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terça-feira, 11 de abril de 2017

Sei o que fizeste em Torremolinos (estatuadesal)

 

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 10/04/2017)
Autor
        Daniel Oliveira
Não há nada mais repetitivo do que o discurso dos velhos sobre os novos. Se formos rever tudo o que cada geração disse e escreveu sobre as gerações que as precederam descobrimos que, ao contrário do que pensamos, a humanidade nunca parou de regredir nos últimos milénios. É uma reação natural: os mais velhos estranham a novidade e tendem a romancear a sua própria juventude. A sua geração é sempre mais culta, educada, respeitadora e civilizada do que a geração dos seus filhos e netos. Muitos dos meus vizinhos pensam isso mesmo sempre que olham para o Jardim do Arco do Cego, transformado, ao fim de tarde, em bar para milhares de universitários que deixam um tapete de copos de plástico sobre a relva. Tento sempre defender o óbvio: não há nada de geracional naquela falta de civismo. Ainda se lembram de Vicente Jorge Silva ter falado da “geração rasca”? Agora é a “geração rasca” que fala da que veio depois. É tão antigo como a humanidade.
Este discurso é tão automático como discurso reativo, que faz a geração mais jovem ouvir qualquer crítica da mais velha como sinal de resistência à mudança e mau envelhecer. A arrogância é semelhante, aliás. Ainda há uns dias fui a Coimbra participar num debate e dediquei grande parte da minha intervenção a zurzir na praxe. Rapidamente surgiu, de um jovem, a defesa da sua geração contra os ataques dos mais velhos (no caso, eu). Tive de explicar que o conflito de gerações não me diz nada. Só me diz alguma coisa quando ele manifesta mudanças sociais e políticas que são corporizadas pelas novas gerações. Que não considero esta geração menos esclarecida do que a minha. Terá os seus próprios problemas, que resultam do que hoje existe e antes não existia: as redes sociais, a ausência de privacidade, a dificuldade de ter um foco quando a informação chega de todo o lado a uma velocidade impressionante, a precariedade como único futuro. Mas é, em geral, uma geração mais bem preparada e informada do que a minha.
Parece que no final dos anos 70 houve uma viagem nacional de finalistas a Torremolinos de tal forma brutal que estas foram proibidas durante uns anos. Foi a desbunda da geração que agora se arrepia com a falta de civismo dos seus filhos e netos
Não sei o que se passou em Torremolinos. Provavelmente será a justiça a avaliar. Os jornalistas começaram a fazer o seu trabalho, ouvindo, como é suposto nestes casos, as várias versões. Nenhum patriotismo me fará defender qualquer tipo de selvajaria. E não me custa acreditar que uma estada de cinco dias de adolescentes com bar aberto tenha este resultado. Qualquer hotel que resolve fazer um acordo destes tem de estar preparado para gerir situações difíceis. Uma coisa é certa: não há paciência para a conversa sobre a geração selvagem, versão renovada da “geração rasca” (era a minha), produto requentado, servido sempre da mesma maneira há milénios. Parece que no final da década de 70 houve uma viagem nacional de finalistas a Torremolinos de tal forma brutal que foram proibidas durante anos. Foi a desbunda da geração que agora se arrepia com a falta de civismo dos seus filhos e netos.
Mas a loucura atingiu níveis delirantes quando Nuno Rogeiro, nos microfones da SIC Notícias, comparou o sucedido a um ataque do Daesh: “Irrita-me essa história das criancinhas portuguesas que chegam e vandalizam os países vizinhos. As famílias têm de estar alerta, as próprias crianças têm de estar alerta, porque não pode ser. É uma vergonha. É possível ser adolescente e não ser igual ao Daesh. Se houvesse uma estância turística espanhola e tivesse sido devastada pelo Daesh não sei se os resultados seriam piores. As pessoas têm de ter um bocadinho de calma.” Isto não foi escrito numa caixa de comentários, foi dito num canal de notícias por um comentador de política internacional que, entre outras coisas, faz análise sobre ataques do Daesh.
Não quero relativizar um ato de vandalismo, se foi disso que se tratou. Não quero dizer que é da idade. Quero apenas dizer que em todas as gerações houve gente civilizada e pouco civilizada. Que, apesar de ser fundamental ensinarmos aos nossos filhos as vantagens da civilidade, não houve um tempo de adolescência ordeira e respeitadora. A adolescência é um tempo de excesso, temos de intervir quando esse excesso se manifesta de forma destrutiva. Agora como há quatro décadas.
O que me parece que está a mudar, mas isto talvez seja eu a idealizar o passado e a assustar-me com o presente, é a dimensão que cada episódio ganha pela repetição permanente nos media e nas redes sociais. Que faz as pessoas perderem noção das proporções. Ao ponto de Nuno Rogeiro comparar um triste e condenável episódio com adolescentes a um atentado do Daesh. Sim, temos de ter um bocadinho de calma.
Ovar, 11 de abril de 2017
Álvaro Teixeira

