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terça-feira, 19 de maio de 2020

O dilema do sr. Melo

Posted: 18 May 2020 03:21 AM PDT

«Há quem diga que o sr. André Ventura é comentador desportivo. E talvez o sr. Nuno Melo seja uma espécie de apanha-bolas do PPE no Parlamento Europeu. Tudo os une e tudo os divide, mesmo quando a política não passa de um jogo de claques de futebol. O sr. Ventura vê perigosos ciganos em cada esquina. O sr. Melo vislumbra uma conspiração marxista na telescola. Cada um escolhe a história da carochinha que prefere. A do sr. Ventura é conhecida: é uma transpiração de ódio. A do sr. Melo tinha-se manifestado só em dias de míldio intelectual, quando fez uma vénia ao partido espanhol Vox. Claro que há uma enorme diferença ideológica entre o sr. Nuno Melo e o sr. André Ventura. O sr. Melo degusta escargots num café selecto de Estrasburgo. O sr. Ventura come caracóis na tasca da esquina. Daí estarem em agremiações diferentes.

Esse é um cisma ideológico que explica muita coisa. O sr. Melo teme viver no país dos sovietes, depois de folhear a aventura de Tintin publicada em 1930. Precisa de actualizar a leitura. Afinal, quis transformar a utilização de partes de um documentário emitido na telescola, onde o sr. Rui Tavares participava, numa tenebrosa conspiração bolchevique. Não era, mas o sr. Melo criou um “facto alternativo” para justificar a sua presença nas redes sociais e nos media. É uma pena saber que o sr. Melo não vai aparecer na telescola. Não se lhe conhece nenhuma ideia ou pedaço de ideia sobre qualquer tema que não seja política. Talvez, com um pouco de sorte, a birra do sr. Melo possa surgir, no futuro, no Canal Panda.

Dizia Maquiavel: “São tão simples os homens e obedecem tanto às necessidades presentes, que quem engana encontrará sempre alguém que se deixará enganar.” O mundo actual está cheio de crédulos. E ainda estará mais, quando a crise se revelar totalmente. O sr. Ventura já delimitou o seu canavial nesse novo mundo. Já o CDS não sabe o que é. Se democrata-cristão. Se de direita moderada. Se de direita extremista. Face a isso, os seus apoiantes mais moderados vão refugiar-se no PSD. Ou seja, o CDS arrisca-se a deixar de ser um partido. E passar a ser uma isca. Ou meia isca. E então lá se irá o lugar de eurodeputado do sr. Nuno Melo. É esse, provavelmente, o seu pavor. Daí esta estratégia de tentar ser uma versão moderna do bardo de Astérix, o divertido Assurancetourix. Só que, quando este começava a cantar, todos fugiam.

O sr. Melo gostava de ter os votos do sr. Ventura, mas agarrando-os com luvas de pelica. Para não ficar contaminado. O sr. Ventura desdenha o sr. Melo. Este detestaria ser o sr. Ventura. Os fatos e as camisas brancas do sr. Melo nunca conquistarão o eleitorado mais à direita. Porque, se o sr. Melo não tem arcaboiço para ser um ideólogo, também é incapaz de ser um sargento de tropas. Os partidos conservadores, tal como os sociais-democratas, crescem quando a polarização política é mínima. O CDS, perdido, não sabe se há-de ser sensato ou radical. A questão é que nenhuma das soluções o salva. Daí a política de terra queimada do sr. Melo.

A chegada do sr. Chicão não resolveu o problema. O CDS é hoje uma versão deprimente da canção A Moda do Pisca-Pisca. E, nela, o sr. Melo parece agora, para pena de todos, o groupie de um grupo onde o sr. Ventura é o vocalista. É certo que os partidos políticos são hoje simples máquinas eleitorais sem músculo ideológico. Jogam sobretudo com as emoções, que são mais úteis para ganhar eleições, do que com as ideias. Mas momentos como este necessitam de respostas complexas, e não de caldos de galinha. O sr. Melo nunca será um ideólogo de uma nova direita. Nem um líder para ela. Mas socorre-se da mesma falta de elegância: busca o maniqueísmo e o enfrentamento fácil, como a extrema-direita, para se mostrar. Poderia ter aproveitado para enriquecer a política. Não foi o caso.

