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domingo, 3 de setembro de 2017

Piam ou não piam?


por estatuadesal

(Nicolau Santos, in Expresso Diário, 01/09/2017)
nicolau

Cavaco Silva saiu da sua reforma política para enviar um conjunto de indiretas ao atual Governo e à maioria que o apoia, bem como ao seu sucessor em Belém. Como de costume, o ex-Presidente da República não nomeou ninguém, mas toda a gente percebeu a quem se referia. Deixando de lado os aspetos menos elevados da intervenção, vale a pena discutir o essencial, ou seja, aquilo que a direita há muito vem afirmando: que a austeridade não acabou e que, mais coisa menos coisa, António Costa está a fazer o que Passos Coelho fez e estaria a fazer.
Para chegar ao recado que queria passar, Cavaco Silva deambulou pelos “devaneios ideológicos” do ex-presidente francês, François Hollande, a “bazófia” do ministro grego das Finanças Yannis Varoufakis e a forma como o atual primeiro-ministro da Grécia, Alexis Tsipras, “pôs a ideologia na gaveta e aceitou iniciar um terceiro resgate com uma austeridade mais dura do que aquilo que ele tinha recusado”. Concluiu, dizendo que “a realidade tira o tapete à ideologia” e que essa realidade (as regras da disciplina orçamental impostas pela União Europeia) tem uma “tal força, contra a retórica dos que, no Governo, querem realizar a revolução socialista, que eles acabam por perder o pio ou fingem que piam, mas são pios que não têm qualquer credibilidade e refletem meras jogadas partidárias”.
Bom, comecemos por sublinhar que a realidade é dinâmica e que quando Hollande, Tsipras e Varoufakis tentaram aplicar receitas diferentes das impostas pelo “diktat” de Berlim e do Eurogrupo os tempos eram bem diferentes: estava-se em plena crise das dívidas soberanas e praticamente não havia contestação científica à receita que estava a ser aplicada, apesar dos resultados provarem que se estava muito longe de chegar à terra de leite e mel prometida pelos seus arautos neoliberais.
Logo, o primeiro ponto a ter em conta é que o atual Governo e a maioria que o apoia chegaram ao poder num contexto diferente, a saber: o BCE, contra a opinião de Berlim, passou a comprar dívida pública dos países da zona euro; reputados Prémios Nobel de Economia, como Paul Krugman ou Joseph Stigliz, colocaram em causa do ponto de vista científico o processo de ajustamento que vinha a ser seguido; mesmo no plano das organizações internacionais, como o Fundo Monetário Internacional, se ouviram declarações (nomeadamente da diretora-geral, Christine Lagarde) ou foram conhecidos estudos (do departamento liderado por Vítor Gaspar, ex-ministro português das Finanças) reconhecendo erros graves e consequências negativas para as economias e os povos que foram sujeitos aos programas de ajustamento; e todos os governos que aplicaram a receita foram afastados do poder.
Ou seja, no final de 2015 vivia-se já o início de um novo clima político, económico e social na Europa. E foi essa janela de oportunidade que o atual Governo e a maioria que o apoia aproveitaram.
Diz Cavaco Silva que a realidade tem uma tal força que se impõe a todos os que querem fazer a revolução socialista. Bom, não me lembro de alguma vez António Costa ter dito que queria fazer a revolução socialista e confesso que tenho alguma dificuldade em ver num primeiro-ministro que por vezes usa sapatos com berloques um perigoso revolucionário. Mas tudo é possível, tudo é possível.
Em qualquer caso, lembro que a anterior maioria dizia que queria devolver ao longo de quatro anos pensões e reformas que tinham sido cortadas entre 2011-2015; foram devolvidas num ano. A anterior maioria queria acabar com a sobretaxa de IRS em quatro anos; também já foi eliminada. O défice que, segundo a direita ia disparar de acordo com a tradição socialista, passou de 3,2% em 2015 para 2% em 2016 (bem abaixo dos 2,5% acordados com Bruxelas) e vai a caminho dos 1,5% este ano. A economia, que tinha crescido 1,6% em 2015, caiu para 1,4% em 2016 mas vai este ano ficar pelo menos em 2,5%, o maior crescimento desde o início do século. O investimento, que a direita insistia que não voltaria com um governo socialista apoiado por bloquistas e comunistas, cresceu acima de 10% em termos homólogos no segundo trimestre deste ano, “o que acontece pela primeira vez em 19 anos”, segundo a insuspeita Católica – Lisbon Forecasting Lab. O desemprego, que iria aumentar com a subida do salário mínimo, não cessa de cair; de 12,6% está agora em 9,1%. Os índices de confiança dos consumidores e de clima económico estão nos valores mais elevados desde há 17 anos. E mesmo as agências de rating melhoraram o outlook da dívida pública portuguesa e provavelmente virão a tirá-la da classificação de “lixo” no próximo ano.
Convenhamos, portanto, que se as ideologias não resistem à realidade, os discursos demagógicos resistem bastante menos aos factos. E o que está escrito acima são factos, factos e mais factos revelados pelo Instituto Nacional de Estatística, pelo Banco de Portugal e por universidades.
Sim, nem tudo está bem e as preocupações são mais que muitas. A dívida pública continua a crescer em valor absoluto, apesar do Governo manter que ficará em 127,7% do PIB no final deste ano. O Orçamento do Estado para 2018, que está em fase de elaboração, parece contemplar um conjunto de encargos de despesa ou de cortes de receita que se podem vir a revelar contraproducentes a prazo para o objetivo de redução do défice nos próximos anos. No crescimento do investimento há um peso muito significativo na importação de veículos automóveis, o que não é seguramente bom. Também o regresso em força da construção, sendo bem vinda, precisa de ser temperado com a aposta em maquinarias e equipamentos para os setores industriais. As exportações podem sofrer com um eventual abrandamento da economia mundial devido à política económica errática e protecionista do presidente norte-americano. As taxas de juro na Europa vão inevitavelmente começar a subir, provavelmente em 2019. E um conflito nuclear na península da Coreia colocará o mundo em ebulição, com os preços do petróleo e das matérias-primas a disparar.
Mas isso é o futuro – e o mais difícil de prever é o futuro.
Até lá, o Governo e a maioria que o apoiam tem resultados para apresentar, a par das boas expectativas dos agentes económicos. E não, não foi a fazer a mesma política do anterior Governo: foi a alterá-la em múltiplos aspetos, por muito que a direita, interna e externa, Berlim e o Eurogrupo, o PSD e o CDS, para se consolar, digam que o que está a ser feito era o que estava na cartilha neoliberal do programa de ajustamento. Convenhamos que há quem pie pior do que aqueles que são acusados de não piar.

