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terça-feira, 7 de julho de 2020

Pedro Nuno vs Medina: um insustentável peso nos ombros

Curto

Vítor Matos

Vítor Matos

Editor de política

07 JULHO 2020

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Bom dia!
“Odiar não é um sentimento bom”, escreveu o ministro. Sempre é melhor do que a ameaça do antigo colega que há uns anos prometeu aos críticos uns “salutares tabefes” no Facebook e foi corrido do Governo a tempo de prevenir mais disparates. Apesar de ontem Pedro Nuno Santos ter recusado falar de aviação - "sobre a TAP direi zero. Tenho falado sobre a TAP todos os dias" - passou o dia a divertir-se e a fazer comentários no Twitter por causa da TAP. “Há alguém irritante do que Pedro Nuno Santos?”; perguntava uma Beatriz. E respondia o ministro: “Mas o que é que eu fiz? :(“. A um tal de Joe mais agressivo - “nunca odiei tanto um ministro como odeio o Pedro Nuno Santos, p*** que o pariu” - eis que o membro do nosso Governo lhe escreveu, magnânimo, aquela frase maravilhosa: odiar não. Mas houve mais comentários ministeriais: pode ler outras pérolas do mesmo calibre nesta recolha da Liliana Valente, inclusive uma troca de mimos com João Cotrim de Figueiredo, líder da Iniciativa Liberal, mas o tema é demasiado dramático para brincadeiras.
Esta crise leva a tantas crises que todas engrossam o caudal da Grande Crise. Tudo começa na pandemia e desagua na pandemia, na crise de doença, morte, medo, falência, desemprego. A TAP será, possivelmente, o nosso caso de efeito económico mais dramático a seguir às mortes, aos traumas e ao desemprego. Pedro Nuno Santos pode ter piada no Twitter, pode até ter uma elevação provocatória que desarma críticos anónimos, mas no Governo agora “a música é outra”. O ministro fez o que tinha de ser feito? Mas o que tinha de ser feito vai ter custos enormes, incalculáveis, e vamos passar anos a avaliar o que aconteceu na semana passada, vamos passar anos a avaliar os moldes da venda aos privados do Governo Passos/Portas e a analisar o processo de reversão do Governo Costa/’geringonça’ e a nacionalização negociada que começa agora - será uma aposta segura dizer que haverá comissões de inquérito. Pedro Nuno Santo será jovial nas redes sociais, mas arrastará tudo o que acontecer na TAP pelo futuro do país e pela sua carreira política - e tanto mais pesado será o fardo nos seus ombros quanto mais subir, ou seja, se chegar lá.
Se de um lado temos a semana difícil de um candidato à sucessão no PS, do outro assistimos a uma péssima semana do delfim do líder socialista na câmara de Lisboa. Fernando Medina não cometeu o pecadilho das redes sociais como o seu "rival", mas não evitou o pecado da gula pela imprensa estrangeira. Medina não tem acertado. Depois de o PS o ter isolado nas críticas à gestão do surto de Covid-19 em Lisboa - quando ele tinha razão - e de ter sido corrigido quanto à inexistência de testes aos fins-de-semana, eis que o presidente da câmara de Lisboa decidiu escrever um artigo no "The Independent", um jornal inglês, sobre um tema cujo público é exclusivamente português. Uma trapalhada. Ora se Medina achava que o jornalismo de referência da velha "albion" era uma vantagem perante a piolheira cá da terra, enganou-se. Os ingleses sabem lá quem é o Medina e abusaram no título, cuja ideia era esta: Lisboa ia acabar com os Airbnb e substituí-los por arrendamento para trabalhadores. Ora o tema principal do texto era exatamente que Lisboa ia tentar inverter a natureza dos Airbnb (não eram para acabar, como é evidente) e convertê-los e arrendamento de maior duração.