É no meio do caos que, normalmente, vencem os radicais sem princípios morais ou éticos. O sr. Ventura sabe isso. Percebe que parte do eleitorado, que previamente foi polarizado, prefere soluções fáceis e rápidas em vez de respostas inteligentes e complexas. Isto não favorece os partidos tradicionais. Mas a arte destes, e da sobrevivência da democracia, está em lutar contra este tribalismo extremista. Como dizia Tywin Lannister: “Algumas batalhas são vencidas com espadas e lanças, outras com papel e caneta”. Será no território dos “vencidos pela covid” que se centrará o próximo debate político pelo poder. E a sua conquista. O sr. Nuno Melo, lamentavelmente para ele, não fará parte desta guerra dos tronos.»

Fernando Sobral

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Guião para a nova vida

Curto

Joana Pereira Bastos

Joana Pereira Bastos

Editora de Sociedade

18 MAIO 2020

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Bom dia,
Imagine que está a ver um filme na televisão e, por qualquer motivo, é obrigado a fazer pausa. Quando, passado algum tempo, volta a carregar no play, o filme já é outro. As personagens são as mesmas, mas o guião mudou. É mais ou menos o que está a acontecer às nossas vidas.
Com a reabertura das creches e das escolas secundárias, dos restaurantes, cafés e esplanadas, das lojas de maior dimensão, de museus, monumentos e galerias e até das visitas a lares, damos hoje um novo passo para retomar o filme da vida que conhecíamos. Mas, depois de dois meses de confinamento, nada é como antes foi.
O novo guião tem 35 páginas e o título não muito apelativo “Saúde e Atividades Diárias”. Foi escrito pela Direção-Geral da Saúde, o mesmo argumentista que nos últimos tempos tem definido as cenas que vivemos, e detalha ações e comportamentos “a adotar por todos”, em todos os contextos do dia a dia. Divulgado no final da semana passada, o manual ensina, por exemplo, como devemos lavar a roupa ou pôr o lixo na rua e determina que não devemos partilhar objetos pessoais, frequentar lugares movimentados ou ter “convívios dentro ou fora de casa”.
Tudo o que antes fazíamos sem pensar, todos os gestos que nos saíam naturalmente, como pôr os filhos na escola, ir jantar fora ou cumprimentar familiares e amigos, obedecem agora a instruções precisas. Não há margem para improvisos.
Nos últimos dias, proliferaram listas com normas e orientações para diferentes setores. Para os restaurantes, que hoje voltam a abrir portas com medo que o medo de todos os obrigue a encerrar depois, há um manual de dez páginas que discrimina as novas regras de funcionamento. A disposição das mesas deve permitir uma distância de pelo menos dois metros entre os clientes, que deverão ficar sentados na diagonal, embora as pessoas que vivem juntas possam ficar frente a frente a uma distância inferior. Pratos, copos e talheres só devem ser colocados na presença do cliente e todas as zonas de contacto frequente, como as mesas, maçanetas ou torneiras, têm de ser desinfetadas pelo menos seis vezes por dia. Deixa de existir a ementa tradicional para se escolher a refeição, os funcionários terão de usar máscara e o mesmo se recomenda aos clientes, exceto quando estão a comer. Qualquer semelhança com o que era antes ir a um restaurante será pura coincidência.
O mesmo acontecerá nas creches, que hoje também voltam a abrir. Os pais que levarem os filhos até aos 3 anos vão deparar-se com uma realidade inteiramente nova. O guião final da DGS, menos restritivo do que a primeira versão, impõe que as crianças sejam deixadas à porta e que troquem de sapatos para entrar. Lá dentro, terão de se habituar a ver educadores e auxiliares de máscara e mais contidos nas manifestações de afeto e não poderão partilhar brinquedos, salvo se forem "devidamente desinfetados entre utilizações". Depois de dois meses fechados em casa e afastados dos amigos, não será fácil explicar-lhes tudo isto.
Mas se a reabertura das escolas causa ansiedade, o retomar das visitas a lares, onde aconteceu o maior número de mortes e focos de contágio, é ainda mais sensível. Também aqui há um manual com normas rígidas a seguir.
Como tudo o resto, o tão esperado reencontro com os familiares será vivido com medo, o sentimento que nos vai acompanhar durante todo o resto do filme. Até ser descoberta uma vacina ou um tratamento eficaz, continuaremos em suspenso. O fim ainda não está escrito.

