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quinta-feira, 8 de outubro de 2020

O risco de uma recessão em K

por estatuadesal

(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 08/10/2020)

Alexandre Abreu

A indefinição em torno da turbulência económica que enfrentamos nos próximos meses e anos provém de três fontes de incerteza principais. Por um lado, a dinâmica da pandemia: quantas e quão graves são as vagas que temos ainda pela frente até que uma vacina ou um tratamento eficaz estejam disponíveis. Em segundo lugar, o risco de espirais recessivas: em que medida é que as quebras da atividade económica (a que já ocorreu e as que possamos ter pela frente) geram elas mesmas uma dinâmica negativa de desemprego, falências, poupança cautelar e quebra do investimento que se alimente a si própria. Finalmente, a natureza e dimensão das respostas públicas: até que ponto é que estas serão capazes de contrariar a dinâmica recessiva no contexto e uma crise que é particularmente difícil de enfrentar na medida em que reúne elementos de contração da procura, restrição da oferta e perturbações das cadeias de valor internacionais.

As expectativas mais ou menos otimistas relativamente a esta matéria têm encontrado nos últimos meses entre muitos economistas (aqui, aqui e aqui, por exemplo) a peculiar expressão de uma sopa de letras, consoante a forma que se antecipa poder vir a ser assumida pela trajetória do produto e do emprego. A visão mais otimista é a de uma recessão em V: queda súbita e profunda seguida de uma recuperação igualmente rápida. Mais pessimistas são as ideias de uma recessão em U (queda súbita, período de estagnação relativamente prolongado e retoma ao fim de algum tempo), em L (queda súbita seguida de estagnação) ou em W (uma recessão dupla, com dois períodos de recuo). Pode ainda juntar-se a ideia de uma recessão com a forma do símbolo da Nike¸ que constitui provavelmente o cenário-base para a maioria das instituições e analistas: depois da queda acentuada em 2020, seguir-se-ia rapidamente um período de retoma lenta mas consistente, trazendo as economias de regresso às suas posições iniciais ao fim de três ou quatro anos.

Todas estas possibilidades assumem, no entanto, que o conjunto da economia (e das economias) se comporta de uma forma relativamente homogénea no contexto da recessão e da retoma. Há porém um risco não negligenciável de que a própria dinâmica da crise e retoma introduza ou aprofunde dinâmicas de divergência entre diferentes economias, entre diferentes setores de uma mesma economia ou entre diferentes grupos sociais.

Dentro da sopa de letras, esta ideia é representada pela ideia de uma recessão em K: depois do embate inicial, uma parte da economia recupera e prospera de forma relativamente rápida enquanto outra parte passa por um período mais duro e prolongado de empobrecimento ou estagnação.

A ideia não é nova (tendo sido referida várias vezes nos últimos anos, nomeadamente no contexto da Grande Recessão e da retoma subsequente), mas tem sido referida com especial frequência nos últimos tempos para caracterizar a crise que estamos a atravessar. Joe Biden, por exemplo, utilizou esta expressão e exprimiu esta ideia num discurso há poucas semanas. No caso dos Estados Unidos, esta divergência é por vezes também designada por uma outra metáfora: Wall Street (o setor financeiro, as empresas de maiores dimensões e os mais ricos) versus Main Street (as pequenas empresas e as pessoas comuns). De finais de março para cá, o índice Dow Jones já recuperou a quase totalidade da queda de mais de 40% que sofreu, enquanto o Nasdaq, das empresas tecnológicas, já ultrapassou largamente o seu nível anterior à crise e segue imparável. As notícias sobre o crescimento inexorável das fortunas dos multibilionários do setor tecnológico são quase diárias. No entanto, o nível de emprego permanece significativamente abaixo (e o de desemprego acima) do que sucedia antes da crise, e a situação em muitos setores é bastante menos risonha do que no caso de muitos setores tecnológicos, que em muitos casos beneficiam diretamente das mudanças comportamentais e sociais suscitadas pela própria pandemia.