O sarilho acabou com um assessor a telefonar para as redações, incluindo para o "The Independent", que corrigiu o título da peça: "After coronavirus, Lisbon is replacing some Airbnb and turning short term holiday rentals into homes for key workers". Escrever em estrangeiro para leitores que querem lá saber, mostra cá em casa a aflição do presidente da câmara a um ano de eleições. Depois de o turismo massificado ter esvaziado o centro de Lisboa, depois de ter reagido tarde quando decidiu criar áreas de contenção ao alojamento local em setembro do ano passado - já havia bairros vazios de moradores tradicionais - agora a inversão nas políticas. Não há turistas, regressem os moradores. É a decisão lógica, pois é. É o que deve ser feito (agora), claro que é, mas com o turismo a borbulhar a opção dificilmente seria essa, mesmo para bem da cidade. Tal como Pedro Nuno carregará o peso da TAP aos ombros, Medina terá no esvaziamento da cidade em nome de um el dourado que parecia não acabar a sua nemesis. Vai ter de batalhar em 2021.
Ora foi Fernando Medina que desencadeou, e muito bem, uma destas cadeias de crise, quando denunciou as falhas no combate à pandemia, que depois levaram a duas manchetes do Expresso: primeiro sobre a falta de técnicos e depois sobre as discrepâncias nos números de infetados. Ontem, Duarte Cordeiro, secretário de Estado com o pelouro da pandemia e Lisboa - e ex-vice de Medina em Lisboa -, deu mais um contributo do Governo e do PS para deixar Fernando Medina sozinho nas críticas, ao dizer que “as decisões tomadas foram no sentido certo” e rápidas. O Ministério da Saúde anunciou que a Direção-Geral da Saúde vai ter uma plataforma única, em vez de três, para juntar as bases de dados nacionais e locais, para não haver mais discrepâncias e Graça Freitas disse que os números estão “o mais perto possível da realidade”, e que nada tem a ver com “esconder casos”. No primeiro discurso sobre a pandemia, o Presidente da República tinha garantido que "ninguém vai mentir a ninguém", mas os dados não têm andado certos. O tempo dirá se Marcelo Rebelo de Sousa terá de divergir em matéria de pandemia, já que se colocou como penhor da verdade, se os números continuarem a falhar.
Noutra área de tutela partilhada entre Pedro Nuno Santos e Fernando Medina (os transportes em Lisboa) as operadoras estão disponíveis para ajudar no desfasamento de horários entre trabalhadores e estudantes para baixar o risco de propagação do vírus. Mas depois de o ministro da Educação ter dito ao Expresso na entrevista publicada sábado que pouco mudará no funcionamento das escolas para além do uso de máscara, parece difícil esse objetivo de evitar um provável aumento de passageiros à hora de ponta, que pressione a lotação máxima de dois terços dos transportes públicos. Registe-se para futuro esta frase de Tiago Brandão Rodrigues na mesma entrevista: “Estou convencido que haverá poucos sítios mais seguros do que as escolas”. É o que veremos: proclamações destas são pouco avisadas.

