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segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

As lágrimas furtivas de Fernandes

 

(José Soeiro in Expresso Diário, 24/02/2017)
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José Manuel Fernandes, que se celebrizou nos tempos em que, enquanto diretor do Público, fez dos editoriais do jornal uma apologia da ocupação e da guerra de Bush Jr. (quem não se lembra da revelação sobre “a lágrima furtiva” de comoção que lhe rolou pelo rosto quando a invasão se consumou?), vive agora numa irritação permanente, de que nos vai dando conta a partir do cantinho do Observador onde se refugiou.
O pobre cronista sente-se perseguido por tudo. São os cartazes do Bloco contra a precariedade que é obrigado a ver de cada vez que entra em Lisboa. É Catarina Martins que lhe entra pela casa adentro a falar do tema “todos os dias”, quando não mesmo “todas as horas”. É o PS que, depois da auspiciosa Terceira Via na Europa, estaria agora “colonizado pelas ideias radicais” dos bloquistas. E é até a Direita, que teria deixado de ser uma reserva de bom senso: apesar de votar contra as medidas de combate à precariedade, o que esta aponta ao Governo é o defeito de este não ter ainda diminuído a precariedade tanto quanto apregoou. “Porque não se calam com isso dos precários?”, pergunta Fernandes em tom de desespero. O Universo está de pernas para o ar e o cronista sente-se abandonado por toda a gente, não há sequer PSD e CDS que lhe valham. O vírus do esquerdismo invadiu todos os cérebros e o mundo conspira contra ele: “a linguagem que utilizamos todos os dias está corrompida, foi contaminada pela ideologia de bloquistas e comunistas e nem demos por isso”.
O tom é apocalíptico, mas tem o mérito de denunciar como o campo político a que Fernandes pertence se sente derrotado. Durante anos, apresentaram a precarização como uma fatalidade que liberta e como um imperativo para combater a “segmentação do mercado de trabalho”. A solução da Direita era arrasar com os direitos laborais de todos e promover uma harmonização no retrocesso: “o nosso problema não é acabar com o trabalho precário – é tornar menos definitivos todos os restantes contratos de trabalho. O problema está a ser colocado de pernas para o ar”, explica o cronista, desconsolado. Só que essa ideia, que a Direita política e académica tentou vulgarizar, foi derrotada na sociedade portuguesa. Ninguém a deseja. Surpresa das surpresas, as pessoas compreenderam que era uma trapaça que só tinha um efeito: comprimir salários, instalar a insegurança no quotidiano, promover uma competição que mais não era que uma domesticação pelo medo, tornar a vida uma aflição permanente. E, facto incontestável, a precarização só produziu desemprego: mais de 60% dos pedidos de subsídio de desemprego resultaram da cessação de um contrato a prazo. A realidade não para de fazer desfeitas aos nossos liberais.
Com uma maioria negociada à esquerda e uma Direita em retirada, Fernandes agarra-se à única tábua de salvação que parece ter encontrado no caminho: a OCDE e os seus relatórios.
É certo que a OCDE continua a combinar uma recolha interessante de dados com o seu pressuposto de sempre, que é a ideologia da flexibilização laboral como solução para o mundo do trabalho. Sugere aliás o que a Direita portuguesa não tem coragem de verbalizar: acabar com os limites ao despedimento que estão na própria Constituição e demolir a contratação coletiva. Só que até a OCDE reconhece que a precarização real foi tão longe em Portugal, nomeadamente por via da transgressão à lei, que no meio do relatório lá vai dizendo que a fiscalização do trabalho devia ser reforçada. Correndo o risco de agravar o estado de exasperação de Fernandes, não resisto a dar-lhe mais esta má notícia, que uma leitura menos atenta do relatório pode ter deixado escapar: mesmo a OCDE, que é o que se sabe, considera excessivo o recurso dos patrões portugueses aos contratos a prazo e sugere que se agravem as contribuições para a segurança social dos empregadores que recorrem a esta modalidade precária de emprego.
O último ano e meio, é certo, não tem sido um paraíso e muitos problemas estruturais do país e do seu atraso económico mantêm-se: salários médios muito baixos, níveis inadmissíveis de precariedade, uma percentagem insustentável de desempregados sem apoio, o fardo da dívida a impedir um investimento público consistente capaz de promover mais emprego. Mas uma coisa é certa: a ideologia da precarização foi derrotada no campo das ideias.
A solução da Direita, que era responder à precariedade abolindo os direitos do trabalho, não tem adeptos entre o povo. É isso que a deixa com os nervos à flor da pele. Agora, é a hora da Esquerda. Por mais que Fernandes desespere, o combate à precariedade é mesmo para continuar. Por isso, meu caro José Manuel, vai ouvir falar muito dele, porque está ainda a dar os primeiros passos. O melhor é ir-se habituando.
 
Ovar 26 de fevereiro de 2017
Álvaro Teixeira