Retrato de uma tragédia anunciada

por estatuadesal

(Pedro Adão e Silva, in Expresso,16/05/2020)

Pedro Adão e Silva

Há semanas, o Governo reuniu-se com economistas para discutir medidas de relançamento da economia. Infelizmente, este é um momento em que o contributo dos economistas é próximo do zero. Mesmo que se desenhassem as políticas e os estímulos mais eficazes, persistiria um problema de fundo: falta de confiança.

É este o retrato que nos deixa a sondagem do ICS/ISCTE publicada pelo Expresso. Os portugueses continuam a confiar na resposta que políticos e instituições têm dado à pandemia e acreditam maioritariamente na nossa capacidade coletiva para limitar a difusão do vírus (62%), mas todos os outros sinais são aterradores.

Com razão, estamos preocupados em relação à situação económica e financeira do país (94%) e tememos que o pior ainda esteja para vir (57%). Só que, questionados em relação aos riscos associados ao desconfinamento, uma larga maioria julga arriscado regressar às rotinas quotidianas comuns. Os portugueses consideram mesmo que não se esperou o tempo suficiente para levantar as restrições.

A decisão de colocar o país em confinamento foi rápida e eficaz, mas a reabertura será bem mais exigente e não dependerá de soluções para a economia, de dados estatísticos, nem sequer da melhor informação médica. A perceção de risco é um processo social e alterá-la depende de mecanismos difusores de confiança coletiva que não se vislumbram.

A história das nossas civilizações é, em importante medida, a história da socialização dos riscos. O que nos distingue, hoje, é não sermos individualmente responsáveis pela nossa saúde e o nosso bem-estar económico depender de mecanismos coletivos (à cabeça a segurança social pública). A resposta comunitária dada à pandemia correspondeu a mais uma etapa deste longo e atribulado processo de gestão coletiva de riscos.

Mas há também duas outras ideias relevantes sobre gestão de riscos: a primeira é que há riscos que decidimos ignorar, enquanto privilegiamos a resposta a outros; a segunda é que a resposta que lhes damos pode ir da individualização radical (cada um é responsável por lidar com os riscos que enfrenta), passando pelo fatalismo (não há nada a fazer), até aquilo que foi feito face à covid-19: uma abordagem comunitária (todos procuramos proteger todos os outros, em particular os grupos de risco) combinada com mecanismos de decisão hierárquicos (de que o Estado de emergência é o pináculo).

O que os dados da sondagem demonstram é que chegou o momento de alterar o equilíbrio entre os riscos que privilegiamos e aqueles que igno­ramos (sob pena de termos de enfrentar uma pandemia económica e social aterradora), sem com isso comprometer o equilíbrio virtuoso entre comunitarismo e respostas hierárquicas que caracterizou a resposta à pandemia em Portugal. É o único caminho para recuperarmos um pouco de confiança.

domingo, 17 de maio de 2020

A pandemia da ignorância a propósito do “marxismo cultural”

por estatuadesal

(José Pacheco Pereira, in Público, 16/05/2020)

Pacheco Pereira

Às vezes nem vale a pena bater no ceguinho, porque para bater em ceguinhos em Portugal arranja-se sempre uma multidão. De preferência quando o ceguinho já está mesmo ceguinho, porque mesmo só com um olho, o estilo reverencial abunda e o país é muito pequeno para haver independência crítica. E então se for anónima a pancada, os praticantes são mais que muitos.

Mas a ignorância atrevida, essa, sim, merece azorrague, até porque nos dias de hoje, de pensamento mais do que exíguo, a coisa tende a pegar-se pelas “redes sociais”, o adubo ideal da ignorância. Temos de suportar duas pandemias, a da ignorância e a do vírus. Convenhamos que é demais. Nestas alturas, tenho um surto de pedantismo incontrolável. Bom, não sei bem se a classificação de pedantismo é a melhor, mas que por lá anda, tenho a certeza.