De forma mais próxima e mais diretamente relevante para nós, começamos a encontrar este padrão de divergência em K também nos primeiros sinais de retoma na Europa. Enquanto, por exemplo, os dados mais recentes das encomendas industriais na Alemanha, acabados de publicar, apontam para uma recuperação quase total para os níveis pré-crise, parece bastante claro que as economias do Sul da Europa, substancialmente mais dependentes do turismo e dos serviços, dificilmente podem esperar que tal aconteça senão daqui a alguns anos. E reduzindo ainda mais a escala, sabemos também que em Portugal a crise tem afetado desproprocionalmente as pessoas e famílias com rendimentos mais baixos, menor escolaridade e empregos mais precários, bem como as empresas mais pequenas e menos robustas.

Devido quer às características particulares desta crise quer às vulnerabilidades pré-existentes muito distintas entre diferentes economias, diferentes setores e diferentes grupos sociais, existe assim um forte risco de que esta crise introduza ou reforce dinâmicas de divergência. Mitigar esse risco exigirá o reforço, e não a redução, dos mecanismos de redistribuição e convergência a todas as escalas.

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

O julgamento que estilhaçou os neonazis gregos

De  Euronews  •  Últimas notícias: 07/10/2020 - 14:03

Encontro de militantes em 2019

Encontro de militantes em 2019   -   Direitos de autor Yorgos Karahalis/Copyright 2019 The Associated Press. All rights reserved.

Estava dado o mote: vídeos com saudações nazis, um clima de profunda angústia por causa da turbulência económica e o eclodir da crise dos refugiados. A Grécia via assim chegar a Aurora Dourada ao parlamento em 2012. O movimento de extrema-direita tornado partido político dava eco a um discurso há muito não ouvido no país.

Fica o exemplo das palavras do líder, Nikos Michaloliakos, a 3 de março de 2012: "Somos a semente dos derrotados de 1945. É o que somos: nacionalistas, nacional-socialistas, fascistas".

Oito anos mais tarde, a justiça grega considerava a Aurora Dourada como uma organização criminosa. Foi o mais longo julgamento da história do país, depois da cúpula se começar a estilhaçar e o partido perder todos os assentos parlamentares nas eleições de 2019.

O movimento antifascista inflamou-se, muito mais do que em casos anteriores. As autoridades foram mais rápidas a atuar. A pressão sobre o governo aumentou. Todos estes fatores juntos fizeram com que o sistema funcionasse.

Eleftheria Koumandou

Jornalista

"A sociedade grega mudou muito durante este processo. Foi uma aprendizagem sobre o papel que o racismo e a xenofobia desempenham no surgimento de movimentos fascistas e do fenómeno nazi. Aqui dizemos que as abelhas derrotaram os lobos", afirma Thanasis Kampagiannis, advogado de acusação.

A Aurora Dourada contrapunha as acusações de que funcionava como uma organização criminosa com o homicídio de dois dos seus membros, a tiro, junto à sede política em Atenas, em novembro de 2013. Dois meses antes, o rapper antifascista Pavlos Fyssas foi apunhalado mortalmente por um militante do partido.

"Chegámos a um ponto onde o assassinato de um músico antifascista desencadeou toda a acusação. O movimento antifascista inflamou-se, muito mais do que em casos anteriores. As autoridades foram mais rápidas a atuar. A pressão sobre o governo aumentou. Todos estes fatores juntos fizeram com que o sistema funcionasse", explica a jornalista Eleftheria Koumandou.

Cemitério de fetos identifica mães

De  Giorgia Orlandi  & Teresa Bizarro  •  Últimas notícias: 07/10/2020 - 12:58

Cemitério de fetos identifica mães

Direitos de autor Luca Bruno/Copyright 2020 The Associated Press. All rights reserved

Num talhão do cemitério italiano de Flaminio, em Roma, os nomes inscritos nas placas pertencem a pessoas ainda vivas. São nomes de mulheres que tiveram abortos no segundo trimestre de gestação. As cruzes assinalam o local onde os fetos foram enterrados.