segunda-feira, 6 de julho de 2020

De surto em surto até à vacina final (e a fadiga do desconfinamento)

Curto

João Pedro Barros

João Pedro Barros

Coordenador

06 JULHO 2020

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Bom dia,
O Instituto Politécnico da Guarda decidiu suspender os exames presenciais devido à confirmação de infeção em pelo menos oito estudantes – no total há 12 jovens infetados, que se terão contagiado numa festa de aniversário. O Centro Escolar de Paços de Ferreira e uma fábrica na mesma cidade foram encerrados para "interromper as cadeias de transmissão". O número de óbitos relacionados com o surto em Reguengos de Monsaraz, no distrito de Évora, subiu para 12. Há 38 casos positivos nas Caldas da Rainha, num lar e num infantário, sendo cinco deles relativos a crianças. Cerca de 70 brasileiros que residem na aldeia de Santo Estevão, em Benavente, estão confinados, após cinco casos positivos.
Não quero com a enumeração destes casos alarmar o leitor, mas apenas sublinhar aquele que cada vez mais parece ser o novo normal da covid-19: surtos que vão surgindo aqui e ali, com origens muitas vezes difíceis de detetar, e aos quais as autoridades nem sempre conseguem responder com rapidez. E, para além destes casos relativamente delimitados, há um problema muito maior: a situação em Lisboa e Vale do Tejo.
Este domingo, em Portugal, registaram-se mais 328 casos de infeção e nove vítimas mortais, revelou a Direção-Geral da Saúde, que entretanto suspendeu a divulgação do número de infetados por concelho, após o Expresso ter feito manchete, no sábado, com a informação de que não estão a ser contabilizados todos os casos, havendo laboratórios, universidades e médicos que não registam os positivos.
Na região da capital assinalaram-se 254 novos casos, ou seja, 77% do total do país. Hoje – dia em que os números são habitualmente mais baixos, devido ao menor número de testes realizados no fim de semana – logo se verá, mas parece claro que ainda não se atingiu um caminho descendente que nos permita, por exemplo, ter o tal corredor aéreo com o Reino Unido, que traga os turistas e descanse os emigrantes portugueses que lá residem.
Aliás, a Madeira ainda não desistiu de argumentar que os britânicos que pisarem o arquipélago devem ficar dispensados da tal quarentena obrigatória no regresso à pátria: o presidente da Câmara do Funchal escreveu uma carta a Boris Johnson e Marcelo diz que as dúvidas serão “dissipadas” em breve. O Presidente da República passou o fim de semana na Madeira e fala mesmo da região como um “exemplo”.
A propósito, o Reino Unido não foi definitivamente o melhor exemplo de desconfinamento este fim de semana, em que pares e pubs puderam finalmente reabrir. Apesar da desvalorização por parte das autoridades e do próprio ministro da Saúde britânico, Matt Hancock, fotos como a que publicamos neste artigo mostram que, para um grande número de pessoas, as regras de distanciamento social e de uso de máscaras foram às malvas, talvez antes do primeiro pint.
Podemos falar em fadiga do desconfinamento, mas é difícil encontrar razões que justifiquem comportamentos generalizados de desprezo pelas recomendações. Que atire a primeira pedra quem respeitou TODAS as regras ao longo de quatro meses – e não devemos precipitar-nos a estigmatizar quem contrai o vírus –, mas um surto com origem em situações deste tipo pode pôr em risco toda uma comunidade e a economia de um país. Até porque ainda sabemos pouco sobre este SARS-CoV-2: tão pouco que especialistas de 32 países pedem à OMS para repensar as diretivas de proteção, porque acreditam que, afinal, o vírus também se transmite pelo ar.
Pede-se responsabilidade e sublinhe-se que não é só em Portugal que há novos surtos e medidas de reconfinamento. Na Inglaterra, em Leicester, procuram-se as causas de uma segunda vaga; na Catalunha, a região de Segrià (com mais de 200 mil pessoas) pode ficar confinada mais de duas semanas; na Galiza, e em vésperas de eleições regionais, uma região da província de Lugo, com cerca de 70 mil pessoas, está isolada; em Melbourne, na Austrália, há milhares de pessoas em confinamento; Marrocos registou ontem um novo recorde diário de infeções; a Grécia fechou as fronteiras aos cidadãos sérvios, após um aumento de casos no país dos Balcãs.
Este parece ser o novo normal: o vírus não vai desaparecer tão cedo e é provável que, até que esteja amplamente disponível uma vacina (ou um antivírico), os surtos de covid-19 vão desparecer da região ou país x para reaparecerem acolá, na localidade y. Que essa viagem não ocorra pelo menos por mera negligência.

Pólvora seca e vespeiros

Posted: 05 Jul 2020 02:43 AM PDT

«O tempo para se adotarem políticas eficazes com vista à saída da crise escasseia e Portugal surge cada vez mais enredado em dois complicados bloqueios: primeiro, as anunciadas bazucas da União Europeia (UE) vão perdendo atualidade e correm o risco de se tornarem tiros de pólvora seca; segundo, a eficácia das bazucas nacionais depende das europeias e de se conseguir deslindar imbróglios que enredam algumas grandes empresas e setores da economia.

As ditas bazucas foram concebidas a partir de um cenário que nos apresentava uma recessão que batia no fundo, mas de que recuperávamos rapidamente com o regresso pleno ao trabalho. A partir dessa conceção, bastava "manter as luzes da economia acesas" durante o confinamento, através da continuidade da produção dos setores essenciais, da garantia de liquidez às empresas e de algum rendimento de substituição aos trabalhadores desempregados ou em regime de lay-off.

O que se está agora a desenhar é algo bem diferente. O regresso ao trabalho reacendeu o rastilho da pandemia, por razões que a semana passada aqui identifiquei. Configura-se, portanto, uma situação prolongada de confinamento parcial alimentado por picos de contágio mais ou menos ocasionais e localizados, e pelas múltiplas cautelas das pessoas. Daí resultam impactos socioeconómicos diversos, supressão prolongada de parte da capacidade produtiva e contínua perda de emprego.

As chamadas injeções de liquidez nas empresas e as garantias de rendimento de substituição não são sustentáveis durante muito tempo e, mesmo que fossem, a prazo confrontar-se-iam com limites à capacidade de oferta. Se somarmos a isto a pressão crescente para se reverter o financiamento público em nome da sustentabilidade das dívidas, temos o cenário montado para a tempestade perfeita: supressão de capacidade produtiva combinada com retração da procura.