Vem isto a propósito do actual uso e abuso da expressão “marxismo cultural”, muito comum hoje à direita mas também usada muitas vezes erradamente à esquerda, que, na sua globalidade, é cada vez menos marxista, mas ainda não deu por ela. Porém, o uso à direita é uma espécie de vilipêndio e insulto e, em muitos comentadores de direita, é comum para caracterizar uma espécie de polvo omnipresente, que lhes rouba as artes, as letras, o jornalismo, algumas universidades, as ciências sociais, a comunicação social, a educação e o ensino, e os obriga a refugiar-se nos espaços “livres” dos colégios da Opus Dei, no Observador, nos blogues de direita, na Universidade Católica, nos lobbies ideológicos empresariais com acesso à comunicação, nalgumas fundações, nalguns articulistas, na imprensa económica, etc. Para bunker contra o “marxismo cultural” já parece muito espaçoso, mas eles acham-no apertadinho.

Nuno Melo escreveu recentemente um artigo com o título sugestivo de “A supremacia do marxismo cultural”, que é um bom exemplo de quem não percebe nada do que está a falar. Começa com uma citação de Marx, aquilo a que ele chama a “lição” que a esquerda aprendeu:

“As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes, porque a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, a sua força intelectual dominante.”

Muito bem. A frase quer dizer exactamente o contrário do que ele pretende. Quer ele dizer que é o proletariado a “classe dominante” nos dias de hoje e que é por isso que a “força intelectual dominante” é o marxismo? Interessante, ele vai certamente explicar-me quando é que houve mudança de “força material dominante”, ou seja, quando é que houve uma revolução. Na interpretação de Marx, são escritos como o de Melo que revelam a “força intelectual dominante”, ou seja, a da burguesia.

O que é essencial na interpretação do marxismo é que a seta do poder, que explica a sociedade, a cultura, a economia, a cultura, se faz a partir “de baixo”, das relações de produção, do modo de produção, das classes dominantes a cada momento da história, e que nesse terreno é a luta de classes que define essa outra seta que é o sentido da história. Como Lenine e Trotsky disseram de forma mais bruta, de um lado está o “caixote do lixo da história” e do outro o futuro, a base da teleologia marxista. E embora haja “acção recíproca” entre a superestrutura e a infra-estrutura, ela faz-se sempre a partir da “determinação” da infra-estrutura. Esta interpretação de Marx é a essência da sua teoria, e mesmo quando, nas escassas páginas que escreveu sobre a “cultura”, Shakespeare, em particular, admitiu uma “autonomia relativa da cultura”, nunca admitiu que essa autonomia fosse absoluta. Ou seja, na interpretação marxista, nunca o “marxismo cultural”, seja lá o que isso for, podia ser dominante numa sociedade capitalista, e isto é o bê-á-bá da coisa. Nem Lenine, nem Rosa Luxemburgo, nem Gramsci, nem Lukács, se afastaram deste ponto essencial.

E, mesmo aceitando-se a ambiguidade da expressão, seria um absurdo dizer que qualquer forma de “marxismo cultural” tem hoje “supremacia” na sociedade portuguesa. É verdade que há muita força da esquerda e do esquerdismo (que não é a mesma coisa) em determinados sectores da “superestrutura”, nas artes, nas letras, em certa comunicação social, mas acrescente-se duas coisas: primeiro, a maioria dessa esquerda e desse esquerdismo não é marxista; segundo, já teve mais força do que hoje tem e, mesmo a que subsiste, está cada vez mais acantonada. Por exemplo, nos anos da troika, muito do discurso público em matérias de sociedade e economia era “neoliberal” (não gosto desta designação, mas vai por facilidade), e uma das grandes vitórias ideológicas da direita foi conseguir interiorizá-lo de forma “dominante”. Devo dizer que eu troco todo o esquerdismo cultural no teatro pela reversão dessa invasão inconsciente de muitas cabeças pela TINA.

Eu não sou guardião da ortodoxia de Marx, mas sei o que ele disse e o que ele não disse e não participo neste abastardamento das ideias pelas palavras e pela propaganda. O problema é que gente como Nuno Melo, e muita direita, acha que bater no André Ventura é uma expressão do “marxismo cultural” e só não se apercebe de como está a dignificar o exercício, porque precisa de um papão com um nome ilustre para glorificar a vaidade própria.

Não é muito edificante ser vítima da sua ignorância, mas já é outra coisa ser vítima de uma universal conspiração marxista que, vinda das trevas do comunismo, os persegue pelas ruas de Bruxelas.