quinta-feira, 15 de junho de 2017

Schauble, o cínico


(Por Estátua de Sal, 15/06/2017)
schauble_cinico
Dizia o outro, o Portas, que quando a troika se foi embora Portugal tinha deixado de ser um protectorado e até tinha um relógio a contar os minutos que faltavam para dizer adeus aos capatazes. Pois bem, nada mais falso.
Tal é a nossa situação de dependência que até para pagarmos as dívidas temos que pedir autorização. Portugal quer pagar  antecipadamente 10000 milhões de euros ao FMI, de um total de 12000 milhões que ainda lhes devemos, porque os juros do FMI são bens mais altos que os da restante dívida. Para isso temos que pedir autorização á Europa, ao Eurogrupo, ao Schaüble e, pasme-se, a autorização tem que ser votada no parlamento alemão! Querem maior prova de dependência? (Ver notícia aqui).
Eu achava que a solidariedade europeia não precisava de ir a votos. Mas não é assim. A razão é que, pagando mais cedo ao FMI, a probabilidade de pagarmos mais tarde os empréstimos da Europa aumenta, e eles, coitados também querem receber o deles a tempo e horas. Percebe-se.
O que já é menos aceitável é o Schaüble apanhar a boleia deste pagamento antecipado para vir dizer que o resgate a Portugal foi um sucesso. Depois da queda do PIB em vários pontos percentuais, do desemprego em massa, da emigração forçada, da pobreza e da miséria a trepar, o macaco do Schaüble vem dizer que foi tudo um grande sucesso.
Só um cínico encartado poderia sair-se com uma tirada de tal estirpe. No fundo, a mensagem subliminar que ele quer passar é que o Passos e a Marilú, e o governo anterior que ele apadrinhou, governaram tão bem que até conseguimos pagar as dívidas antecipadamente.
Ou seja, quem quer pagar e enfrentar os credores de cabeça erguida deve seguir sem pestanejar as ordens do Schaüble. Logo, o Costa que se cuide e não levante muito a garimpa, sob pena do ministro alemão não nos permitir, não contrair novos empréstimos, mas sim pagarmos os que já contraímos!