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segunda-feira, 3 de abril de 2017

Em Roma já não sobra nada (estatuadesal)

 

(Francisco Louçã, in Público, 24/03/2017)
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   Francisco Louçã
Djisselbloem parece ser tudo o que a União Europeia tinha para dar. Tem sido ele quem faz, pois é uma marreta de Schauble, que cuida do controlo político sobre o euro através dessa instituição sem regras, o Eurogrupo. É ele, o dogma de uma política económica destruidora. É ele, a transumância política entre socialistas e a direita, nesse nevoeiro em que se tornou a “governança” europeia. Ou, como escrevia Viriato Soromenho Marques, europeísta lúcido, esta gente é a figuração de “um dos problemas europeus, sem remédio aparente, o défice de competência política e o excesso de cabotinismo que reina no fervilhar das chancelarias”.
A esse cabotinismo respondeu António Costa com um ultimato em tempo certo: demita-se, ou o euro não tem futuro. Só que pode parecer ou exagerado ou ambíguo. Se Djisselbloem sair, e vai sair dentro de alguns meses para salvar as aparências, outro virá para um caminho que poderá ser semelhante. O que é que então quer dizer que o euro não tem futuro – é por ter um cabotino à frente do Eurogrupo (a obedecer à Alemanha) ou é por seguir uma política cabotina (que a Alemanha impõe)? No dia da triste festa de Roma, não creio que haja outra pergunta.
Será então que o ministro holandês se limitou a exagerar os seus preconceitos, em contraste com a frieza equilibrante dos burocratas europeus, nada dados a exageros? A experiência diz que não. Afinal, tivemos a Grécia (vendam as ilhas, dizia um ministro alemão). Afinal, temos Guenther Oettinger, o comissário europeu promovido para dirigir o Orçamento e que exigia que os países endividados ficassem com a bandeira a meia haste (além de outras aleivosias racistas). Afinal, temos Juncker, que afirma que a França deve ser isenta das obrigações dos Tratados por ser a França. Se portanto nos perguntamos se Dijsselbloem é simplesmente uma anedota que se pode descartar com o abanar da mão, a prudência pede que se olhe para a floresta e não só para a árvore: o homem foi simplesmente a voz do governo europeu.
Terá sido por isso mesmo que Sampaio já se tinha erguido, aqui no PÚBLICO, contra o caminho do desastre: uma “corrida para o abismo”, com o “ponto de não retorno” do Brexit, tudo agravado pela inviabilidade de 10-15 anos de austeridade impostos pelo Tratado Orçamental aos países periféricos, a que ainda acresce a “gestão desastrosa” da questão dos refugiados e “uma clara acumulação de dificuldades, problemas mal resolvidos e alguns estrondosos insucessos” e, em consequência, “o esboroamento a olhos vistos da confiança na União Europeia, nas suas instituições e nos seus líderes”. O “esboroamento”, nada menos.
Mais, acrescentava o ex-Presidente, isto não vai ser corrigido: “o pior é que, de facto, ninguém parece acreditar que Bruxelas (ou Berlim) tenha qualquer iniciativa nos próximos meses para responder à crise da eurozona, para alterar a ortodoxia financeira dos credores ou para criar as condições institucionais e orçamentais que tornem possíveis programas de reforma nas economias mais frágeis”. O teste está a ser feito na Cimeira que decorre este fim de semana em Roma: haverá palavras de circunstância sobre o atentado de Londres e sobre os 60 anos da fundação, enquanto os cinco cenários de Juncker serão misericordiosamente enterrados e não haverá nada sobre como deve a União superar a desunião e o desprezo pela vida dos desempregados, ou dos trabalhadores, ou dos jovens. Afinal, o dijsselbloismo tem triunfado sem oposição nas cimeiras europeias.
Claro que em Portugal, apesar da indignação espraiada até entre os partidos de direita contra “as mulheres e os copos”, ainda sobrou a brigada conservadora que veio defender Dijsselbloem. Helena Garrido já tinha dito que o chefe dele, Schauble, tinha razão, aliás os chefes têm sempre razão e, se anuncia que vem um resgate, é porque sim e até é um favor que nos faz. Camilo Lourenço, um homem do CDS, alinhou imediatamente com Dijjselbloem, que andava tudo a exagerar e no fundo o homem tem razão.
José Manuel Fernandes reconhece, pesaroso, que a frase é “infeliz”, para logo também concluir que tem razão. Mais ainda, entusiasmado com a ideia, Fernandes ensaia no Observador a sua própria versão do dijsselbloemês, advertindo-nos paternalmente: “a próxima vez que um filho vosso (ou um irmão) que está em riscos de chumbar o ano vos vier pedir dinheiro para ir ‘com a malta’ para ‘a noite’ na véspera de um exame decisivo, passem-lhe logo o cartão do multibanco e o respectivo código, não vá ele acusar-vos de ‘moralismo’ e ‘preconceitos’, talvez mesmo de ‘xenofobia’, porventura de ‘racismo’ e ‘sexismo’. Como sabem, assim ele irá longe na vida”. Este catálogo de pecados é maravilhoso e serve para explicar porque é que Dijsselbloem, no fim das contas, é como o nosso pai quando cuida de nós e não cede à tentação de nos deixar ir para a “noite”. Os conservadores continuam a lastimar a falta do Diabo, que vinha e não veio, e ficam-se por agora pela certeza de que “copos e mulheres” ou os “copos” e a “noite” na “véspera de um exame decisivo” nos levam pelo caminho da condenação aos infernos.
Ainda não perceberam que de inferno sabemos todos muito, vivemos a caminho dele desde que Passos Coelho nos explicou que, com a troika, precisamos mesmo de empobrecer – sem “copos” e sem “mulheres”, diria o presidente do Eurogrupo.
 