Face a isto, os pacotes financeiros prometidos pela UE, que ainda nem sequer estão definidos nem aprovados, deixam de parecer tão avultados. Precisamos de modos de financiamento que não envolvam endividamento, e medidas que garantam o aprovisionamento, sobretudo em bens e serviços essenciais. As bazucas europeias não são uma coisa nem outra.

A armadura europeia vem tolhendo Portugal no seu processo geral de desenvolvimento. Essa armadura ajudou a enfraquecer serviços públicos fundamentais, mas é também fonte de condicionalismos impostos a algumas grandes empresas e setores da economia.

Hoje, quando se observa o que se passa na TAP, vemos que está ali um vespeiro onde é urgente, mas muito difícil, meter as mãos. As opções políticas e de gestão erradas, quando não criminosas, adotadas ao longo do tempo respaldaram-se, tantas vezes, em determinações da UE. Aconteceu o mesmo no vespeiro-mor que é o setor financeiro.

Há urgência na resolução de complicados imbróglios. O setor da saúde vem dando respostas no limite. Em breve bastantes empresas grandes e médias necessitarão de resgastes e imensas pequenas estão dolorosamente entregues à sua sorte. E não nos esqueçamos da Banca, setor onde, provavelmente, as desgraças irão culminar.

É inquietante ver o Governo demasiado sensível ao comentário mediático, técnica e politicamente muito pobre, a desvalorizar a inteligência coletiva e a continuar à espera, quando são já tão visíveis nuvens negras.»

Carvalho da Silva

domingo, 5 de julho de 2020

Movimento em falso

Posted: 04 Jul 2020 03:54 AM PDT

«Ela entra devagar no azul excessivo da água da piscina, quer libertar-se daquela sensação de absurdo nascida desde o início da pandemia, um pouco como as personagens no filme de Wim Wenders “Movimento em Falso”, em que o desejo de libertação do desânimo persegue as deambulações de Wilhelm e do seu grupo. Wilhelm, um escritor falhado que não gosta de pessoas, com um velho atleta dos jogos olímpicos de 1936 atormentado pelo seu passado nazi, uma acrobata de circo muda, um poeta desajeitado, uma atriz, um grupo perdido em deambulações sem rumo, onde o sonho e a realidade se misturam, a paixão, o suicídio, a perda do passado, viajando através de lugares enigmáticos de uma Alemanha traumatizada no pós-guerra.

O azul da água, a ortodoxia da purificação, o incómodo do corpo, fecha os olhos para ver melhor a realidade como dizia Wilhelm no filme, há peste nas periferias de Lisboa. A parábola da cidade esgotada pela especulação imobiliária, pelo turismo massificado, pela corrupção urbanística, que expulsou para a periferia os pobres, os trabalhadores precários e a recibo verde, os migrantes, a classe média falida na crise de 2008. Os bairros problemáticos, uma realidade bem conhecida dela do tempo em que estava no DIAP de Lisboa e na Distrital de Lisboa, bem conhecida da polícia.

A contraditória criminalização do combate à epidemia, as multas, a ameaça de punição com os crimes de desobediência e de propagação de doença contagiosa, são apenas o sintoma de um velho aparelho de Estado paralisado pelo nepotismo e burocracia, incapaz de funcionar e de se ligar à comunidade. Afinal o mesmo fenómeno revelado durante os incêndios de 2017, refugiando-se nos bodes expiatórios dos incendiários, que são agora os superinfetadores, os mal-comportados.

O cenário dos transportes públicos em hora de ponta é a imagem gritante da impotência. Mandam as pessoas para casa em bairros problemáticos de casas degradadas e inabitáveis, com multidões que têm que sair para sobreviver em trabalhos clandestinos. Multar e perseguir os desempregados, vagabundos da crise, deixar os alunos na rua porque as escolas não têm condições, espalhar o pânico doentio. Ignora-se o resultado de três meses de paragem dos tribunais, a desigualdade social é uma chaga, e um SNS desprezado pelos sucessivos governos é agora a medida de todas as liberdades. Agora como dantes, as ARS (administrações regionais de saúde), a DGS, o Ministério da Saúde compõem estruturas burocráticas sobrepostas e insensíveis, juntamente com a proteção civil e a segurança social, incapazes de ligação ao terreno, aos diretores dos hospitais como ponto de partida para uma ação eficaz. Criminalizar o combate à epidemia é querer parar o vento com as mãos.

O absurdo não se dissolve no azul da água, há uma culpa difusa neste clima de delação, até na inexplicável dificuldade em ter um corpo. Os efeitos do buraco negro criado com a economia parada, com a incompetência institucional, vão obrigar-nos ao maior combate das nossas vidas. Em cada facto novo há um movimento em falso.»

