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sábado, 28 de outubro de 2017

Indignem-se: ao contrário do adultério, a violência doméstica é crime


Indignem-se: ao contrário do adultério, a violência doméstica é crime

Estátua de Sal
por estatuadesal
(Paula Cosme Pinto, in Expresso Diário, 27/10/2017)
Paula Cosme Pinto
Hoje, em várias cidades do país, há protestos sob o mote “Machismo não é justiça, é crime”. Depois de anos a acharmos que a violência doméstica era um tema tão batido que já nem era notícia, o povo sai à rua por iniciativa própria para gritar contra isto. Pela mulher que foi perseguida, ameaçada, raptada e agredida com uma moca com pregos, mas que os nossos juízes consideraram não ser assim tão vítima porque “o adultério da mulher é um atentado à honra do homem”. E por todas as vítimas das cerca de 27 mil ocorrências de violência doméstica registadas pelo MAI, só em 2016. Homens e mulheres, embora elas representem 80% dos casos. Quantas pessoas realmente viram justiça ser feita? É que ao contrário do adultério, a violência doméstica é crime.
Quando falamos de violência doméstica, há algo que devemos de perceber: o medo das vítimas é como um cebola, tem várias camadas. O medo do agressor, parece-me óbvio. Mas é preciso pararmos para pensar também no medo do que os outros vão dizer, no medo de não ser credibilizada e apoiada pelos demais, o medo das consequências desestruturantes na sua vida, o medo da injustiça, o medo do tempo demasiado longo que um processo pode demorar a ser resolvido em tribunal, o medo do confronto com o agressor durante todo esse processo, o medo do que pode acontecer se, depois de recorrer às autoridades, o agressor acabar por permanecer em liberdade.
Em casos como o que envolve o Tribunal da Relação do Porto – e eles acontecem demasiadas vezes, isto não é caso único em Portugal - todos estes medos são legitimados. E a pessoa mais penalizada no meio de tudo isto é precisamente quem já passou por todo um processo traumático e que merecia ser protegida pelo Estado de Direito em que vive. O mesmo Estado que é representado pelos juízes que acabaram por a tornar vítima de mais uma agressão: a injustiça. Antes de fazerem a pergunta cliché do “mas porque é que ela calou em vez de ir logo à polícia?” quando se fala destes temas, pensem um pouco nisto.
O MACHISMO NÃO É UM PROBLEMA DE HOMENS, É UM PROBLEMA DE PESSOAS
O que me tem agrado particularmente na discussão gerada em torno deste caso inenarrável é o movimento conjunto de cidadãos e sociedade civil que poem de lado a habitual apatia. Que finalmente finalmente param para pensar precisamente em tudo o que está aqui implícito, e que se manifestam ruidosamente para além das redes sociais. Que discutem o tema, e mesmo que nem sempre as opiniões que são postas em cima da mesa sejam as mais construtivas, é bom sinal haver discussão. É que quem discute reflete, nem que seja por um segundo. É bom ver tanta gente a indignar-se e a pedir as explicações que nos são devidas a todos enquanto cidadãos. Uma indignação que surge, parece-me, porque finalmente percebemos coletivamente que a Justiça que falhou no caso desta mulher - e que pôs a sua vida em risco ao tomar decisões com base em juízos de valor misóginos e moralismos pessoais, com se fossem mais válidos do que a Constituição e Convenções Internacionais - é a mesma Justiça que nos pode falhar a qualquer um de nós.
Juntem-se aos protestos (em Lisboa na Praça da Figueira e no Porto na Praça Amor de Perdição, por exemplo), peçam explicações, indignem-se. Mas façamo-lo juntos, homens e mulheres, contrariando a ideia de que as mulheres deveriam ser mais sensíveis e empáticas nestas temáticas, uma vez que são elas as suas maiores vítimas. Neste caso concreto, estou farta de ouvir dizer que a juíza envolvida até tem mais culpa, lá está, porque é mulher. Ao dizermos isto esquecemo-nos que esta é só outra uma forma de punirmos mais severamente o sexo feminino que, como todos deveríamos saber, não é imune à mentalidade machista. O preconceito é generalizado, tal como a forma estereotipada como olhamos para a nossa sociedade.
A raiz do problema vai ter sempre ao mesmo: a uma mentalidade misógina que nos tem sido passada a todos nós, de geração em geração. À qual nos adaptámos (homens e mulheres), e a qual vamos aceitando de formas distintas dentro dos papéis que foram criados para cada um dos géneros dentro da sociedade.
Exemplo simples dessa mentalidade é considerarmos que o adultério feminino é altamente condenável, mas o masculino é algo relativamente normal – até porque também ainda se acredita que o homem é mais ativo e libertino sexualmente do que a mulher. Hoje, estamos não só a questionar esta mentalidade cheia de moralismos e estereótipos, como a indignarmo-nos contra eles. É o que fazem as sociedades que não perdem a lucidez, verdade seja dita, e isso é tão bom. O machismo não é um problema de homens, é um problema de pessoas. A luta contra ele também deve ser assim.