O Jardim dos Anjos - assim se chama - começou por ser um espaço onde pais podiam enterrar fetos resultantes de abortos "espontâneos ou terapêuticos". Mas só por vontade dos pais e mediante uma autorização municipal.

Já há registo de cerca de uma centena de mulheres que declara não ter manifestado vontade de um funeral ou consentido identificar uma campa. Dizem que declinaram fazer o funeral aos fetos, mas que também nunca solicitaram que fossem feitos em seu nome.

De acordo com a imprensa italiana, existem associações religiosas que têm acordos com hospitais para tratar do que a lei define como "produtos abortivos" o que lhes permite enterrar restos mortais não reclamados.

A presidente da Differenza Donna, uma associação italiana envolvida no processo, explica que estas mulheres se sentem "desrespeitadas e com os direitos e liberdades violados". Elisa Ercoli fala em particular da liberdade religiosa, "porque algumas das mulheres são ateias ou têm outras crenças religiosas".

A associação avançou judicialmente em nome destas mulheres. A procuradoria de Roma abriu entretanto uma investigação para esclarecer se houve divulgação indevida de dados pessoais e violação de direitos individuais.

Giovanna Scasselati é a diretora do serviço de abortos no Hospital de San Camillo, em Roma. Em entrevista à Euronews, conta que "quando os pacientes chegam é lhes pedido que assinem vários papéis, incluindo um documento sobre o enterro do feto". Mas esta médica declina qualquer responsabilide nos passos seguintes. Diz que isso é competência da empresa de tratamento de resíduos.

Na resposta, a empresa de responsável pela recolha e tratamento de resíduos hospitalares emitiu um comunicado garantido que opera dentro da legalidade, cumprindo ordens dos hospitais para fazer os funerais quando as famílias não querem lidar com o assunto.

Por esclarecer está a alegada violação dos dados pessoais. A utilização da identidade de mulheres inscrita nas cruzes do cemitério.

Partido grego Aurora Dourada considerado uma organização criminosa pela justiça

De  Euronews  •  Últimas notícias: 07/10/2020 - 14:55

Partido grego Aurora Dourada considerado uma organização criminosa pela justiça

Direitos de autor Petros Giannakouris/Copyright 2020 The Associated Press. All rights reserved.

O veredito da justiça grega não deixa margem para dúvidas: 68 elementos do partido de inspiração Nazi Aurora Dourada, entre os quais 18 deputados, foram considerados membros de uma organização criminosa. A leitura do acórdão foi realizado debaixo de fortes medidas de segurança.

O veredicto coloca um ponto final a um processo que se arrastou durante cinco anos, tendo ficado provado que o partido, que chegou a ser a terceira maior força política na Grécia, operava como um grupo paramilitar e contribuiu ativamente para o aumento da violência contra refugiados e estrangeiros no país.

Apesar de algumas escaramuças com a polícia, a decisão foi acolhida com aplausos por milhares de pessoas que aguardavam o veredicto junto ao Palácio de Justiça de Atenas.

O Aurora Dourada é um partido de inspiração nazi fundado na década de 80 que saltou para a ribalta nas eleições de 2012, quando elegeu 21 deputados em plena crise económica grega. Os seus dirigentes, que se descrevem como patriotas ultranacionalistas e não escondem a admiração por Hitler, queixam-se de perseguição política.

Věra Jourová: "Fomos ingénuos ao acreditar que o Estado de Direito era eterno"

De  Sandor Zsiros  •  Últimas notícias: 02/10/2020

Věra Jourová: "Fomos ingénuos ao acreditar que o Estado de Direito era eterno"

Direitos de autor euronews

A questão do Estado de direito tornou-se central na União Europeia na última década, com a Hungria e a Polónia no centro das atenções e muitos preocupados com os padrões democráticos destes países: Bruxelas diz que Budapeste e Varsóvia estão a violar os valores europeus. Mas a Comissão Europeia decidiu alargar o horizonte e avaliar a situação da democracia e da corrupção nos 27 estados membros, um por um.

