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segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Cavaco Silva: o regresso dos mortos-vivos


por estatuadesal
(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 04/09/2017)
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A esta hora Cavaco deve estar a preparar uma viagem a Fátima, acompanhado da Maria, para pedir à Virgem que acabe com tanta porrada que tem levado nos últimos dias. Estava tão bem posto em sossego no Convento do Sacramento, gozando da sua parca reforma dourada, que em tempos disse que mal lhe dava para pagar as suas enormes despesas, e a destilar fel para o segundo volume das suas memórias, que acredito que perante tanta tosa, já se tenha arrependido de ter saído da toca.
Aqui vão mais umas bordoadas a preceito, dadas desta vez pelo Daniel Oliveira. Eu não tenho pena nenhuma do personagem, e aliás, fui dos primeiros a molhar a sopa.
A poucos se aplica melhor do que Cavaco o sábio ditado popular que assim reza: Só se perdem as que caem no chão.
Estátua de Sal, 04/09/2017


Durante quatro décadas um dos políticos profissionais há mais tempo no ativo apresentou-se como um técnico, um outsider, um antipolítico. Durante quatro décadas um dos políticos mais perdulários, responsável pela perda de uma oportunidade histórica, como primeiro-ministro, e com uma das casas civis mais dispendiosas da nossa democracia, que chocou o país ao dizer que 10 mil euros quase não davam para as suas despesas, apresentou-se como um político austero.
Durante a sua longa carreira política rodeou-se de homens como Duarte Lima, Dias Loureiro ou Oliveira Costa, mantendo com este último relações financeiras promíscuas, e isso não o impediu de dizer que era preciso nascer duas vezes para ser mais sério do que ele.
A dissociação entre o que Cavaco Silva é e a imagem que tem de si mesmo é o seu traço psicológico mais perturbante. Um traço megalómano que o aproxima, curiosamente, de José Sócrates.



Agora, o homem que acusou um governo de fazer escutas ao Palácio de Belém sem que nunca apresentasse qualquer prova de tão grave denúncia, que fez discursos tomados pelo ódio contra aqueles com que era suposto cooperar, quer apresentar-se, escondendo-se atrás do nome de Macron, como o exemplo de um Presidente ponderado e discreto, em contraste com a “verborreia” do atual chefe de Estado, escondido atrás da “maioria dos políticos europeus”.
O regresso de Cavaco Silva, como ex-presidente, confirma a falta de “gravitas” a que sempre nos habitou. Os ataques ao atual Presidente da República, em termos que roçam a pura ordinarice, sublinham o sentimento revanchista que guiou grande parte da vida da sua vida. Ele foi o Presidente eleito mais impopular que a nossa democracia conheceu, Marcelo é dos mais queridos pelo povo. Não porque Marcelo seja extraordinário. Apenas porque não se entrega ao insuportável estilo azedo de mestre-escola, como se toda a Nação lhe devesse, sabe-se lá porquê, uma infinita gratidão. Na realidade, Marcelo Rebelo de Sousa deve metade da sua popularidade ao facto de ter sucedido a tão desagradável e cansativa personagem.
A forma desvairada como o anterior Presidente reagiu à possibilidade de dois partidos que representam um quinto dos portugueses poderem ter qualquer tipo de participação na governação do país não resultava apenas da dificuldade que Cavaco Silva sempre teve em compreender a democracia – uma incompreensão que o levou a considerar quem lhe limitava o poder como “força do bloqueio”, a afirmar que duas pessoas sérias com a mesma informação não podiam discordar ou a teimar em tratar a “realidade”, tal qual ele a vê, como algo de indiscutível. A dificuldade de Cavaco com a democracia é profunda e radica na imagem que ele tem de si mesmo e do mundo. Resulta da sua autossuficiência e da sua ignorância, duas coisas que muitas vezes andam de mão dada. Mas a histeria que nos ofereceu quando decidiu insultar 20% dos eleitores resulta, acima de tudo, da caricatura que ele faz da esquerda. Cavaco, num analfabetismo político que quatro décadas de carreira não permitiram ultrapassar, acreditava mesmo que um governo liderado por António Costa com o apoio do BE e do PCP iria levar a cabo uma “revolução socialista”.
O problema da intervenção de Cavaco Silva na universidade de verão do PSD não é a falta sofisticação dos seus pontos de vista. É um estilo chocarreiro que apenas nos faz suspirar de alívio por não o termos como inquilino de Belém. Houve um tempo em que poderíamos ter desejado que Cavaco Silva acabasse a sua carreira com dignidade. Essa possibilidade perdeu-se no seu último e penoso mandato presidencial. Agora, só podemos desejar que a direita, órfã de liderança, não se agarre a esta alma penada que arrastou durante quatro décadas pela mais deprimente mediocridade intelectual, política e moral.

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