Síria: Fissão Tóxica (estatuadesal)

 

(Por Pepe Escobar, in Brasil247, 07/04/017)
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"Esses atos odiosos do regime Assad não podem ser tolerados." Assim falou o presidente dos EUA. Tradução instantânea: Donald Trump – e/ou toda a sopa de letras das agências de inteligência dos EUA, sem qualquer investigação detalhada –, estão convencidos de que o Ministério de Defesa da Rússia está simplesmente mentindo.
É acusação gravíssima. O porta-voz do Ministério da Defesa da Rússia, major-general Igor Konashenkov, reforçando que se tratava de informação "absolutamente objetiva e verificada",  identificou  um ataque da Força Aérea Síria lançado contra um depósito "rebelde moderado" a leste da cidade de Khan Sheikhoun usado pelos rebeldes para produzir e estocar ogivas carregadas com gás tóxico.  Konashenkov acrescentou que os mesmos produtos químicos foram usados pelos "rebeldes" em Aleppo no final do ano passado, conforme amostras recolhidas por especialistas militares russos.
Pois mesmo assim Trump sentiu-se compelido a telegrafar a linha que, hoje, virou sua pessoal linha vermelha na Síria: "Militarmente, não gosto de dizer quando e o que faço. Não estou dizendo que não farei coisa alguma de um modo ou de outro, e com certeza não diria a vocês (à mídia.)"
Por seu lado no gramado da Casa Branca, o patético reizinho de Playstation da Jordânia elogiava a "abordagem realista [de Trump] para os desafios na região."
Poderia passar por sketch de Monty Python. Desgraçadamente é de verdade.
O que está em jogo em Idlib.  Histeria à solta – mais uma vez –, a opinião pública ocidental esquece convenientemente que as armas químicas que Damasco declaradamente  possuía foram destruídas  faz tempo, em 2014, a bordo de um navio dos EUA, sob supervisão da ONU.
E a opinião pública ocidental convenientemente esqueceu que antes que Barack Obama transpassasse teoricamente a linha vermelha das armas químicas, um relatório secreto da inteligência dos EUA  já deixara bem claro que Jabhat [Frente] al-Nusra, codinome: al-Qaeda na Síria, já dominava todo o ciclo de produção e emprego do gás sarín e era capaz de produzi-lo em quantidade.
Para nem dizer que o governo Obama e seus aliados Turquia, Arábia Saudita e Qatar firmaram um pacto secreto em 2012 para lançar um ataque com gás sarín e culpar Damasco, criando o cenário indispensável para um replay da operação "Choque e Pavor". O dinheiro necessário para o projeto veio da conexão OTAN-CCG combinada a uma conexão CIA -MI6 também conhecida como linha de rato, para transferir todos os tipos de armas, da Líbia para jihadistas-salafistas na Síria.
Assim sendo pois, aquelas armas tóxicas que "desapareceram" – em massa – dos arsenais de Gaddafi em 2011 terminaram por ser 'um upgrade' para a al-Qaeda na Síria (não para o Estado Islâmico/Daech), rebatizado como Jabhat [Frente] Fatah al-Sham e amplamente descrita em toda a Av. Beltway do Departamento de Estado dos EUA, como "rebelde moderada".
Encurralados na província Idlib, esses "rebeldes" são hoje o principal  alvo do Exército Árabe Sírio (EAS) e da Força Aérea Russa. Damasco e Moscou, diferentes de Washington, estão empenhadas em esmagar toda a galáxia jihadi-salafista, não exclusivamente o Daech. Se o Exército Árabe Sírio continua a avançar, e se esses "rebeldes" perdem Idlib, é fim de jogo.