Sándor Zsíros, Euronews:

A nosssa convidada é Věra Jourová, vice-presidente da Comissão Europeia para os valores e transparência. Acaba de apresentar o primeiro relatório da Comissão Europeia sobre o Estado de Direito. Mas quão saudável é a democracia europeia?

Věra Jourová, vice-presidente da Comissão Europeia para os valores e a transparência:

Este é um momento importante. Por que razão apresentámos o relatório? Não é um relatório qualquer, não é uma coisa trivial. Porque precisávamos de fazer uma boa avaliação da situação em todos os Estados membros. Estamos a analisar a situação na esfera judicial, especialmente sobre a independência do poder judicial e o equilíbrio dos poderes entre os diferentes ramos. Estamos também a analisar, com um olhar fresco, o que os Estados membros fazem contra a corrupção. E a analisar também a situação dos meios de comunicação social, porque os meios de comunicação social não são apenas atores económicos, têm também um papel muito crucial na proteção da liberdade de expressão e da democracia.

Os meios de comunicação social têm um papel fulcral na defesa da liberdade e da democracia.

Věra Jourová

Vice-Presidente da Comissão Europeia

Quais são as principais conclusões do relatório? Onde vê mais problemas relacionados com a liberdade dos meios de comunicação social, com o sistema judicial e com a corrupção?

Os principais problemas, fazendo uma avaliação geral, estão no mundo judicial. Há tendência para impor mais pressão política sobre o sistema, sobre os juízes, especialmente do lado do poder executivo, ou seja, dos governos. Precisamos de ter a certeza absoluta de que em cada país temos juízes independentes que decidem com base na lei e não com base em quem é que deve ser combatido e como. É um princípio muito claro que temos: Igualdade perante a lei, que tem de ser garantida pelos juízes. A politização do poder judicial, bem como as pressões políticas e económicas sobre os meios de comunicação social a que assistimos em muitos países são tendências que estão a piorar. Temos dados muito precisos, recolhidos nos últimos dois anos. Os meios de comunicação desempenham também um papel muito importante, como disse, na defesa da democracia e da verdade. Os jornalistas profissionais que sentem um elevado nível de responsabilidade são, evidentemente, aqueles que devem fornecer informações objetivas aos cidadãos.

Porque queremos que os cidadãos estejam bem informados ao fazer julgamentos e ao tomar decisões, nomeadamente quando votam. Quanto à luta anticorrupção, precisamos de fazer mais em alguns Estados membros. Existem mecanismos suficientes, que funcionam bem para combater a corrupção. Mas em alguns estados não vemos isso a funcionar. O que se reflete naquilo que ouvimos da parte de cidadãos e empresas - que em alguns países, as pessoas simplesmente não confiam nas instituições para lutar contra a corrupção. E penso que é nesse fator que temos de nos focar mais.

Olivier Matthys/Copyright 2020 The Associated Press. All rights reserved.Věra JourováOlivier Matthys/Copyright 2020 The Associated Press. All rights reserved.

Dois países estão sob o processo do Artigo 7: Hungria e Polónia. Acha que ainda são boas democracias em funcionamento?

Abordámos muito bem os problemas e expressámos as nossas preocupações nos diferentes documentos e análises relativos à Polónia e Hungria. Temos o processo do Artigo 7 já desencadeado para ambos os países. Nunca acreditei que este artigo fosse alguma vez utilizado e temo-lo aqui. Por isso, é importante que este processo esteja em curso. Quando vemos casos concretos de violação da legislação da UE, abordamo-los através de processos por infração. E o relatório de hoje é complementar às medidas e instrumentos que acabei de mencionar. Porque o que ouvimos da Polónia e da Hungria é que nos concentremos também em outros países. Por isso, estamos também a concentrar-nos nos outros. Penso que este é um momento muito importante, quando vemos a situação nos Estados-membros descrita com base em critérios objetivos. Tentámos, honestamente, ser objetivos na avaliação. O método que utilizámos foi muito transparente e inclusivo. Houve cooperação do lado dos Estados-membros.

Vê a vontade destes países de cooperar e de mudar relativamente a estes pontos sobre os quais escreve no relatório?

Vimos vontade de cooperação de todos os Estados membros. Foi um exercício muito exigente. Os nossos colegas estavam a avaliar os relatórios e as conclusões das discussões com, penso eu, 300 organismos diferentes, de todos os Estados membros. Portanto, a vontade estava lá. Penso que ao fazer este trabalho, ao introduzir esta ferramenta preventiva que é o relatório apresentado hoje, estamos a dar mais ênfase ou mais impulso à razão pela qual é importante proteger e defender ativamente o Estado de direito nos Estados-membros e que deve ser um interesse comum. Não pode ser apenas para a Comissão Europeia. Não podemos estar sozinhos nisto. Por isso, devo dizer que fiquei agradavelmente surpreendida com o nível e qualidade da cooperação. Esta é a primeira edição que apresentamos hoje. Serão relatórios anuais, pelo que no próximo ano veremos as tendências. O que vamos fazer com as novas conclusões? Em muitos casos, abrir-se-á a porta ao diálogo com os respetivos Estados-membros.

Não se trata apenas da Polónia e da Hungria: O relatório também destaca os desafios que existem nos sistemas de justiça da Bulgária, Roménia, Croácia e Eslováquia. Na Bulgária e Malta, os meios de comunicação social estão ligados às forças políticas, enquanto em Espanha, Eslovénia, Bulgária e Croácia os jornalistas são frequentemente ameaçados ou atacados.

Temos visto também alguns suspeitos não habituais. Quais são as principais preocupações para si, além da Hungria e Polónia?

Em alguns Estados, vemos uma tendência negativa no mundo dos media. É bom ler os relatórios em que somos muito abertos e precisos na avaliação. Há também uma falta de ação, sobretudo no que toca às investigações e acusações de delitos penais no mundo das finanças. Por isso, ao mesmo tempo, tentámos fazer avançar a proposta de ligar o princípio do Estado de direito à investigação eficaz da acusação de fraude financeira. Estamos agora a alargar o número de instrumentos que temos em mãos. Falando de dinheiro, vamos distribuir mais dinheiro. O dinheiro deve servir bons propósitos. Também tenho de mencionar as ajudas que vão ser dadas a todos os Estados membros para que possam sair da crise causada pelo Covid. Por isso, não podemos manter um sistema em que aumentamos a quantia de dinheiro distribuído e, ao mesmo tempo, lidamos com o facto de que existe este nível decrescente de confiança. Temos de introduzir mais algumas salvaguardas.

Estamos no meio das negociações orçamentais, como a senhora disse. Mas será o dinheiro realmente a única forma de convencer estes países a salvaguardar os valores?

Claro que não. Temos de utilizar todas as medidas e instrumentos que temos em mãos. Quanto ao dinheiro, penso que é um aviso muito sério para todos os Estados que continuam a violar o princípio do Estado de direito: ao condicionar o dinheiro, os contribuintes nos Estados membros, especialmente daqueles que são contribuintes líquidos, querem ver mais salvaguardas. E não devemos desistir do diálogo com os Estados membros, especialmente com aqueles em relação aos quais temos preocupações. Temos, simplesmente, de admitir perante nós próprios que fomos ingénuos no passado ao acreditar que o princípio do Estado de direito está lá para sempre, que vai funcionar sem problemas, que é automático, uma espécie de movimento perpétuo. Que os direitos fundamentais serão sempre respeitados em todo o lado. Que a proteção das minorias estará em vigor em toda a parte. É bastante claro que temos de aumentar a pressão sobre os Estados-membros para que estejam conscientes de que estes são os princípios sagrados do clube. Porque se trata, mais uma vez, da confiança entre os Estados-membros.

Por exemplo, que os tribunais independentes estão a trabalhar em todo o lado com a mesma qualidade e certeza. Trata-se também da confiança das pessoas nas instituições. Também aqui vemos uma lacuna. A confiança das pessoas nas instituições está a diminuir.

Temos de admitir que fomos ingénuos no passado, ao acreditar que o princípio do Estado de direito está lá para sempre, que vai funcionar sem problemas, que é automático, uma espécie de movimento perpétuo. Que os direitos fundamentais serão sempre respeitados em todo o lado.

Věra Jourová

Vice-Presidente da Comissão Europeia

Não acha ingénuo acreditar que esse condicionamento orçamental vai ser aprovado, quando há países que o podem vetar?

As negociações estão em curso. Eu não gostaria de desistir nesta fase, ou sequer dizer algo que possa por em causa a importância desta proposta.

Esta semana, o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, exigiu a sua demissão porque, numa entrevista, disse que o seu regime era uma democracia doente. Arrepende-se dessa escolha de palavras?

Não, não me arrependo. O que eu disse, eu disse. Disse talvez centenas de vezes que temos sérias preocupações em relação ao estado de coisas na Hungria. Usei palavras diferentes, mas falei sobre a mesma coisa e sobre preocupações sérias. Houve algum mal-entendido também no que disse, porque me lembro muito bem que a principal mensagem na entrevista que dei foi que a primeira e última palavra deve pertencer aos cidadãos, ao povo húngaro. Eu respeito muito o povo húngaro e a sua livre escolha. Reconheço que o Primeiro-Ministro Orbán ganhou as eleições, e acabei de dizer que precisamos de ver em todos os estados-membros, incluindo a Hungria, condições para garantir ao povo uma escolha livre e justa.

Não me arrependo nada (das palavras que usei contra Viktor Orbán)

Věra Jourová

Vice-Presidente da Comissão Europeia

E pensa que ainda existe, na Hungria, uma escolha livre e justa, em eleições?

Há condições que têm de ser preenchidas. Em primeiro lugar, igualdade de condições nas campanhas políticas e transparência sobre, por exemplo, o financiamento das campanhas. Depois, tem de haver liberdade de expressão e um bom funcionamento dos meios de comunicação e do controlo judicial, porque pode haver situações em que os resultados eleitorais em qualquer país possam ser postos em causa. Aí têm de ser os tribunais a decidir. Só quando essas condições se verificam é que podemos falar de eleições livres e justas.

Como irá lidar no futuro com o governo húngaro? Porque eles também estão a cortar os laços consigo.

Estou pronta para um diálogo com todos os Estados-membros e todos os parceiros.

Como pode a Comissão Europeia promover o pluralismo dos meios de comunicação social na Europa?

É um tema difícil, devo dizer. Porque não dispomos de competências jurídicas muito fortes. Temos algumas. Por exemplo, agora, no dia 20 de setembro, entrou em vigor a diretiva sobre o audiovisual. Vamos analisar a forma como os estados membros a estão a implementar na sua legislação nacional e, sobretudo, na prática. Até agora, apenas alguns Estados-membros notificaram a sua implementação. Por conseguinte, vamos analisar isso e utilizar a nossa competência legal. Mas, quanto ao resto, não temos competências jurídicas suficientemente fortes. Recomendámos várias vezes aos Estados membros que protejam ou ajudem os meios de comunicação social agora, na altura da Covid, para sobreviverem economicamente. Há vários Estados-membros que estão agora a aplicar a ajuda estatal também aos meios de comunicação social, para os ajudar a manter os empregos e assim por diante. Portanto, existem diferentes formas, e creio que seremos bem compreendidos na tentativa de apoiar os meios de comunicação social independentes, porque eles são muito necessários.

Francisco Seco/Copyright 2020 The Associated Press. All rights reservedVěra Jourová com o fundador do Facebook, Mark Zuckerberg.Francisco Seco/Copyright 2020 The Associated Press. All rights reserved

Com a pandemia, os países europeus apressaram-se a aplicar leis de emergência que limitavam as liberdades civis e a livre circulação dos cidadãos. Paralelamente, uma nova onda de notícias falsas e de desinformação inundou a Internet. Em muitos casos, a Rússia e a China estavam por detrás.