A pandemia neofascista

17/05/2020 by João Mendes 1 Comment

JB

Cartoon: Carlos Latuff

Nelson Teich, apesar do apelido que rima com Reich, não sobreviveu um mês no Ministério da Saúde de Bolsonaro. Entrou a 17 de Abril, para substituir Luiz Henrique Mandetta, demitiu-se a 15 de Maio, para ser substituído por (mais) um militar. O anterior foi corrido por insistir na importância do distanciamento social. Este demitiu-se por se recusar a recomendar a cloroquina, e por discordar da equiparação de salões de beleza e ginásios a serviços essenciais. Pobre Ministério da Saúde brasileiro, onde o conhecimento científico é enxovalhado e espezinhado, e o autoritarismo ignorante de Bolsonaro é quem mais ordena.

O senhor que se segue é o general Eduardo Pazuello, um militar de carreira sem qualquer tipo de formação na área da saúde. Contudo, Pazuello é detentor da melhor das qualidade para integrar o actual governo brasileiro: é amigo pessoal de Bolsonaro. Tão amigo que afirmou mesmo estar disponível para acatar qualquer medida imposta directamente pela presidente para a área da saúde. Com obediência cega e sem levantar questões.

Nunca, como nestes dias estranhos que vivemos, fiquei tão grato por ter nascido numa democracia consolidada, inserida no único espaço do planeta onde um grupo considerável de democracias decentes coabita da forma mais humana, livre e harmoniosa que foi dada a conhecer ao Homem, pese embora os nossos múltiplos defeitos, corrupção, paraísos fiscais, desigualdades que poderiam facilmente ser drasticamente reduzidas e refugiados a morrer no Mediterrâneo.

Fora desse espaço, porém, existem todos esses defeitos e mais alguns. Como a falta de estruturas e cuidados básicos de higiene, salubridade e saúde, a censura, o terrorismo, a violência racial, países inteiros comandados por meia-dúzia de mafiosos, níveis de poluição estratosféricos, genocídios, totalitarismo, fome e miséria. Não é à toa que tantos fogem para cá. E ver o Brasil, país irmão e amigo, mergulhado neste nível de hostilidade polarizada, de fundamentalismo religioso e ideológico e de loucura, causa-me uma tristeza muito grande.

E o que se passa em certos países, como o Brasil, e em menor escala nos EUA, deve ser encarado com preocupação. Há uma linha vermelha que está a ser cruzada, na periferia da democracia, e isso, mais do que qualquer teoria da conspiração sobre planos secretos para dominar o mundo ou islamizações à bruta, deveria fazer soar todos os alarmes sobre as cabeças daqueles que se revêm no modo de vida europeu, com as suas idiossincrasias e o maior nível de liberdade e dignidade por metro quadrado que alguma vez se viu no planeta Terra.

A verdadeira ameaça não são uns milhares a fugir da miséria total. A ameaça é essa gente que quer usar a democracia para acabar com ela. Que usa o “patriotismo” e o nacionalismo para alimentar uma lógica de conflito bem antiga, com os resultados que todos conhecemos. Que agita o fantasma da globalização, quando na verdade estão ao serviço do capitalismo mais podre, corrupto e desumano. Que tem gerido a pandemia com o brilhantismo a que todos temos assistido, colocando os interesses de meia dúzia à frente do bem estar de todos. Não é à toa que até Boris Johnson, o enfant terrible da Europa civilizada, recuou na sua estratégia de combate à pandemia. Até ele sabe que romper o cordão sanitário que nos separa dos autocratas seria um erro histórico e imperdoável.

A democracia precisa dos democratas. De todos os democratas, sejam eles socialistas, liberais ou conservadores. A ameaça está ao virar da esquina, mais ou menos dissimulada, e não podemos vacilar. Sejam os neofascistas assumidos, sejam os falsos democratas que clamam por câmaras de gás, pendurados no partido que lhes garante o poder, e não no que representa a sua matriz ideológica, todo o cuidado é pouco com a ascensão desta nova e perigosa extrema-direita. O alerta de Karl Popper, sobre o imperativo ético, moral e civilizacional de não tolerar a intolerância, está mais actual que nunca. Ignorá-lo poderá ser o princípio do fim do nosso modo de vida. Não podemos deixar que isso aconteça.