Ovar, 3 de abril de 2017
Álvaro Teixeira

segunda-feira, 27 de março de 2017

A reserva de soberania e o futuro de Portugal (estatuadesal)

 

(Professor João Ferreira do Amaral, in Blog ArbrilAbril, 24/03/2017)
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A União Europeia não é um mero prosseguimento da CEE sob outro nome. A União é algo de novo, e o seu estabelecimento, em 1992, com a ratificação do tratado de Maastricht, representou um corte em relação ao que tinha sido até aí a evolução da integração europeia ocidental pós-II Guerra Mundial.

O modelo federal-neoliberal europeu
Comemora-se este mês o 60.º aniversário do Tratado de Roma. Ou, como muitos acrescentam, os 60 anos da União Europeia, anteriormente designada como Comunidade Económica Europeia (CEE).
Nada mais errado que este acrescento. De facto, a União Europeia não é um mero prosseguimento da CEE sob outro nome. A União é algo de novo, e o seu estabelecimento, em 1992, com a ratificação do tratado de Maastricht, representou um corte em relação ao que tinha sido até aí a evolução da integração europeia ocidental pós-II Guerra Mundial. Por isso, mais do que a comemoração dos 60 anos da CEE, o que deveríamos estar a assinalar (não a comemorar) são os 25 anos do Tratado de Maastricht.
Foi a partir deste tratado que a União entrou numa via federalista induzida pelo objectivo do alargamento do mercado tanto no que respeita ao mercado interno europeu como no que decorre do avanço da globalização económica e financeira que, surgida ainda nos anos oitenta se acelerou fortemente nos anos noventa do século passado.
A via federalista assentou em primeiro lugar na criação do euro, que será efectivada em 1999 e desenvolver-se-á mais tarde, em 2009, com o chamado Tratado de Lisboa, que instituiu uma união estranha, uma espécie de pseudo federalismo subordinado a um Estado – a Alemanha –, por vezes acompanhado por um parceiro menor – a França.
Este caminho que as instituições europeias seguiram não foi mais que uma forma de prosseguir o alargamento dos mercados e de forçar uma suposta adaptação à globalização, transferindo todo o impacte desta sobre o factor trabalho, seja a nível dos salários e direitos sociais, seja ao nível do emprego.
De facto, as instituições de Maastricht, em particular no que respeita às instituições da União Económica e Monetária, estabeleceram a obrigatoriedade de serem seguidas, por parte do Banco Central Europeu, políticas monetárias ultraconservadoras e, por parte dos governos, políticas orçamentais restritivas. A combinação destas duas exigências tem como consequência que todo o ajustamento macroeconómico assenta necessariamente sobre o emprego e/ou os salários e direitos sociais. Não é, pois, de estranhar que a zona euro seja, desde a sua criação, a zona de maior desemprego a nível mundial e que o peso dos salários no rendimento nacional tenha vindo a reduzir-se ao mesmo tempo que as desigualdades se acentuaram.
«O caminho que as instituições europeias seguiram não foi mais que uma forma de prosseguir o alargamento dos mercados e de forçar uma suposta adaptação à globalização, transferindo todo o impacte desta sobre o factor trabalho»
A imposição deste pensamento único por parte das instituições de Maastricht exigiu uma perda de soberania dos estados-membros, de modo a que estes não dispusessem de autonomia para decidir sobre as políticas de estabilização económica que pretendessem seguir. O federalismo foi assim um instrumento muito eficaz para forçar os estados a seguir políticas macroeconómicas neoliberais, consideradas pelas propaganda necessárias para reduzir os direitos sociais e os salários no espaço europeu, única forma – dizia-se – de a Europa se poder adaptar à globalização.