Pensa que depois da pandemia seremos capazes de voltar a uma espécie de velha normalidade em termos de democracia?

Em muitos aspetos, o "velho normal" não era um bom normal. Já tínhamos problemas antes da pandemia, como sabemos. O tempo da Covid ditou a imposição de estados de emergência na maioria dos países membros. Tentámos, com esforço, convencer os Estados-membros a respeitar o princípio da necessidade e proporcionalidade das medidas. Porque um regime de emergência não deve significar que se desligue o equilíbrio constitucional e o controlo judicial, ou que se silenciem os meios de comunicação social e os cidadãos ativos. Em relação a este tempo e aos regimes de emergência, fomos muito claros sobre como gostaríamos de ver isto acontecer. Também, a propósito, a proteção da privacidade estava em jogo e entregámos as diretrizes para os Estados-membros sobre como utilizar as aplicações de rastreio sem exagerar e sem privar as pessoas da sua privacidade. Penso que esta é a lição para o futuro. Perguntou sobre o novo e o antigo normal. É um processo sem fim. Como disse, costumávamos ser ingénuos. Pensávamos que se tratava de um automatismo. Não é. Portanto, continuaremos a defesa ativa do Estado de direito e da democracia na Europa. Gostaria de dizer que temos de ir além das palavras. Temos de fazer. Mais defesa, mais proteção.

A pandemia trouxe também consigo uma enorme onda de notícias falsas. Têm instrumentos para as combater?

É algo que vem de antes da Covid e que foi amplificado com a pandemia. Já antes tínhamos um grande problema com influência estrangeira e campanhas de desinformação. Tivemos vários setores sob ataque permanente de desinformação: Minorias, migração; mais recentemente as políticas verdes... Uma novidade é a grande e intensa onda de desinformação contra as vacinas. Portanto, nada disto é novo. Este fenómeno de desinformação tem de ser enfrentado. Mas de uma forma muito cuidadosa e sensata. E posso apenas dizer-vos que estamos a planear algumas novas regras para a Internet, mas no que toca à desinformação não estamos a introduzir qualquer tipo de censura ou algum tipo de limitação à liberdade de expressão.

Em muitos aspetos, o 'velho normal' não era um 'bom normal' (...) O fenómeno das notícias falsas vem de antes do tempo da Covid, mas foi amplificado com a pandemia.

Věra Jourová

Vice-Presidente da Comissão Europeia

Como lidam com as tentativas de desinformação estrangeiras, especialmente da China e da Rússia?

O nosso Serviço de Ação Externa está a trabalhar ativamente na deteção destes ataques coordenados e nas tentativas de influenciar a opinião pública na UE. Estamos a trabalhar com plataformas de Internet, porque queremos que informem o público sobre estes casos, para que as pessoas saibam que se trata de pressão vinda do exterior. E também queremos que as pessoas compreendam melhor qual é a finalidade desta pressão, qual é a finalidade de diferentes campanhas de desinformação. Provavelmente eu, como cidadão, estou sob a influência de alguém que quer distrair a nossa sociedade, semear o ódio e a desconfiança em relação às instituições. Penso que temos aí uma grande lacuna. É preciso tornar claro qual é o objetivo da desinformação e que esta pode ser muito perigosa.

Agora, as relações da Europa com a Rússia sofreram um novo golpe com o caso Navalny. Acha que a Europa deveria impor sanções à Rússia por causa desta questão?

Penso que o debate está em curso no Serviço de Ação Externa e também no Conselho de Negócios Estrangeiros. Este é, de facto, um grande golpe e não podemos deixá-lo sem reação. Tenho a certeza absoluta de que este é momento decisivo também nas nossas relações.

Pensa que poderia haver unidade sobre esta questão na Europa?

Precisamos de unidade para as sanções.

_Entrevista gravada na sede da Comissão Europeia, em Bruxelas, no dia 30 de setembro. _