Maria José Morgado

sábado, 4 de julho de 2020

Nas asas do pesadelo

por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 03/07/2020)

Miguel Sousa Tavares

O que não faltam é opiniões firmes e assertivas sobre a TAP, o seu destino e o seu futuro. Eu, que em tempos já tive uma opinião firme — contra a privatização — hoje não consigo ter nenhuma, apenas um profundo sentimento de tristeza e frustração e, sim, a sensação nítida de estar a ser assaltado à mão armada, seja qual for a solução encontrada para já.

Para início de conversa e para se ter uma ideia do que está em jogo imediatamente, atente-se nos números: o Governo prepara-se para injectar na TAP mil e duzentos milhões de euros (ou, se preferirem, 1.200.000.000 euros), para salvar dez mil postos de trabalho. Ou seja, 120.000 euros (cento e vinte mil euros) por posto de trabalho! Não é muito, não é imenso, é pornográfico. Nunca, em Portugal, e creio que em qualquer outro lugar do mundo, um posto de trabalho criado ou mantido, teve este custo, equivalente a mais de 15 anos de ordenado mínimo nacional: eu não gostaria de estar na pele dos trabalhadores da TAP, da próxima vez que, com razão ou sem ela, fizerem greve...

Mas isto é só para começo de conversa. No primeiro trimestre deste ano — que apenas incluiu 15 dias de pandemia — os prejuízos de exploração da TAP chegaram quase aos 400 milhões. Se, de então para cá, os aviões estiveram todos em terra no 2º trimestre, estarão a voar talvez um terço no 3º trimestre, e ninguém prevê nada de bom no 4º, é fácil de concluir que os 1200 milhões não chegarão sequer para cobrir os prejuízos de exploração do ano de 2020. E ainda há uma dívida acumulada, e a vencer juros e amortizações, de 3,5 mil milhões, essencialmente com o leasing dos novos aviões que agora se pretende vender, mas cujo mercado de compra está saturado. Esqueçam, pois, o Banif, o BPN, o Novo Banco, as PPP e o que ainda está para vir (Montepio, Efacec, etc.): a TAP vai ultrapassar tudo em termos de catástrofe financeira para os contribuintes. E é a esta luz que, independentemente das ideologias e das soluções propostas, tudo deve ser, antes de mais, decidido. Ou, pelo menos, dito, olhos nos olhos, aos portugueses. Porque, se houve, no Governo, quem tivesse o supremo descaramento de afirmar que não iriam excluir as empresas sediadas em off-shores dos apoios financeiros do pacote comunitário para “não lhes causar constrangimentos” (decisão felizmente revertida graças ao inconformismo do Bloco de Esquerda), aqueles que pagam até 50% dos seus rendimentos do trabalho só em IRS, fora o resto, têm o direito acrescido de estarem constrangidos e perplexos com mais esta conta sem fim à vista, cuja factura fatalmente lhes cairá na caixa de correio, mais tarde ou mais cedo.

Esta é uma história repetida, vezes sem fim, sem vergonha e sem nenhuma lição aprendida para futuro. Naquilo que eu chamo o “mundo do lado de cá” — aquele em que vive a metade de portugueses que paga impostos a favor dos que não pagam; dos que não dependem nem esperam pelas benesses públicas para investirem, criarem postos de trabalho, tratarem de si e dos seus; dos que não contam as horas nem os dias de férias que trabalham ou os anos para a reforma — nesse mundo, quando se imagina que, uma vez saldadas as contas com o Estado e a comunidade, se pode enfim fazer contas à vida contando com as forças próprias, há sempre uma desagradável surpresa que vem do lado de lá e que tem o dom de arruinar tudo o que se construiu e sonhou por mérito próprio. O Estado comporta-se com o “mundo de cá” como um inimigo, um cobrador insaciável, o viciado em drogas a que a família tem de acorrer permanentemente, sempre na esperança repetida de que seja a última vez, mas sempre acabando por se sentir a deitar à rua dinheiro que tanto lhe custou a ganhar e que tão melhor aplicaria noutras coisas bem mais úteis.

ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

E depois, quando administra ou negoceia coisa pública em nome de nós todos, o Estado parece fazê-lo sempre com uma displicência, uma leviandade e uma irresponsabilidade final própria de quem se habituou a não ter de prestar satisfações a ninguém.