Assim sendo, a ofensiva de Damasco tinha de ser impedida, custasse o que custasse, e bem à vista de toda a opinião pública global.
Mesmo assim, absolutamente não faz sentido que apenas dois dias antes de nova conferência internacional sobre a Síria, e imediatamente depois de a Casa Branca ter sido forçada a admitir que "cabe ao povo sírio escolher o próprio destino" e que ninguém mais falaria de "Assad tem de sair", Damasco lançaria um ataque com gás tóxico que absolutamente   contrário a todos os seus próprios interesses e antagonizaria todo do universo OTAN.
A coisa aí anda – e fala – mais como o velho tsunami de mentiras que anunciou o início da operação Choque e Pavor em 2003, e com certeza anda e fala como alguma mesma velha campanha da "al-CIAda" returbinada. A [Frente] Jabhat al-Nusra nunca deixou de ser a garotinha da CIA, no cenário preferencial de mudança de regime sírio.
As crianças de vocês não são suficientemente tóxicas A embaixadora de Trump à ONU, quadro da Heritage Foundation, Nikki Haley, girou como neomíssil embriagado, como se poderia prever, monopolizando todo o ciclo ocidental de noticiosos de TV. Apagado, também previsivelmente, foi o vice-embaixador da Rússia à ONU Vladimir Safronkov, que reduziu a pó de traque a "obsessão do ocidente com mudar o regime" na Síria, que é o que sempre emperra esse Conselho de Segurança".
Safronkov repetiu que o chamado 'ataque químico em Idlib estava baseado em "relatórios falsificados dos Capacetes Brancos" – organização "há muito tempo desacreditada". Pura verdade. Mas agora os Capacetes Brancos até já ganharam um Óscar , e essa medalha de honra da cultura pop   os torna inacusáveis – para nem dizer que os imuniza contra os efeitos do gás sarín.
Inventem Trump e o Pentágono o que quiserem, analista independente da inteligência dos EUA, avesso a pensar corporativamente é bem claro: "Ataque aéreo contra a Síria, só se for coordenado com a Rússia, e a  Rússia não permitirá ataques aéreos contra Assad. A Rússia tem os mísseis de defesa bem ali e pode bloquear o ataque. Terão de negociar.  Não haverá ataque, porque qualquer ataque pode precipitar uma guerra nuclear."
As "crianças sírias" mortas são agora peões de jogo muito maior, muito mais perverso. O governo dos EUA pode ter assassinado um milhão de homens, mulheres e crianças no Iraque – sem qualquer 'indignação' manifesta entre as "elites" em todo o espectro OTAN. Há uma criminosa de guerra ainda à solta, que admite diante das câmeras   que o assassinato direta e indiretamente de 500 mil crianças iraquianas foi "justificado".
Por seu lado, Barack [Nobel da Paz] Obama instrumentalizou a Casa de Saud para que pagasse – e armasse – coisa como 40 grupamentos "selecionados" pela CIA na Síria. Vários desses grupamentos já estavam fundidos, ou haviam já sido absorvidos pela Jabhat [Frente] al-Nusra, atualmente Jabhat [Frente] Fatah al-Sham. E todos eles dedicados aos seus próprios massacres de civis.
Enquanto isso, o Reino Unido segue alegremente armando  a Casa de Saud, em sua empenhada luta para reduzir o Iêmen a uma vasta terra devorada pela fome, semeada de "danos colaterais" em seus túmulos. Ninguém no espectro da OTAN chora por aquelas crianças iemenitas mortas.
São crianças mortas pouco tóxicas.
 
Ovar, 11 de Abril de 2017
Álvaro Teixeira

segunda-feira, 10 de abril de 2017

AS RECEITAS EXTRAORDINÁRIAS- Do Passos… (estatuadesal)

 

(Joaquim Vassalo Abreu, in 07/04/2017)
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Eu estive distraidamente a ouvir a entrevista de Passos Coelho à SIC, e quando digo distraidamente é porque já pressupunha não esperar dali nada de novo nem de extraordinário, o que não aconteceu como previa pois, por incrível que pareça, coisa que nenhum pós opinador notou ou referiu, nem agora na Quadratura do Círculo sequer que, por curiosidade, acabei por ver, ele disse realmente algo de extraordinário!
Confusos? Mas não fiquem pois, estando já estão habituados à minha redonda maneira de pensar e analisar, eu não atribuo facilmente a qualidade de “extraordinário” a uma coisa qualquer. Tem que ser mesmo extraordinária!
É que Passos Coelho, reconhecendo que o Governo atingiu realmente a meta do Défice só a alcançou porque “Mudou de estratégia e recorreu a medidas extraordinárias”. Que, para ele, seriam o tal Plano “B”. E que, assim, até ele…
Ora, facilmente concluo, e quer-me parecer, que Passos Coelho nunca entendeu nada do que são essas tais “medidas extraordinárias”! Ou melhor, “Receitas Extraordinárias”. No seu Governo isso nunca aconteceu(!) e se aconteceu foi sem seu conhecimento, claro. Isso foi lá com o Gaspar, com a Marilu ou fosse lá com quem fosse! Com ele? Com ele nunca!
Portanto, segundo ele, e concluindo, para que sigam atentamente, este Governo só conseguiu o Défice que conseguiu com recurso às tais “Receitas Extraordinárias”. Está dito e redito.
Mas, meu caro Passos Coelho, eu que não tenho o canudo em Economia, como você, mas que dela conheço assim uns princípios, vou tomar a liberdade de lhe explicar o que é, realmente, uma “Receita Extraordinária”. E, desde logo, é fácil: é o contrário da “ordinária”!
Por exemplo, aqui na minha casa e na minha Família: para além da receita “ordinária” (sem qualquer sentido pejorativo na sua dimensão), que são as Pensões minha e da minha esposa, que podiam ser ordenados também, “Receita Extraordinária” seria sair-nos o Euromilhões! Ou a “Raspadinha, pronto! Ou como uma Empresa receber assim um donativo, como recebem muitas Misericórdias, de alguém que não tem a quem deixar o dinheiro, ou então, o que ainda mais extraordinário é, o Estado receber 20% dos Euromilhões que vêm cá para este quadradinho à beira mar plantado e que disso não se pode queixar. E tem sido extraordinário, não tem?
Isto que eu enumerei, e podia até elencar mais algumas situações, é que são “Receitas Extraordinárias”, meu caro Passos Coelho! Querem dizer simplesmente que são receitas para além do ordinário, do comum, do espectável, do normal, do corrente, do não previsto e por aí adiante…
Mas, na sua confusa perplexidade, perguntar-me-á: Então, não sendo extraordinárias, quer dizer que são ordinárias? A sua pergunta, meu caro, por ser da ordem do pertinente, merece a minha resposta: SÃO!
Pois repare: Uma Empresa, por exemplo. Tem uma série de clientes com dívidas já em Mora e, a não se fazer algo, vão para contencioso. Qual é a função, a obrigação, coisas que resultam do bom senso e da boa gestão, dessa Empresa? É colocar um objectivo para a recuperação dessa Crédito Malparado e desenvolver todas as “démarches” possíveis, com acordos de pagamento, com perdões de juros, com renegociação de prazos, de modo a manter o crédito vivo e recebível! É do senso comum e da gestão comum, meu caro. É ORDINÁRIO! Como nos Bancos, como deve saber e não me vou repetir…
E vamos agora ao Governo ou ao Estado. Em cada exercício anual e orçamental estipular como objectivo a recuperação de Créditos Duvidosos, de Impostos em Mora, de Prestações em incumprimento etc. não será um acto de gestão “ordinário”? Extraordinário seria nada fazer e com todos os devedores a continuarem alegremente sem pagar, nem a isso serem chamados.
Mas se não sabe eu digo-lhe: os seus Governos fizeram-no todos os anos, este também o fez e os vindouros também o farão. E fá-lo-ão em nome de muitas coisas: da justiça, da equidade, do dever, da obrigação e, finalmente, da boa gestão. Não percebe? Nem agora?
Portanto, meu caro e inefável Passos Coelho, arranje lá outra explicação, homem. Diga, por exemplo que, sem essas tais “Receitas Extraordinárias” teria conseguido melhor! Porque não diz e, mais que dizer, explica?
Eu sei que você também meteu aí na embrulhada a redução do Investimento Público, cortes nos Serviços etc. mas, francamente, quem é você para isso criticar? Eu sou obrigado a concluir que, na realidade, você não tem mesmo noção de como governou. Mas será que governou mesmo?
E sabe mais, Passos Coelho: é que enquanto você afirmava que ia cortar 600 milhões nas Pensões, que era imperativo, este Governo fez reversões, actualizou salários, repôs rendimentos e diminui drasticamente o desemprego. Donde resulta menos pobreza, sabe? Aquela que você promoveu, para não aplicar outro verbo menos simpático.
Mas, a contragosto, lá conseguiu reconhecer que foi bom este Governo ter atingido o défice que atingiu. E, acrescentou, que foi melhor tê-lo conseguido do que o não ter alcançado, inspirando-se aqui, sem margem para dúvidas no Monsieur de La Palisse!
Mas, sabe, notei-o mais cândido, mais sóbrio, diria mole até, o oposto daquele animal ferido e feroz naquela primeira bancada da Assembleia, de dedo em riste e quase perdendo a respiração (por força da claustrofobia, claro)…Quem o terá aconselhado? O Montenegro? Não acredito! O Rangel? Muito menos! Terá sido o Presidente? Quem sabe…apesar daquela da Teodora! “Vichyssoise”, está bom de ver…
Por último: Ó Passos Coelho, você nem imagina o quanto eu estou carente de uma “Receita Extraordinária”. É que, sabe, eu de um “ordinário” não passo: É que ninguém me deve nada!
Yours Sincerely, que em Português quer dizer: Continue assim…
 
Ovar, 10 de Abril de 2017
Álvaro Teixeira

A história do cavaquismo está por fazer (estatuadesal)

 

(Por Valupi, in Blog Aspirina B, 08/04/2017)
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A entrevista a Dias Loureiro – “Temos um Presidente com opinião sobre tudo menos os direitos fundamentais dos cidadãos” – oferece duas passagens geradoras de granítico silêncio no comentariado, seja à direita ou à esquerda:
- À boca pequena toda a gente diz que há uma central de informação em tal lado, as pessoas são estas e aquelas... Eu não vou dizer porque ainda vou ter outro processo a seguir, porque não posso provar também, não é? Mas nada acontece, a justiça tem sido incapaz de se investigar a ela própria nas coisas mais comezinhas.
- Cortei com um só amigo, um grande amigo. Um amigo a quem devotei uma amizade incondicional nos últimos 32 anos. Um amigo a quem dei, em tudo, o melhor de que fui capaz. Admirava-o como pessoa e como político. Continuo a admirar a sua obra política como primeiro-ministro. Falo do professor Aníbal Cavaco Silva. Da pessoa. Não lhe falei durante todo o segundo mandato presidencial e quando terminou as funções procurei-o para lhe dizer por quê me afastei dele. Disse-lhe que fui sempre leal à amizade que lhe dediquei. Disse-lhe que ele não o foi em relação à amizade que eu esperava dele. Disse-lhe que tenho a consciência tranquila. Agora a vida segue. A dele e a minha. Sem rancor. Às vezes lembrarei a mágoa.
Na primeira citação, Dias Loureiro está a declarar que tem conhecimento dos nomes dos agentes de Justiça que cometem crimes em conluio com jornalistas e órgãos de comunicação social. E acrescenta que essa informação a que se refere está na posse de muitos que a repetem em círculos privados, na “boca pequena”. Na segunda citação, Dias Loureiro humilha Cavaco Silva e mostra qual dos dois é que detém o poder dentro da relação. Pista: não é o orquestrador da “Inventona de Belém”.
Antes de irmos às ilações que estas duas citações legitimam, uma nota sobre a figura. No seio do PSD sabe-se muitíssimo bem como é que o Manuel de Aguiar da Beira subiu dentro do partido. Corriam anedotas ao longo das décadas sobre os tempos de Coimbra que eram contadas por militantes e dirigentes laranjas. Este aparato sórdido, pois as histórias eram sórdidas, ligava-se com a percepção de que ele se tinha tornado na eminência parda do cavaquismo. E o que foi o cavaquismo? Foi algo sem o qual não teria nascido o BPN, por exemplo, daí a teia de relações entre os seus protagonistas, os da corte de Cavaco e os do banco, sendo que nalguns casos eram exactamente os mesmos. Donde, quando rebentou a crise do BPN, e se deu a intervenção do Ministério Público, muito boa gente jurava que seria impossível tocar em Dias Loureiro. A lógica sendo a de que, se ele caísse, inevitavelmente cairia Cavaco. E jamais a oligarquia deixaria que isso acontecesse.
Os factos vieram dar razão a estas profecias, pois Dias Loureiro acaba de ver um bizarro e escandaloso despacho de arquivamento a, para todos os efeitos práticos, ilibá-lo de crimes que o Ministério Público mantém terem acontecido por sua responsabilidade, por um lado, e Cavaco permite-se gozar com o regime e a comunidade, vindo mentir pateticamente a respeito de um crime que igualmente cometeu, pelo outro. Do ponto de vista da opinião, são dois escroques. Do ponto de vista da Lei, dois inocentes. E é a Lei o que mais importa.
Voltando às ilações, a primeira consiste nesta constatação: nem quando um cidadão declara ter conhecimento da prática de crimes e de quem são os criminosos tal impele o Ministério Público a agir caso as implicações corporativas e políticas lhe desagradem. Joana Marques Vidal não quer saber se Dias Loureiro mente ou se está na posse de uma valiosíssima informação que permitiria, finalmente, apanhar um dos criminosos na origem das violações do segredo de Justiça? O corolário é o de que os partidos, o Governo e o Presidente da República ficam automaticamente na categoria de cúmplices pela sua passividade e silêncio. A segunda remete para a História de Portugal e, em particular, para a história de Cavaco Silva primeiro-ministro e Presidente da República. O que Dias Loureiro quis mostrar foi que o seu “grande amigo” o atraiçoou e que, portanto, há uma história secreta entre os dois que nunca veio a público. Conhecer essa história corresponderia a conhecer os meandros da oligarquia portuguesa dos últimos 30 anos.
 
Ovar, 10 de Abril de 2017
Álvaro Teixeira

A desconstrução europeia

Celso  Filipe
Celso Filipe | cfilipe@negocios.pt 10 de abril de 2017 às 00:01

A desconstrução europeia

Jeroen Dijsselbloem foi infeliz ao declarar que os países do Sul gastam o dinheiro em bebida e mulheres. Foi infeliz e inverdadeiro, facto que pode ser verificável nas estatísticas.
A afirmação do presidente do Eurogrupo proporcionou momentos de refinado humor, criou uma onda de choque e possibilitou que os políticos do Sul, entre os quais António Costa, se servissem da indignação para pedirem a demissão de Dijsselbloem. Que, de facto, não tem condições para continuar no cargo, atendendo ao clima de desconfiança que entretanto assentou arraiais.
A última troca de palavras a este propósito, antes da reunião da passada sexta-feira do Eurogrupo, foi exemplar. Ricardo Mourinho Félix, secretário de Estado das Finanças, disse a Jeroen Dijsselbloem estar chocado com as declarações deste, para capitalizar um eventual descontentamento da opinião pública portuguesa, ao que o holandês retorquiu, mostrando-se também chocado com a reacção do Governo português.
Este folclore corrobora a tese de que a política é sempre decepcionante, espraiando-se com uma dolência voraz na espuma dos factos e tornando invisível o essencial. As asserções de Dijsselbloem e as réplicas dos visados são orgásticas e alimentam o espaço mediático, mas são inconsequentes e classificáveis na categoria de "fait-divers". Alimentam nacionalismos bacocos, invadem o espaço dos "soundbites" e subvertem as prioridades.
Por trás delas esconde-se o essencial, o preconceito, a incultura e a fragilidade dos políticos que dominam a arena política europeia. Porque, na realidade, a afirmação de Dijsselbloem nasce de um preconceito e da tentativa de agradar a um grupo de interesses.
Isso é o pior de tudo, porque revela a fragilidade da construção europeia. Numa Europa séria e comprometida com o seu futuro colectivo, o presidente do Eurogrupo teria um conhecimento estruturado dos Estados-membros e não uma opinião baseada em estereótipos. E quando são os próprios líderes europeus a formularem leituras da realidade assentes em trivialidades e a mostrarem-se cinicamente chocados com a celeuma que criaram, torna-se impossível pedir aos seus cidadãos que se comprometam cada vez mais com o projecto europeu.
O caso Dijsselbloem é significativo na medida em que constitui mais um episódio da desconstrução europeia que está em curso e em passo acelerado.

Ovar, 10 de Abril de 2017
Álvaro Teixeira