Mas não se ficou pelas políticas macroeconómicas a imposição do modelo federal-neoliberal. A política europeia de concorrência e de ajudas de Estado foi reforçada e a jurisprudência do Tribunal de Justiça veio a revelar-se marcadamente ideológica, também ela subordinada à visão neoliberal do primado do mercado, forçando os tratados e impondo uma visão muito restritiva da intervenção do Estado na economia, com o fito, mais uma vez, de potenciar o alargamento de mercado em prejuízo de todos os outros valores. Em vez de perseguir as práticas discriminatórias – entre naturais dos diversos estados – que possam decorrer da política económica, o que é justificado quando existe um processo de integração e que era a sua tradição, o tribunal tornou-se principalmente, sem qualquer base nos tratados, um perseguidor da intervenção estatal na economia.
O modelo federal-neoliberal iniciado com Maastricht cumpriu durante algum tempo o papel para que tinha sido criado. Foi inclusivamente aprofundado pelo Tratado de Lisboa e pelo infame Tratado Orçamental que se lhe seguiu. Mas, quando este entrou em vigor (2013), já o modelo estava em crise. Crise que se transformou numa crise profunda da União e que justifica que se encarem todas as opções para o futuro da cooperação europeia.
2. A reserva de soberania e uma nova cooperação europeia
A cooperação europeia é essencial, uma vez que existem certos interesses comuns colectivos na Europa que exigem uma gestão baseada na cooperação entre estados. Por isso, é perfeitamente aceitável que os estados acordem em respeitar determinadas regras comuns para prosseguirem da melhor forma esses interesses comuns colectivos. Mas tal tem de ter um limite. Esse limite é o da reserva de soberania que cada Estado-membro tem de manter para prosseguir os seus interesses nacionais e não ficar sujeito ao pensamento único nem aos interesses de outros estados.
Ora, o que sucedeu desde Maastricht é que essa reserva de soberania foi violada e os estados, em particular os de menor dimensão, ficaram sem a autonomia suficiente para poderem prosseguir os seus interesses.
Por isso, o passo fundamental para a criação de uma nova união ou para a reforma drástica da actual é repor a reserva de soberania no essencial do que existia antes de 1992. E nesse aspecto a soberania monetária é a fundamental.
Basta ver o que um país perde quando cede a sua soberania monetária, como foi o caso de Portugal quando aderiu ao euro, para verificar como não pode haver sustentabilidade para um país como membro respeitado da comunidade internacional se não dispuser da sua soberania monetária. Recordemos os poderes soberanos que o País perdeu com a entrada no euro.
Perdemos:
– instrumentos essenciais da política económica (política monetária e cambial);
– autonomia do Estado em relação aos mercados financeiros e às agências de rating;
–  autonomia das decisões orçamentais e com isso grande parte da soberania em geral;
– controlo do sistema financeiro por ter deixado de existir um prestamista de última instância nacional (função anteriormente exercida pelo Banco de Portugal);
– possibilidades de o Estado controlar sectores essenciais para a independência nacional.
A pertença ao euro – um dos maiores desastres da nossa história – tem de ser revertida como primeiro passo fundamental para repor a reserva de soberania. Por isso, é urgente que a nova união defina um conjunto de procedimentos para a saída de um país da zona euro.
Por outro lado, essa nova união deve assentar num tratado que substitua o modelo federal-neoliberal e que respeite sem subterfúgios a reserva de soberania de cada Estado.
A questão da reserva de soberania é nos tempos actuais a mais importante que o País tem de enfrentar. Nela se joga a possibilidade de Portugal continuar a existir.
 
Ovar, 27 de Março de 2017
Álvaro Teixeira

NATO e União Europeia: a óbvia e velha geminação

Dossiê 60 anos do Tratado de Roma: «Um passado sem futuro»

José Goulão

José Goulão
Durante toda a segunda metade do século passado, a partir do Tratado de Roma de 1957, a Comunidade Económica Europeia sempre foi olhada como um «pilar europeu» da NATO, submetendo a política de defesa dos Estados membros às normas, práticas e estratégias da aliança militar transatlântica.
 
Ilustração de Irene Sá

Ilustração de Irene SáCréditos
A criação da NATO, em 1949, antecedeu em oito anos o Tratado de Roma, que deu origem à Comunidade Económica Europeia (CEE). E todos os seis Estados fundadores desta tinham participado na formação da Aliança Atlântica, sob o controlo militar norte-americano da Europa Ocidental e sobre os escombros de uma vasta região carente do traiçoeiro e caríssimo Plano Marshall. Nos prosaicos termos da teoria dos conjuntos, a CEE (hoje União Europeia) integra a NATO desde os tempos em que nem sequer nascera.
É inevitável que a chamada «construção europeia» – na sua vertente real, não a mitológica para efeitos de propaganda – seja inseparável da estratégia e dos comportamentos da NATO, uma vez que uma e outra cuidam dos mesmos interesses. A versão oficial assegura que são a democracia e os direitos humanos; os cidadãos sentem e sabem, por experiência própria, que a «Europa» e a autoproclamada «aliança defensiva» cuidam sobretudo da impunidade do mercado, do casino da finança, da austeridade, da desregulação de capital e trabalho, das guerras expansionistas e de rapina sempre que esses interesses as reclamem.
Não foi apenas na origem que a união militar antecedeu a união política; a história das décadas mais recentes demonstra que a NATO chegou sempre antes da «Europa» quando e onde houve matéria-prima – territórios, países e povos – a capturar.
Nos Balcãs, na esteira da destruição artificial e sangrenta da Jugoslávia, a aliança militar apropriou-se – formal ou informalmente – da Croácia, Eslovénia, Bósnia-Herzegovina, Kosovo e Montenegro; a União Europeia, enquanto tal, chegou depois e submetendo-se aos esboços traçados pelo aparelho militar transatlântico, para então cuidar da formatação política nesses territórios, entre chantagens e promessas miríficas.
Mais flagrante ainda foi a corrida aos despojos dos antigos Tratado de Varsóvia e União Soviética. A NATO fez de lebre na anexação dos países desde a RDA, Roménia e Bulgária aos Estados do Báltico, fazendo a União Europeia de tartaruga, isto é, impondo a componente política invasiva depois de estabelecidos os parâmetros militares, os quais, em boa verdade, presidiram à transição sem rede da economia planificada para a anarquia mercantilista. Ao conjunto das operações chamaram «democratização».
Ainda hoje – hoje em realidade temporal e não figura de retórica – os Estados Unidos acabaram de colocar mais mil soldados com capacidades letais na Polónia, ameaçando «defensivamente» a Rússia, ignorando olimpicamente os desencontros, apenas narcísicos, entre o regime pré-fascista de Varsóvia e Donald Tusk, o agente polaco do liberal-conservadorismo instalado à cabeça do Conselho Europeu.
«(...) a história das décadas mais recentes demonstra que a NATO chegou sempre antes da "Europa" quando e onde houve matéria-prima – territórios, países e povos – a capturar.»
Não passam, pois, de mitos engendrados nos centros de propaganda que alimentam a gesta da chamada «integração europeia» as lendas em torno dos «pais fundadores» e seus impulsos visionários. Enquanto o banqueiro Jean Monnet criava o seu Comité de Acção para os Estados Unidos da Europa, na primeira metade dos anos cinquenta, depois de ter assessorado o presidente Roosevelt no impulso armamentista norte-americano, já os Estados Unidos tinham assegurado o controlo militar e «democrático» da Europa através da NATO, integrando até a ditadura fascista que vigorava em Portugal; ainda Robert Schuman, o «pai da Europa» a quem o papa Wojtyla abriu as portas da canonização no ano da queda do Muro de Berlim, pregava sobre a indispensável aliança política entre a França e a Alemanha, já os dois países se tinham irmanado dentro da NATO, sob a tutela do Pentágono; ainda o direitista chanceler alemão Konrad Adenauer procurava salvar os restos das bases industriais do país do assédio punitivo da França e de Jean Monnet – depois diluído com a criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço – e já a Alemanha Ocidental fazia parte da NATO, o que aconteceu antes de ser reconhecida verdadeiramente como um novo Estado soberano.
Durante toda a segunda metade do século passado, a partir do Tratado de Roma de 1957, a Comunidade Económica Europeia sempre foi olhada como um «pilar europeu» da NATO, submetendo a política de defesa dos Estados membros às normas, práticas e estratégias da aliança militar transatlântica. A integração política desenvolveu-se sempre no âmbito de uma confraria militar operada a partir dos Estados Unidos e envolvendo um núcleo dos países mais poderosos tanto na «Europa» como na NATO: Alemanha, França, Reino Unido e Itália. O Brexit não altera os dados da situação porque se processa apenas na União Europeia – o elo mais fraco destas ligações.
A transferência de tarefas operacionais da NATO para a CEE/CE/UE, tendência que se vem reforçando no século em curso, no âmbito da formação de um chamado «exército europeu», não é redundante do ponto de vista militar porque traduz, sobretudo, uma partilha de missões e uma repartição de encargos, naturalmente em prejuízo dos países e povos europeus.
Porque a questão de fundo, a permanente pressão militar atlantista sobre as decisões políticas, no âmbito da integração europeia e da vida nos Estados participantes, sempre foi salvaguardada.
Os exemplos dessa realidade foram abundantes durante a guerra fria, período em que a «integração europeia» serviu de pretexto para a definição de baias políticas que não poderiam ser ultrapassadas pelos Estados membros, mesmo que a vontade dos povos, expressa em eleições, e até o realismo de alguns políticos o justificasse. Uma linha absolutamente inultrapassável imposta pela NATO, e cumprida pelas instituições europeias, era a do acesso de Partidos Comunistas à área governamental.
Os casos mais flagrantes foram o de Itália nos anos setenta, culminando com o assassínio do dirigente democrata Aldo Moro; e os da Grécia – onde o PASOK sempre rejeitou acordos com os comunistas; e, sobretudo, de Portugal, onde a adesão à CEE, sem qualquer consulta popular e informação objectiva da população sobre as consequências, foi uma operação que serviu principalmente para tentar liquidar, através de imposições externas militares, económicas e políticas, as vias transformadoras harmonizadas com o espírito da Revolução de 25 de Abril.
«Uma linha absolutamente inultrapassável imposta pela NATO, e cumprida pelas instituições europeias, era a do acesso de Partidos Comunistas à área governamental.»
Os partidos sociais-democratas e socialistas europeus, peças estratégicas da «integração europeia» sob gestão da NATO, respeitaram as exigências atlantistas – parte de uma obscura política de bastidores – e sempre que surgiam suspeitas de desvios o mal era extirpado liminarmente. Assim desapareceu o primeiro ministro sueco Olof Palme do número dos vivos. Para manter as aparências «democráticas», as decisões emanadas do submundo político-militar eram executadas por organismos terroristas clandestinos apensos à própria NATO – a Gladio, por exemplo – como está cabal e documentalmente comprovado.