O caso da TAP é apenas mais um exemplo de como sucessivas levas de brilhantes gestores, especialistas, advogados e políticos conseguiram fazer da tal “empresa de bandeira”, orgulho de todos nós, um caso de verdadeira delinquência administrativa. Recordo brevemente e apenas para que alguém fique com as orelhas a arder e não pense que esquecemos: primeiro, os anos de “gestão dos tios”, com presidentes e gestores saídos do PS e PSD, abrindo rotas condenadas à ruína, com voos inaugurais atulhados de colunáveis para os publicitar nas revistas do “jet seis”; depois, uma tentativa de gestão profissional, mas já com manobras na sombra visando a privatização, com a desculpa pouco séria de que Bruxelas não permitia que o Estado procedesse a uma tímida recapitalização, que teria dado à empresa asas para voar tranquilamente; depois, uma escandalosa privatização, consumada sem pudor a dois dias de um governo cessante; a seguir, a farsa, para sossegar o lado esquerdo das boas consciências, da retoma parcial do controle público da empresa, pior emenda que soneto, aproveitada por David Neeleman para armadilhar todo o novelo, perante a pacóvia satisfação do incauto parceiro; enfim, e agora, as bravatas do ministro Pedro Nuno Santos, berrando na praça pública amea­ças e ultimatos contra os parceiros negociais, como se fosse dono da TAP e do dinheiro lá metido e a meter, e com tão sábia subtileza o fazendo que conseguiu que Bruxelas considerasse a TAP como a única companhia de aviação europeia a excluir do âmbito dos apoios covid, pois que o próprio ministro a declarou publicamente falida antes da epidemia. E sempre, sempre, em cada passo deste longo e meticuloso processo de autoliquidação da empresa, um prestimoso serviço de assessoria jurídica do lado do Estado e tão ao gosto dos nossos governantes: contratos imensos, palavrosos, mal pensados e mal redigidos, com cláusulas que, ou são secretas, ou são confidenciais, ou são dúbias e, na dúvida, são sempre interpretadas contra o interesse do Estado, em tribunais arbitrais internacionais onde, por estranho acaso, o Estado português jamais ganhou um contencioso.

Aqui chegados, a pergunta inevitável é: e agora? Agora, com grande tristeza minha, que fui devoto da TAP como ela era durante décadas, o futuro é o desastre. Mas, atendendo a que não sou especialista na matéria, oxalá esteja enganado. Porém, parece-me evidente que a TAP que foi privatizada há cinco anos não é a mesma de hoje. Hoje, a TAP tem mais trabalhadores, mais rotas, mais e melhores aviões. Transformou-se numa deplorável low-cost nos voos de médio curso, concorrendo com as low-cost na Europa, mas abriu todo um novo mercado rentável na América do Norte (56 voos semanais). Mal ou bem, só o futuro o diria, Neeleman tinha uma estratégia e um novo plano de negócios para a companhia, que a pandemia deitou por terra e que, com a sua saída, provavelmente terá fim. Restará então a antiga “companhia de bandeira”, com pessoal e aviões a mais, para servir destinos de emigração, como a Venezuela ou os PALOP, que nem as contas pagam, e as ilhas, que são rotas subsidiadas. Nem o turismo do Algarve, ou o do Porto, ou o da Madeira, ao contrário do que se diz, precisam da TAP: onde há procura, não faltará oferta. E o mesmo se diga nos destinos europeus: se faltar oferta que a TAP tiver de preencher, é porque as rotas são deficitárias. Restará Lisboa e o Brasil, se mantiver a mesma pujança, após pandemia: não chega para sustentar os custos de funcionamento da empresa.

É verdade que há ainda um derradeiro, um último e desesperado trunfo a que a TAP poderá lançar mãos: o patriotismo dos portugueses. Esse absurdo e tantas vezes mal retribuído orgulho e amor dos portugueses pela TAP e por voarem numa companhia aérea que tinha as cores de Portugal e onde se falava português a bordo. Eu fui testemunha e praticante disso, mas, como tantos outros, fui-me cansando de ser cada vez mais mal tratado e recompensado por essa fidelidade inútil. Eu sei que agora nos vão dizer “a TAP voltou a ser nossa!” e mais umas quantas frases supostamente mobilizadoras do género. Porém, a “TAP nossa” — isto é, sob gestão dos suspeitos do costume — não é coisa que, francamente, me mobilize. E o slogan alternativo — “Voe na TAP para ajudar a pagar os prejuízos” — é capaz de me deixar maldisposto de cada vez que entrar a bordo.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia