua e “a reabertura da economia é uma experiência nova”, pode ler-se neste artigo de opinião do Expresso que devia ser causa para os decisores políticos chamarem os autores do texto para um debate, mas creio que podemos ser mais ousados na formulação, “a reabertura da vida é uma experiência nova” e trata-se da discussão do momento: “António Costa, Marcelo Rebelo de Sousa, os líderes partidários e conselheiros de Estado reúnem-se esta terça-feira para mais uma conversa com os especialistas da Direcção-Geral da Saúde e do Instituto Ricardo Jorge”, explica o Expresso. A decisão de deixar o estado de emergência não implica acabar com o nosso estado de prudência porque apesar de “os internamentos estarem a cair desde 16 de abril” ainda “não começámos a diminuir o número de casos” e “a taxa de retransmissão não deu bons indicadores este fim de semana, foi a própria ministra da Saúde, Marta Temido, que avisou para o facto de a taxa (o famoso Ro) ser agora de 1.04, depois de já ter estado nos 0.95, o que significa que cada pessoa infetada passou a infetar mais do que uma em média e isto não é um bom sinal” - mas há mais incertezas, estão todas relatadas ali no site do Expresso, onde se expõe também como “António Costa quer ter uma ‘folga’ confortável que permita ir gerindo a saturação do SNS, sabendo-se à partida que abrir alguns sectores de atividade pode contribuir para o aumento do risco de infeções”.
O primeiro-ministro garante que “há um ‘consenso’ para baixar o nível de emergência em Portugal”, a decisão é esperada para daqui a dois dias e tem consequências e duração incertas: “O tom é misto: por um lado, António Costa deseja, e assume-o, que a economia possa ser reaberta e que se passe a uma nova fase de ‘convivência’ com o vírus; por outro, o perigo está muito longe de desaparecer e o Governo está consciente de que será preciso avaliar passo a passo o levantamento de medidas e, se necessário, recuar”, analisa o Expresso, que identifica também as cautelas da oposição - “o PAN é uma das vozes que se mostram mais preocupadas, (...) o Bloco de Esquerda quer ‘aguardar’ a concretização das medidas para opinar mas deixa desde já uma ressalva, ‘o levantamento das medidas de restrição deve acontecer quando as condições de saúde o permitirem’, (...) o PSD reserva opiniões para depois de ouvir especialistas e Governo, o CDS avisa que ‘o levantamento das medidas de contingência tem de acontecer de forma gradual e assimétrica, de modo a que o esforço que todos temos feito não fique comprometido’, na Iniciativa Liberal argumenta-se a favor do regresso gradual à atividade económica”.
O Expresso pergunta aqui se “o desconfinamento será à prova de críticas” entre os especialistas de Saúde e tem respostas nesse mesmo artigo: a Ordem dos Médicos pede máscaras-máscaras-máscaras e diz que não há condições para o regresso à normalidade, “temos de continuar a fazer as medidas restritivas no dia a dia”, a Organização Mundial da Saúde considera que “o levantamento demasiado cedo das restrições impostas para combater a covid-19 pode levar a um ‘ressurgimento mortal’ da pandemia”, são alertas que se juntam aos da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública e dos especialistas do Instituto Ricardo Jorge: “não há margem de manobra” para passos em falso.
Notas finais: se tem filhos em creches leia isto, se eles estão a estudar noutros anos de ensino então é importante saber aquilo e entretanto cumpra as indicações das autoridades para que os sonhos voltem rapidamente a ter mais gente.