Assim se foi solidificando, dentro da NATO e da União Europeia, a convergência das políticas militares e económicas dos socialistas/sociais-democratas e das direitas liberais-conservadoras em formato de partido único, no exterior do qual não havia prática política com acesso à verdadeira tomada de decisões.
Com a queda do Muro de Berlim a NATO tomou o freio nos dentes e nem sequer pôs a hipótese de se extinguir, uma vez que o mesmo acontecera com o Tratado de Varsóvia, muitas vezes identificado – com todo o desplante – como a razão da sua existência.
A confluência dos avanços neoliberais durante os anos oitenta, a vertigem do progresso tecnológico e a extinção do inimigo ideológico proporcionou a veloz e frenética anexação dos ex-membros do Tratado de Varsóvia pela NATO, ainda antes de o serem pela «Europa».
O Tratado de Maastricht, fruto deste cenário, remeteu, de facto, o Tratado de Roma para a arqueologia da «integração europeia». Surgiu uma outra «Europa», sem se sentir amarrada a quaisquer peias de capitalismo «social» ou «de rosto humano».
As instituições europeias e os Estados membros, de Lisboa a Tallinn, abraçaram o neoliberalismo puro e duro; os socialistas/sociais-democratas, antes de começarem a emergir excepções, embriagaram-se com a terceira via – o liberalismo thatcheriano à moda de Blair; tudo isto sempre a reboque da estratégia da NATO e das suas guerras sem leis, ao serviço da globalização entendida como regime neoliberal global.
Até à crise que explodiu há quase dez anos, tão teimosa que parece inconvertível ao determinismo capitalista da sucessão de ciclos de crescimento e estagnação/recessão.
Para a NATO, tal facto não parece ser problema. Os militares, por definição, não têm que se preocupar com a democracia, os direitos dos cidadãos e até as convulsões no mundo das economias. Isso, em tese, cabe aos políticos.
O elo mais fraco do sistema, porém, está agora ainda mais fraco. O normativo político da NATO já começou a ser desrespeitado aqui e ali; a União Europeia tornou-se uma caricatura de um gigante mal amanhado e com os pés de barro; e o capitalismo selvagem é sacudido por contradições que ainda há poucos anos eram inimagináveis.
Não é apenas o Brexit e outras insolvências; nem sequer o aparecimento de Trump; nem a fuga para a frente do que resta da União Europeia, a diferentes velocidades e para um federalismo sem qualquer tipo de sustentação; nem as setas envenenadas disparadas entre Washington e Berlim, entre Varsóvia e Bruxelas, entre Paris e Moscovo, entre uns e outros, entre outros e uns.
Assistimos apenas a sinais; detectamos sintomas. A instabilidade tomou conta das estruturas transnacionais neoliberais que se afirmavam sólidas, inamovíveis, capazes de decretar o fim da História. Há um potencial e um espaço para a mudança, porém ante uma barreira que procura travar o desmoronamento do sistema – a NATO. Esse potencial de mudança arranca muito atrás de fenómenos nos quais o capitalismo, temendo a desagregação, foi delegando atribuições para sobreviver: o fascismo, o nacionalismo, os estados de excepção.
Geminada com a NATO desde o nascimento, a União Europeia é sempre uma putativa entidade paramilitar. Com o extremar das crises, o poder autoritário das armas abafa a razão das palavras. Cabe aos cidadãos evitar que a guerra seja, mais uma vez, a «solução».
 
Ovar, 27 de março de 2017
Álvaro Teixeira 

2,06%! (estatuadesal)

 

(Joaquim Vassalo Abreu, 27/03/2017)
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Que título, dirão vocês? É realmente esquisito, mas não é nem um número mágico, nem tão pouco um número cabalístico.
Andaram para aí a vender que seria 2,1%, que seria o mais baixo défice orçamental da nossa Democracia e eis que o Cadilhe, logo secundado pelo Passos, vem dizer: Na,Na,Na,Na…em 1989 eu também atingi esse valor: 2,1%, nada mais nada menos! Porque ninguém se lembra, perguntava ele indignado?
E eis que o INE vem dizer que, afinal, estavam todos errados: o Défice final foi de 2,06%!
Foi bom? Foi! Foi óptimo? Não! Mas porquê, perguntar-me-ão?
Não é por nada do que argumentou a Oposição, que está numa fase em que não sabe o que diz, por muito que o Marques Mendes na sua “missa” dominical os chame  à atenção, mas porque continua a ser um défice. E havendo um défice ele tem que ser colmatado. Como? Com mais Dívida. E mais Dívida é mais dependência, que é o contrário de independência, quer se queira quer não.
Claro que esta redução do défice é extremamente positiva, e por várias razões:
· Demonstra à saciedade que existia alternativa ao “não havia alternativa”!
· Que essa alternativa não passava pela simples austeridade sempre sobre os mesmos, tidos por únicos responsáveis pelo descalabro das contas públicas.
· Porque se demonstra que os Bancos portugueses e internacionais, os verdadeiros grandes responsáveis tinham, não pés de barro, mas pés de areia e movediça…
· Que a paz social, as reversões e a confiança geral que, por si só, impulsionam a economia, são mais importantes que quaisquer discursos macroeconómicos, sempre discutíveis.
Mas não basta ter descido em 2016. É preciso que a trajectória continue descendente, e o Governo assim promete e tem orçamentado. Porquê? Porque só assim se fundamenta sem quaisquer hesitações e suspeitas por parte das instituições europeias a sua sustentabilidade e a certeza de um caminho correcto para afirmação política deste Governo e desta solução governativa.
E quando se fala em pelotões, como se de uma prova ciclista se tratasse, é bem melhor ir à frente, do que se ter que fazer um esforço de recuperação que pode ser inútil. Para mais porque, a ser verdade que o BCE vai a partir do fim do ano restringir as compras de dívida pública dos países sujeitos a resgate, é necessário apresentar bons índices de rendibilidade, de execução orçamental, de diminuição do seu défice e de aumento do saldo primário, para que o “garrote” do serviço da dívida possa apresentar um menor peso e as renegociações constantes de “tranches” da nossa dívida, possam ser efectuadas por prazos mais longos e com juros mais baixos, de modo a fazer com que ela “coma” cada vez menos parte da nossa receita e mesmo superavit.
O objectivo deste governo tem que ser, portanto, o de atingir o défice Zero, é o que eu penso. E porquê? Porque, diz a nossa experiência profissional e de vida, que nunca se consegue negociar bem quando se está na mó de baixo. Quando se vai de chapéu baixo ou de calças caídas. Só se negoceia bem quando se tem argumentos, é da vida e dos livros.
Por isso falar-se em “reestruturar” a dívida é inapropriado porque, não sendo o mesmo que “renegociar”, ela remete para algo como um “haircut” (redução ou corte da mesma), que só acontece quando não se consegue mesmo pagar e se fica sujeito a todas as condições.
Falar em “renegociar” já é coisa bem diferente pois, apresentando números progressivamente fiáveis, favorece a aceitabilidade por parte dos detentores da dívida para a tal extensão da mesma, em condições mais favoráveis e dentro do “sistema” onde se integra. E é minha convicção que essa tal “renegociação” só se alcançará com sustentabilidade financeira (sem défice e consequente aumento dessa mesma dívida) e que só poderia ter alternativa de emissão de dívida interna (emissão de obrigações do tesouro, bilhetes do tesouro e instrumentos afins) se a nossa poupança interna não fosse o que é e o nosso sistema financeiro fosse outro também…
De modo que, finalizando, é com alguma preocupação que vejo o Bloco de Esquerda apresentar um discurso absolutamente errático e sem quaisquer soluções alternativas. Assim como se aquilo que eu deseje seja aquilo que escrevi. Não é! Como a minha vida também não o é. É o que é, é o que pode ser e, se não conseguir suster os meus gastos, que outro caminho me resta?
Posição diferente é a do PCP, que não é novidade, há muito que não o é, e é sim uma afirmação de denúncia e de aviso para, a não serem conseguidos, sou levado a pensar, os objectivos que atrás enunciei, Portugal se vá preparando para um “Euroexit”. Com que custos? Esse é que é o problema!
Por isso, neste momento, tendo-se alcançado aquilo que nunca se alcançou, tendo-se conseguido uma afirmação perante a CE que não existia, sendo possível apresentar argumentos, em suma, creio ser salutar continuar este caminho, para mim o caminho certo.
Quem não estiver de acordo que objete e apresente outro. Por isso eu entendo que, sendo legítimas as críticas e as objecções dos dois Partidos mais à esquerda e que suportam a nível parlamentar este Governo, estes devem medir bem aquilo que dizem e propõem porque, julgo estar certo e eles devem ter essa consciência, numas próximas eleições, depois de uma recuperação do País, ninguém compreenderia a apresentação de alternativas de muito difícil imediata sustentação e seriam fatalmente afectados eleitoralmente.
Eu coloco e todos podemos colocar todas as reticências ao rumo que a Europa leva etc, mas, quer queiramos quer não, é a que temos. E o que temos é que, dentro da que temos, conseguir a nossa afirmação!
Por tudo isto continuo a apoiar este Governo!
 
Ovar, 27 de março de 2017
Álvaro Teixeira

domingo, 26 de março de 2017

Em ti, Dijsselbloem (estatuadesal)

 

(Isabel Moreira, in Expresso Diário, 25/03/2017)
 
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Em ti, Dijsselbloem, está o que está em todo o lado, o sexismo que nas tuas palavras põe alimentos e mulheres no mesmo cesto e toda uma visão heteronormativa do mundo.
Em ti, Dijsselbloem, está, no entanto, especificamente, o desprezo pelo outro, a vontade de aniquilar esse outro, num olhar de moral calvinista, a vontade de varrer da Europa quem tens por miseráveis.
Em ti, Dijsselbloem, está, afinal, a vontade ativa de ignorar as causas da crise dos países europeus, está afinal o que sempre esteve, uma ética punitiva a aplicar aos boçais do sul entre os quais também habitam os que durante muito tempo validavam o teu discurso acusando-nos de vivermos “acima das nossas possibilidades”.
Em ti, Dijsselbloem, está a prova de que a xenofobia e o racismo, a extrema-direita, infiltraram-se nos partidos que se dizem, como o teu, “sociais-democratas”, para vitória de quem quer pregar, precisamente, a segregação em vez da união, o tal do desprezo pelo outro que te sai pela boca.
Em ti, Dijsselbloem, está a o norte e o sul, os “fundadores” e os “servidores”, com pronta ajuda do ministro das finanças alemão (era para o país dele que falavas, quando vomitaste?).
Desengane-se quem diz que só está em causa uma clivagem ética e moral e não, também, uma clivagem ideológica.
Vi quem escrevesse que seria assim, por ter sido um homem “de esquerda” a dizer o que disse. Acontece que Dijsselbloem representa precisamente o fenómeno de desmaterialização da esquerda (que felizmente não aconteceu em Portugal). É um homem que há muito dá mostras de pertencer ao campo da direita austera, arrogante e moralista.
Justamente o que é extraordinário é ver a extrema-direita crescer nos seus partidos formais e esticar os ramos para dentro de outros partidos e através deles para instituições europeias.
Foi o caso do partido trabalhista holandês, que lá fez o seu caminho tendo um Dijsselbloem à sua frente, à frente do governo e à frente do Eurogrupo, que não disse uma única palavra verdadeiramente diferenciadora do discurso da extrema-direita e que morreu nas últimas eleições.
Quem não morreu foi a extrema-direita.
Em ti, Dijsselbloem, ouvimos o que destrói (e já destruiu) a Europa.
 
Ovar, 26 de março de 2017
Álvaro Teixeira